
No próximo dia 22 de novembro, um navio quebra-gelo russo zarpará do porto de Rio Grande em direção a Antártica. A bordo estarão 61 cientistas de sete países, reunidos por dois meses para uma expedição inédita que percorrerá mais de 20 mil km com o objetivo de circum-navegar o continente gelado, chegando o mais próximo possível da costa e das geleiras.
Considerada uma das mais ambiciosas missões à Antártica, a Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica será liderada pelo pesquisador e explorador polar Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático (CPC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na equipe de 61 cientistas, 27 são brasileiros vinculados a instituições associadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT) e a projetos de pesquisa do Programa Antártico Brasileiro (Proantar/CNPq). Os outros pesquisadores são da Argentina, Chile, China, Índia, Peru e Rússia.
Simões explica que o objetivo principal da expedição está relacionado a alguns programas internacionais desenvolvidos pelo Comitê Científico para Pesquisa Antártica (SCAR, na sigla em inglês), do Conselho Internacional de Ciência (ISC). Uma das principais questões científicas da atualidade é saber qual a estabilidade dinâmica do manto de gelo da Antártica. Ou seja: o quanto a camada de gelo do continente está derretendo, lembrando que a Antártica tem 90% do gelo do planeta.
“Qualquer derretimento ou aumento da velocidade desse gelo para dentro do oceano tem implicações seríssimas, desde aumento do nível do mar e a diminuição da salinidade do oceano austral e isso tem implicações pra circulação atmosférica oceânica”, explica o pesquisador, pioneiro na ciência da glaciologia e geografia polar no Brasil e criador do Centro Polar e Climático da UFRGS, considerado em centro de excelência da pesquisa polar brasileira e o único que trabalha com os dois polos da Terra.
“Queremos saber como é que está mudando a morfologia, se está aumentando a velocidade, se está carregando mais gelo para dentro do oceano e examinando algumas áreas que são mais instáveis, principalmente onde o gelo começa a flutuar”, destaca.

A medida que derrete, o gelo Antártico chega na costa do continente, flutua e forma icebergs que ficam à deriva, alguns gigantes. Será nesse ambiente que os pesquisadores farão suas análises. Os cientistas farão uma série de pesquisas na área da climatologia e oceanografia, dentre outras especialidades. “Tudo converge para o tema da mudança do clima e o impacto nos organismos vivos”, diz o coordenador da expedição.
Além de estudar o impacto das mudanças climáticas nas geleiras e ecossistemas costeiros da Antártica, outros principais objetivos da expedição incluem mapear áreas com alta biodiversidade marinha e coletar dados sobre microplásticos e contaminantes emergentes.
Para isso, os cientistas coletarão amostras ao longo da costa, envolvendo estudos biológicos, químicos e físicos, focando dados atmosféricos, geofísicos, glaciológicos e oceanográficos do manto de gelo antártico e seu entorno. A expedição inclui ainda um levantamento aéreo inédito das massas de gelo, monitorando o comportamento das geleiras diante das mudanças climáticas. A tecnologia do satélite Starlink permitirá a troca de informações via texto, áudio e vídeo, com acesso ilimitado à internet durante todo o percurso antártico, facilitando a comunicação e a transmissão de dados em tempo real.
Segundo Simões, expedições antárticas que avançaram pelo continente ou fizeram circum-navegação existem há mais de dois séculos, cada vez mais perto da costa. “Em 2016 e 2017, com a participação de cientistas gaúchos, tivemos uma expedição mais ao norte. O pioneirismo desta nova expedição está em ser realizada o mais perto possível da costa da Antártica. Esperamos ter dados sobre a linha de flutuação dessas geleiras e, simultaneamente, apoiaremos um levantamento geofísico dessas frentes de geleiras para entender como elas respondem ao aquecimento da atmosfera e do oceano”, explica, enfatizando que a expedição espera também coletar dados sobre a biodiversidade, a resposta da fauna polar às variações climáticas, a circulação oceânica e os sinais de poluição.
Como exemplo da mudança climática na Antártica, ele cita que estudos já mostram que o Oceano Austral está diminuindo sua salinidade devido ao derretimento do gelo antártico, composto por água doce. A alteração da salinidade tem consequências na biota – conjunto de seres vivos que habitam um determinado local. O pesquisador da UFRGS destaca que o Oceano Austral absorve o excesso de CO2 que a humanidade emite na atmosfera, o que está tornando-o mais ácido, causando impacto na base da cadeia alimentar dos microrganismos. “Teremos uma série de amostragens, inclusive na área da oceanografia, em diferentes profundidades, sobre como diferentes variáveis químicas, físicas e biológicas estão mudando. Já temos alguns sinais mais intensos dessas mudanças.”

Para percorrer a costa da Antártica, a expedição será realizada a bordo do navio quebra-gelo científico Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica, de São Petersburgo, na Rússia. Ao custo de 5 milhões de euros, a expedição é 97% financiada pela fundação suíça Albédo Pour la Cryosphère, dedicada ao estudo e à preservação da massa de neve e do gelo do planeta, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
A Antártica tem 1,6 vezes o tamanho do Brasil e é coberta, em média, por uma camada de 2 km de espessura de gelo – embaixo tem o continente. Este gelo tem a espessura máxima de 4.776 metros. Se todo o gelo da Antártica fosse transferido para o território brasileiro, cobriria todo o Brasil com uma camada de 3 km de gelo.
O explorador polar Jefferson Cardia Simões enfatiza que o aspecto prático de todas as pesquisas é mostrar os limites que a humanidade pode mudar o sistema climático ou o sistema natural, sem deixar inviável a vida na Terra tal qual nós a conhecemos. Ainda que as consequências sejam numa escala de tempo de décadas, o cientista pondera a importância dos estudos para, por exemplo, melhorar a previsão climática e meteorológica para o Brasil. Para que tal avanço ocorra, ele diz, é preciso incluir o oceano e o gelo da Antártica.
“As frentes frias são formadas no Oceano Austral e chegam até o sul da Amazônia, elas têm frequência, tem intensidade e isso afeta o nosso cotidiano, afeta a produtividade agrícola, cria problemas de saúde”, explica. A relação entre o que acontece na Antártica e a vida no Rio Grande do Sul, por exemplo, é direta, como foi o caso da histórica enchente de maio deste ano.
“O mais interessante é entender que o processo que ocorreu em maio estava associado com a Antártica. Temos aqui um problema de percepção. O brasileiro acha, em geral, que a questão ambiental é sinônimo único de Amazônia e esquece que nós temos vários biomas no planeta Terra e seis biomas no Brasil, e isso está concatenado com o que ocorre na Antártica”, afirma. “A frente polar que deveria avançar (em maio) até o sul da Amazônia foi bloqueada em cima do território gaúcho porque houve um extremo calor no centro do Brasil. Então esse bolsão de calor no centro do Brasil bloqueou a frente polar e caiu toda a água na nossa cabeça. Temos que entender que o sistema ambiental é único e indivisível. Nosso clima, nosso dia a dia, nossos biomas, são controlados pelos processos que ocorrem na Antártica.”

Simões destaca que, em 2024, a comunidade científica se surpreendeu com as mudanças climáticas devido ao fato das alterações ocorrerem de modo mais rápido do que se esperava. O cenário das alterações climáticas vivido hoje era projetado para daqui a 10 ou 15 anos.
Além do criador do criador do Centro Polar e Climático (CPC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), participarão da expedição pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade de Brasília (UnB), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Enfrentar as condições climáticas extremas e a logística complexa de operar na Antártica são alguns dos desafios esperados nesta expedição. A iniciativa pioneira reforça a liderança latino-americana do Brasil nas pesquisas polares e no enfrentamento das mudanças climáticas, consolidando o País como uma das referências científicas internacionais.
Francisco Eliseu Aquino, professor do Departamento de Geografia da UFRGS, coordenará as pesquisas do grupo de climatologistas durante a expedição e salienta o ineditismo de uma circum-navegação antártica completa. “Ela permite interagir com a diversidade de tempestades, eventos extremos e estudar o ciclo hidrológico examinando as conexões entre a região tropical e a Antártica. Também faremos perfurações na neve e gelo para investigar a variabilidade do clima e da química da atmosfera ao longo dos últimos 100 anos”, explica. “Isso nos permitirá medir e investigar in loco o contraste entre a região tropical e a região polar, amostras que nos farão entender melhor a circulação atmosférica forçada, intensificada nos últimos dois a três anos mais quentes.”

O Centro Polar e Climático (CPC) é um centro auxiliar de pesquisa e ensino interdisciplinar do Instituto de Geociências da UFRGS. Reúne pesquisadores nacionais e internacionais afiliados dedicados à investigação do papel das duas regiões polares no sistema ambiental sul-americano, da variabilidade climática do Hemisfério Sul, dos processos das mudanças climáticas globais e suas consequências para o sul do Brasil.
Desde 1992, este grupo da UFRGS é responsável pela execução do programa glaciológico nacional na Antártica e nos Andes. Tal programa atende tanto necessidades de pesquisa e ensino para a introdução de uma nova área de conhecimento no País, como aspectos da política internacional do Brasil (o Tratado da Antártida).