
A primeira noite do evento “Que cidade é essa? Um olhar crítico sobre as inovações em Porto Alegre” reuniu na sede do Sindbancários de Porto Alegre, nesta quarta-feira (9), professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrantes de movimentos de catadores para debater os efeitos da Parceria Público-Privada (PPP) de resíduos sólidos que está sendo proposta pelo governo Sebastião Melo (MDB). Promovido pelo SindBancários Porto Alegre e Região e as entidades Casca Socioambiental, ONG Moradia e Cidadania, Frente pela Gestão de Resíduos Sólidos Participativa e CAAPS UFRGS, o debate marcou a primeira noite do evento que busca fazer um contraponto ao conceito de inovação propagandeado pela Prefeitura e pelo governo do Estado a partir do South Summit Brazil.
Na abertura do debate, o professor Aragon Erico Dasso Junior, professor da Escola de Administração, fez uma fala de contextualização do cenário em que a Porto Alegre e o Rio Grande do Sul de 2025 estão inseridos. A partir das perguntas “Que inovação é essa?” e “Para quem e a que custo?”, Aragon pontuou que a Capital está inserido num contexto de hegemonia ultraliberal que tem como principal característica o domínio do privado sobre o público.
Por que se trata de um modelo hegemônico? Aragon avalia que o discurso favorável a privatizações e parcerias público-privadas (PPPs) é embalado por uma aparência de inevitabilidade e consenso, diante dos quais não haveria outra alternativa. “É uma doutrina, portanto política, que se apresenta como científica para dificultar o debate e inviabilizar a organização da resistência”, disse.
A respeito da inovação, Aragon destacou que o termo vem sendo usado, também dentro de um contexto ultraliberal, sob uma ótica da mercantilização do conhecimento, uma vez que as inovações defendidas dentro de eventos como o South Summit sempre estão relacionadas a uma propriedade. “O saber sempre tem um dono”, pontuou.
Em contrapartida, a conjuntura teria extinguido qualquer possibilidade de inovação que partisse da esfera pública. Neste caso, ele destacou o processo de extinção da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec), em 2018, pelo ex-governador José Ivo Sartori (MDB), que seria um espaço do desenvolvimento da inovação pela esfera pública no Rio Grande do Sul.
Também professora de Administração da UFRGS, Ana Mercedes Icasa, destacou em sua fala a análise técnica sobre a proposta de PPP elaborada pela Prefeitura de Porto Alegre para a festão dos resíduos, trabalho feito por comitê formado por pesquisadores e estudantes da UFRGS e da Unisinos, junto a profissionais de outras entidades e de movimentos sociais. O edital da PPP da gestão de resíduos sólidos da Capital prevê a concessão dos serviços por 35 anos, com previsão de investimentos na ordem de R$ 1,3 bilhão investimentos e a consolidação de 70 contratos em um único prestador.
Ana Mercedes salientou que a proposta do governo Melo tem como principais problemas a falta de participação social e o exíguo prazo disponibilizado para consulta pública — bem como o fato das propostas apresentadas pela população durante o processo terem sido desconsideradas pela Prefeitura –, a inadequação da PPP para solucionar a gestão dos resíduos da cidade e a tendência do modelo apresentado piorar o impacto ambiental em comparação com a situação atual.
Ela pondera que isso deverá ocorrer uma vez que, conforme está previsto no edital da PPP, desestimularia a população a promover a separação dos resíduos em casa, uma vez que todos os materiais iriam misturados para uma unidade de triagem. Além disso, aponta que, mesmo antes de ser concluído o processo, já há um alerta sobre possíveis problemas de falta de transparência e controle, uma vez que parte da fiscalização será feita pela própria empresa.
Além disso, e mais importante, ela destacou que a concentração de todos serviços de coleta, tratamento, transporte e destinação final dos resíduos em uma única empresa ignora toda a cadeia que envolve a gestão de resíduos em Porto Alegre, promovendo a exclusão dos catadores do processo. A professora destacou que propostas alternativas serão apresentadas pelos professores no dia 16 de abril.

