
Há cerca de dois meses, moradores do bairro Jardim Itu Sabará convivem com a aceleração nas obras de um empreendimento do Grupo Zaffari numa área de mata atlântica da região. O novo Cestto Atacadista, na avenida Protásio Alves, está quase pronto. O mesmo terreno, área da antiga Gaúcha Cross, vai receber também o loteamento residencial Jardim Itália. O projeto do loteamento começou a tramitar em 1997, mas as obras só começaram a andar recentemente.
“Eles não só desmataram toda uma parte muito rápido, como fizeram a abertura (de ruas) em um caminho por dentro da propriedade”, relata Danielle Figueiredo, que mora ao lado da mata e participa do conselho de moradores do bairro. “Quando passávamos, nós víamos as árvores para serem recolhidas e era uma tristeza a quantidade de troncos enormes no chão”.
Além da derrubada de árvores, Danielle e outros moradores têm presenciado animais silvestres, como graxains, andando pelo entorno da área. Preocupados com os impactos do empreendimento à fauna e à flora locais, eles organizaram um protesto na última sexta-feira (6). Os moradores também reclamam do excesso de poeira e de barulho que são consequência das obras.
“Não tem nenhuma autoridade olhando para isso. Ou porque é conveniente, ou porque não estão dando a devida atenção. As reuniões [do conselho de moradores] são sempre com moradores e nunca com uma autoridade que possa dizer que isso está sendo visto, se foi liberado ou se não foi”, afirma Danielle. “A gente escutava, de noite, os caminhões trabalhando. Isso nos leva a pensar muitas coisas que podem estar acontecendo – por que as pessoas estão trabalhando à noite? Mas nunca houve um diálogo sobre compensação das árvores que estão sendo retiradas”.

A falta de clareza em relação ao empreendimento provoca indignação. Emerson Prates, do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais, afirma que não se tem acesso aos laudos e estudos ambientais que embasam a licença obtida para as obras. O técnico em meio ambiente acredita que não exista Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do empreendimento, uma vez que esses documentos implicam a execução de uma audiência pública.
“Isso nos causa espanto, até mesmo porque ali tem 50 hectares de mata atlântica. Como existe a lei da mata atlântica, deveria haver os estudos. Estamos tentando ir atrás destes documentos”, pontua Emerson.
Membro do Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam) pelo Ingá, Emerson ressalta que o empreendimento do Grupo Zaffari não passou pelo conselho. “Parece que o Comam é decorativo. Não delibera nada. Existem as câmaras técnicas que deveriam avaliar isso tudo, mas essas pautas não chegam pra gente”, diz. “Quando a gente consegue esses documentos, já é tarde, já foi desmatada uma grande parte. Estamos tentando evitar que esse projeto avance mais”.
Enquanto isso, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente investiga a supressão de vegetação na área: se houve autorização, se está sendo executada conforme a autorização e se as compensações foram exigidas. Em nota, o Ministério Público (MP) informou que essa investigação está no começo e que estão sendo pedidas informações ao empreendedor e à Prefeitura de Porto Alegre. Outra investigação preliminar do MP, sobre o manejo de fauna na área do empreendimento, não identificou irregularidades.
Mestre em ecologia, o biólogo Murilo David explica que a área em questão é uma floresta de sucessão secundária, ou seja, já foi alvo de intervenção humana. “Vale lembrar que essas florestas também são protegidas pela lei da mata atlântica”, afirma. “Essa área é privada há pelo menos 20 anos. Não tem como saber, exatamente, quais espécies estão lá”.
Como exemplo de consequência do desmatamento, o biólogo cita o aumento da temperatura local – uma alteração do chamado micro clima. A moradora Danielle diz perceber que o entorno de sua residência não é tão quente, no verão, quanto áreas mais afastadas. “As árvores proporcionam isso pra gente”, avalia.
Além de regular o clima, a vegetação evita o escoamento superficial de água e possíveis alagamentos. “As raízes das plantas fazem uma perfuração natural no solo, evitando o assoreamento”, explica Murilo.
A floresta de mata atlântica que compreende o terreno adquirido pelo Grupo Zaffari pode ser considerada, também, um corredor ecológico que possibilita a troca de espécies entre diferentes áreas verdes. “Quando esse tipo de local é fragmentado ou loteado, é mais difícil para as espécies passarem de um local para outro. Isso causa perda de espécies e de serviços ecossistêmicos”, avalia o biólogo.
A Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) informou que a área teve o licenciamento aprovado com base na legislação vigente. “Os animais silvestres estão sendo monitorados constantemente. O empreendedor contratou uma empresa especializada em resgate e monitoramento, de acordo com o que é estabelecido na legislação e como consta em condicionante da licença ambiental emitida. Em relação às compensações ambientais, o empreendimento está cumprindo a lei, que estabelece as regras e compensações para supressão, transplante e poda de árvores”, diz a nota.
O Grupo Zaffari, também em nota, afirmou que está sendo conduzido um trabalho de remanejo dos graxains do mato encontrados na área do empreendimento. “Esse processo acontece através de empresa especializada sob diretrizes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e do Ibama. Desde o início das obras, dois animais dessa espécie já foram capturados e levados para a área de conservação ambiental Natureza PRÓ-MATA, no município de São Francisco de Paula-RS. O monitoramento dos animais, que será mantido ao longo de toda a execução da obra, é realizado por técnicos especializados e acompanhado pelos devidos órgãos públicos. Cabe reforçar que uma Área de Preservação Permanente (APP) de 96 mil m² será mantida na região”.
O grupo apresentou ainda as contrapartidas do empreendimento (leia na íntegra ao final do texto) e esclareceu que o loteamento Jardim Itália entregará 19% das áreas verdes internas.

Documentos aos quais o Sul21 teve acesso mostram a tramitação do projeto do loteamento Jardim Itália desde 1997, quando ele foi protocolado. Desde aquele ano, o projeto teve sucessivas alterações, principalmente no que diz respeito à inserção ou eliminação de partes do terreno como áreas de intervenção.
Em 2006, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA) emitiu parecer contrário ao Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) apresentado na época. “Não existe justificativa para a permissão da utilização de quarteirões com superfície superior ao permitido no Plano para áreas urbanas de ocupação intensiva, ou seja, com área máxima de 2,25 hectares e extensão máxima de 200 m”, diz o parecer.
Também no ano de 2006, a Secretaria de Meio Ambiente (então Smam) emitiu a licença ambiental para o loteamento Jardim Itália. O documento esclarece que o terreno inclui 2,6 mil m² de bacia de amortecimento para a água de cheias. Trata-se de um reservatório construído para o armazenamento temporário das águas das chuvas, que escoam por telhados, pátios, ruas, calçadas e redes pluviais, liberando esta água acumulada de forma gradual. Além disso, 106,9 mil m² seriam destinados ao sistema viário. A vegetação a ser suprimida em função do sistema viário somaria 10,3 mil m² de mata nativa.
As condições para a licença eram a divulgação prévia sobre a instalação do loteamento e uma placa no local, informando sobre as licenças e sobre a responsabilidade técnica do empreendimento. O Grupo Zaffari teria de manter uma Área de Preservação Permanente (APP) de 30 metros às margens do curso d’água presente no terreno, além de preservar os exemplares de figueira e de butiazeiro presentes no terreno.
Conforme o Termo de Compromisso firmado na época, o empreendedor teria de repassar R$ 60 mil à Unidade de Conservação do Parque Saint Hilaire.
A licença ambiental é um documento que precisa ser constantemente renovado. Na versão de 2023, continua sendo exigida do Grupo Zaffari a preservação de butiazeiros e de figueiras “em lotes de tamanho compatível ao desenvolvimento” dos exemplares. Continua sendo obrigatória, também, a instalação de uma placa apontando a responsabilidade técnica pelo empreendimento.
Outra condição para a licença ambiental é que o empreendedor delimite e cerque as APPs de curso d’água. Está previsto, ainda, o plantio de 299 mudas nativas na área interna do terreno e a doação, ao poder público, de 126 mil m² no interior de Unidade de Conservação. Essa doação corresponde à supressão de mais de 126 mil m² de vegetação da área, incluindo mata nativa.
Em 2019, o projeto sofreu alterações no traçado viário para criar conexões entre o loteamento e a área externa. Na figura abaixo, reprodução do documento, é possível ver onde ficarão as vias abertas por dentro da mata.

Íntegra da nota enviada ao Sul21 pelo Grupo Zaffari:
A obra realizada pela empresa possui licença de instalação emitida pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre e está seguindo rigorosamente as regras e normativas estabelecidas pelo órgão. Na região do futuro empreendimento, está sendo conduzido um trabalho de remanejo da espécie CERDOCYON THOUS, também conhecido como Graxaim do Mato. Esse processo acontece através de empresa especializada sob diretrizes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e do Ibama. Desde o início das obras, dois animais dessa espécie já foram capturados e levados para a área de conservação ambiental Natureza PRÓ-MATA, no município de São Francisco de Paula-RS. O monitoramento dos animais, que será mantido ao longo de toda a execução da obra, é realizado por técnicos especializados e acompanhado pelos devidos órgãos públicos. Cabe reforçar que uma Área de Preservação Permanente (APP) de 96 mil m² será mantida na região.
Loteamento Jardim Itália – Áreas de preservação e contrapartidas:
* O Loteamento Jardim Itália entregará 95.814,12 m² de áreas verdes internas (correspondendo a 19,11% da área total), o que ultrapassa em 20.605,76 m² as necessidades legais, que são apenas de 15,00 %.
* Serão entregues novas áreas verdes que somadas irão perfazer 84.558,52 m², e que mesclarão espaços de contemplação e lazer, áreas de preservação de Mata Atlântica em estágio médio de regeneração e Área de Preservação Permanente.
* Além das áreas verdes internas, o Loteamento entregou ao Município de Porto Alegre uma área de 126.079,21 m² no Parque do Delta do Jacuí, na Ilha das Flores, já devidamente registrada, para preservação da Mata Atlântica, conforme legislação federal.
* A área de preservação de Mata Atlântica em estado médio de regeneração a ser preservada no local, conforme legislação pertinente, também tem averbação nas matrículas do loteamento pelo Registro de Imóveis da 4ª Zona de Porto Alegre.
* Na Praça Irmã Dulce, bairro Jardim Sabará, que atualmente tem 4.839,70 m², aumentará a sua área em mais 11.255,60 m². Conforme as diretrizes da SMAMUS, emitidas pela equipe de Praças e Parques, está em elaboração o projeto a ser implantado em toda praça Irmão Dulce que passará a ter 16.095,30 m².
* Também está em desenvolvimento um projeto de qualificação da Praça Hermann Otto Blumenau, bairro Jardim Itu, já existente, que passará por um processo de requalificação atendendo antiga demanda da comunidade local com novos equipamentos e pista de caminhada.
* Será entregue um imóvel (matrícula 193.159), atendendo definição do projeto do loteamento, com área de 9.903,94 m², no prolongamento da rua Enrico Caruso, bairro Jardim Sabará, junto ao Colégio Estadual Japão, para sua expansão e melhor atendimento da comunidade do entorno.