
Familiares e cônjuges de apenados estão se mobilizando contra o projeto de lei do Executivo para retirar tomadas e pontos de energia de dentro das celas em todo o sistema prisional do Rio Grande do Sul, a exemplo da Penitenciária Estadual de Charqueadas II (PEC II), inaugurada no ano passado. O PL 364/2024 faz parte de um pacote enviado à Assembleia Legislativa em regime de urgência e só não foi votado na última terça-feira (17) porque o governo retirou a proposta da pauta após divergência de instituições públicas sobre o tema.
Renata*, 32 anos, é uma das pessoas que se mobilizou em frente ao Palácio Piratini e dentro da Assembleia Legislativa no dia em que o projeto iria à votação. Esposa de um homem que cumpre pena em Charqueadas – no presídio que ainda tem tomadas nas celas – , ela carregava um cartaz com a frase “Energia não é privilégio, é o básico”.
“Dentro de uma cela, a quantidade mais baixa de presos é 15. Pensa eles sem tomada para ligar um ventilador para circular vento; sem ter como fazer comida. A gente está lutando contra a retirada das tomadas por causa da saúde, por causa da vida carcerária”, observa Renata.
A fala dela é corroborada por uma nota técnica do Núcleo de Defesa de Execução Penal da Defensoria Pública do RS (Nudep/RS) que considera a aprovação do PL 364/2024 “inadequada diante do contexto atual do sistema prisional gaúcho”.
O governo Leite justifica a proposta dizendo que o comando das facções criminosas atuam dentro do sistema penal através do acesso a aparelhos celulares, ordenando e coordenando delitos do lado de fora dos estabelecimentos. De acordo com o Executivo, o uso de bloqueadores de sinal tem elevado custo de instalação e operação, além de impactar nas áreas vizinhas. No entanto, segundo o Nudep, experiências anteriores sugerem que a proposta pode acarretar custos administrativos e orçamentários adicionais e ainda contrariam normas de direitos humanos.
Além disso, a Associação Brasileira de Normas Técnicas prevê a instalação de pontos de energia elétrica em ambientes habitacionais, incluindo locais de habitação temporária como presídios. Para o Nudep, a retirada de tomadas das unidades prisionais antigas é “praticamente inviável devido à infraestrutura obsoleta e à superlotação das prisões, gerando riscos de segurança”.
Em 2021, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) publicou uma resolução que permitiu a não-instalação de tomadas e pontos de energia nas celas. Contudo, essa diretriz foi alterada em 2023, com uma resolução que revogou a proibição e passou a exigir justificativa para quaisquer restrições ao uso de energia elétrica. Apesar dessa mudança, o modelo de celas sem tomadas foi implementado no RS com a inauguração da PEC II.
No âmbito da justiça gaúcha, o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do Tribunal de Justiça do RS deliberou, em 13 de dezembro, postular a retirada do regime de urgência do PL 364/2024. O Juiz-Corregedor Bruno Jacoby de Lamare, coordenador do GMF, esclarece que não houve qualquer análise de mérito sobre o projeto. “O pedido teve como único intuito garantir tempo hábil para que as análises pertinentes possam ser realizadas”, explica.
O marido de Renata está preso há sete anos. Durante esse tempo, ela percebeu que as condições carcerárias estão longe do ideal – e a retirada de tomadas é mais um dos problemas. O acesso à saúde, por exemplo, é precário no sistema prisional. “Se o preso tem alguma doença que exija remédio controlado, tem que comprovar isso via judicial. Se ele depende de Defensoria Pública, já é mais complicado. Algumas famílias não têm muito acesso a essa informação. E preso morre dentro da cadeia por não levarem para consultar na UPA. É o preso que cuida do preso”, desabafa Renata.
Quanto ao preparo e armazenamento de alimentos dentro da cela, para os quais os detentos necessitam de energia elétrica, Renata explica que é a forma que eles têm de conseguir se alimentar. “No presídio de Charqueadas, o que o Estado paga de alimentação é feijão – não tem nem arroz. Se o preso não tem dinheiro para comprar na cantina do presídio, fica sem”.
O Nudep elenca uma série de fatores, além da alimentação, que demonstram a importância da instalação elétrica nas celas. Um deles é o uso de rádios, televisores e outros aparelhos eletrônicos permitidos, que garantem o acesso à cultura, lazer e informação. “Instalar televisores no pátio não resolve o problema. Essa privação dificulta a ressocialização, além de agravar problemas psicológicos”, esclarece a nota técnica. Além disso, a proposta do Executivo impõe iluminação artificial inadequada, especialmente quando mantida durante a noite, pois provoca distúrbios de sono, cansaço extremo e estresse.
As tomadas também são essenciais para o uso de ventiladores no verão e de aquecedores no inverno. “Não é bem assim que novas casas prisionais utilizam concreto de alto desempenho para evitar temperaturas extremas”, escreve o Nudep. “A inspeção técnica realizada na PEC II pela Defensoria Pública do RS constatou índices de calor que podem ter consequências graves à saúde, incluindo risco de insolação e até danos cerebrais em exposições prolongadas. Um parecer técnico destacou a ausência de ventilação mecânica e a ausência de ventilação cruzada nas celas”.
Para Renata, os esforços do Estado deveriam ser redirecionados a medidas como oficinas para qualificar profissionalmente os apenados. “Mas o sistema não quer um preso ressocializado”, lamenta. “O que eles podem fazer para desmotivar, frustrar e [fazer] tu continuar no teu erro eles fazem. Eles não aceitam o preso sair da cadeia e ter uma vida normal. Pro resto da vida, tu vai ser um criminoso”.
Recentemente, o marido de Renata foi transferido de Passo Fundo, onde ela mora, para a Penitenciária Modulada Estadual de Charqueadas (PMEC). Mãe de dois filhos, ela agora viaja 200 km, duas vezes por semana, para visitar o cônjuge. “Passo um dia inteiro na fila. É uma forma que eles têm de oprimir o preso, oprimir a família com viagens”, afirma.
As condições precárias do encarceramento acabam sendo vividas também, de certa forma, pela família dos presos. Além de passar por longas filas e revistas em toda visita, Renata relata já ter passado por situações em que a visita foi negada sem explicações plausíveis.
“As normativas que a Susepe [Superintendência dos Serviços Penitenciários] exige do preso e do visitante mudam toda hora. A gente pode levar cinco itens por visita: dois potes de salgado e um de doce; se for levar coberta é mais um item, meia é mais um item. É um trabalho de formiguinha”, diz a esposa.
Para Renata, isso dificulta a ressocialização. “A maior parte dos presos estão lá sozinhos e saem revoltados porque a família desiste de ir visitar, a gente não aguenta. Eu faço a comida na quarta, saio na quinta e fico o dia inteiro numa fila. Levo os potes de comida numa caixa de isopor com gelo. E é isso que ele vai comer até a outra quarta”, relata. “Eles exigem a convivência familiar para a ressocialização, mas ao mesmo tempo cancelam visita e mandam familiares embora. Teve a manifestação na terça e, na quarta, teve visita. Foi um inferno. O que eles querem é que a gente desista”.
Todas as vezes em que Renata citou as demais pessoas mobilizadas contra a retirada das tomadas em celas, referiu-se a elas como “as gurias”, “as meninas” na entrevista ao Sul21. Na terça-feira do dia 17, mulheres de Cruz Alta, Erechim, Carazinho e Canoas chegaram de manhã cedo na frente do Palácio Piratini para o protesto.
Questionada sobre o fato de que as mulheres são vistas com mais frequência na posição de zelar pelos apenados homens do que o contrário, Renata refletiu: “A mulher sempre dá mais essa demonstração de garra. Acho que a gente vem com esse dom do cuidado. Eu costumo dizer que Deus é mãe, não é pai – porque se fosse pai já tinha sumido. A mulher não abandona, mesmo sabendo que se fosse ao contrário não ia ser desse jeito. A mulher é um pilar dentro do sistema prisional”.
*Renata é um nome fictício usado a pedido da fonte, que não quer se identificar.