A catadora Nanci Darcolléte, diretora-executiva do Pimp My Carroça — ONG que busca promover a valorização do trabalho de catadores e cooperativas –, destaca que a discussão sobre a gestão de resíduos em Porto Alegre repete situações pelas quais outras cidades passaram ou estão passando, como é o caso de São Paulo, onde mora. Nanci destaca que, na verdade, se trata de uma discussão sobre a implantação de grandes incineradores de resíduos, o que movimentos de catadores têm combatido em todo o Brasil.
Nanci pontua que a gestão de resíduos é uma indústria bilionária, mas que é movida por trabalhadores invisibilizados. Ela destaca que, atualmente, 60% dos mais de 1 milhão de catadores em atividade no Brasil ainda trabalhariam em lixões e apenas 8% trabalharia em cooperativas e associações. E, mesmo as cooperativas, que seriam o cenário mais positivo, vivem uma situação de extrema precarização, uma vez que muitas delas não têm contratos fixos com prefeituras, operando em relações frágeis. Por outro lado, em junho do ano passado, a prefeitura de São Paulo assinou um contrato de serviço para coleta e tratamento dos resíduos sólidos urbanos para os próximos 20 anos, com previsão de remuneração de R$ 80 bilhões. “E para as cooperativas não têm dinheiro nem para pagar o combustível dos caminhões”, disse.
Para ela, a realidade que não se quer enxergar é de que os catadores trabalham em uma situação análoga à escravidão, marcada pela falta de remuneração e precarização.
Secretária do Fórum Municipal de Catadores e Catadoras e diretora do Centro de Educação Ambiental da Vila Pinto, Paula Medeiros corroborou a fala de Nanci, destacando que os trabalhadores da área vivem um processo de invisibilização total, tendo sido úteis para a Prefeitura até que surgisse a proposta da PPP. “Dentro do ciclo do gerenciamento doa resíduos, os catadores são os únicos que não recebem pela prestação do serviço”, diz. A partir da proposta de PPP, os catadores passariam apenas a trabalhar na triagem dos resíduos.
Paula destacou que estimativas indicam que cerca de 7 mil catadores trabalham atualmente em Porto Alegre. “É galera para caramba que sobrevive dos restos dos outros”, afirmou.
Ao fechar o painel, o catador Fagner Jandrey, do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), fez uma relação entre a gestão dos resíduos e as enchentes de maio de 2024.
“A gente tá marcado com o que aconteceu em maio do ano passado. Todos os lugares que tu vai, o marco histórico são as enchentes, parece que virou desculpa para tudo. E parece que muita gente não viveu ainda o luto, principalmente os pobres, os negros, da periferia, que tiverem que continuar lutando para sobreviver”, disse. “Essa questão da emergência climática está na boca de todo mundo e também tem várias interpretações. Para gente, enquanto catador, pobre, a gente sempre sofreu com isso. A galera das ilhas sempre sofreu com enchente, o povo da periferia sempre sofreu. Mas, em maio do ano passado, bateu nas portas da classe média, no Menino Deus”, complementou.
Jandrey destacou que as enchentes trouxeram a necessidade de reafirmar algo que os catadores sempre disseram, de que a relação com a natureza molda o futuro, sendo a relação com os resíduos uma das mais importantes etapas desse processo. “O resíduo sólido é a natureza em outro estado. Quando a gente fala em preservação ambiental, a gente tem que falar do resíduo sólido”, disse.
Por outro lado, o catador defendeu a necessidade de mobilização para que a proposta de PPP seja alterada, salientando que é preciso não apenas fazer a crítica ao processo, mas apresentar soluções. “Porque o espaço da crítica muitas vezes fica no espaço da acomodação”, disse.
O evento segue nesta quinta-feira (10), debatendo temas como o desmatamento urbano para construção de empreendimentos imobiliários e os desafios ambientais e sociais ligados à gestão de crises climáticas. Confira a programação abaixo: