
Por Lucas Pitta Klein
Refrigeradores queimados, mesas e cadeiras reviradas, um cheiro insuportável, paredes mofadas, palco e estruturas de madeira inchadas e estoque estragado. Esta é a cena relatada com emoção por diversos donos de bar e casas noturnas da Cidade Baixa, ao entrarem nos seus locais de trabalho após as cheias. O boêmio bairro da capital dos gaúchos ficou cerca de duas semanas com grande parte das ruas com quase dois metros de inundação. Foram dias angustiantes para quem passou anos se dedicando a um empreendimento, sem ter como medir o tamanho dos estragos. Guilherme Carlin, um dos sócios do Espaço Cultural 512, lembra o que pensou ao entrar no bar após as águas baixarem: “Não sei se terei forças para continuar”.
Os relatos são de tristeza, preocupação e incertezas, mas o forte apoio da comunidade boêmia em torno de cada bar foi o que deu força para esses microempresários resistirem. Com cerca de 18 mil habitantes, a Cidade Baixa é o mais tradicional bairro boêmio da capital. Localizado na região central da cidade, faz fronteira com o Centro Histórico, o Parque da Redenção, o Campus Centro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e conta com forte história social e cultural.
Local do nascimento do Sport Club Internacional, da tradição de quilombos e desfiles de Carnaval, a CB – como também é conhecida – abriga alguns dos principais bares e casas noturnas de Porto Alegre. Visitamos alguns desses espaços situados nos perímetros mais afetados do bairro para entender como está a situação desses estabelecimentos neste fim de ano, seis meses depois da maior enchente da história do Rio Grande do Sul, em maio de 2024.

A primeira reclamação unânime dos empreendedores é da falta de comunicação e orientação eficiente da prefeitura que ocorreu durante a tragédia. Nenhum deles imaginava que a água chegaria a um metro e meio, e relataram que, se soubessem disso, fariam um outro tipo de operação para esvaziar o térreo dos bares. Três dias depois do início das inundações no Centro Histórico de Porto Alegre, a enchente chegou na região. Às 14h30min do dia 6 de maio, segunda-feira, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), publicou um vídeo nas redes sociais anunciando que a Casa de Bombas 8, próxima à Rótula das Cuias, responsável pela proteção e evacuação hídrica dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus contra cheias, estaria sendo desligada por segurança — recomendando a evacuação dos bairros.

“Eu estava no super fazendo compras quando saiu o vídeo, correria total das pessoas. Parecia tipo um apocalipse. Larguei as compras em casa e fui correndo tirar do bar o que consegui”, diz Leonardo Serrat, sócio do Guernica. Quando chegou no bar, conseguiu tirar apenas parte do estoque e algumas mobílias. Assim como os outros comerciantes, ele achou que seria um alagamento raso.
Gabriel Lopes, proprietário do Gal Bar e Arte, estava em casa no momento em que foi alertado sobre o que estava acontecendo por outros baristas da rua. “Peguei um Uber, e o carro já não passava mais pela [avenida] Ipiranga pra Cidade Baixa, tive que vir a pé achando algum caminho possível”, conta. “Chegando, subi o sistema de som e dois freezers pro segundo andar, foi isso que salvou o espaço”, diz ele, se referindo ao fato de ter conseguido voltar com a operação após as águas baixarem.

Ele pensou que, com essas poucas medidas, poderia oferecer shows e gelar a bebida no bar — que já tinha as caixas de som elevadas. “O freezer eu não ia conseguir subir sozinho”, explica. Mas populares que estavam passando na rua viram a cena e o ajudaram. Gabriel, no entanto, perdeu toda a sua cozinha.
“Um metro e meio? Ninguém imaginava” — Guilherme Carlin, Proprietário do Espaço Cultural 512
Já a empreendedora Roberta Pierry, do Ninkasi Bar, conta que em poucas horas a água subiu numa velocidade impressionante e inundou o estabelecimento. “De meia em meia hora, subia mais um degrau. O negócio foi desesperador, em menos de quatros horas, já estava tudo tomado”, afirma. Algumas amigas chegaram repentinamente no Ninkasi, já sabendo da possibilidade de forte alagamento, com a intenção de ajudar a salvar o que pudessem. “Gurias, vamo lá, bora subir as coisas”, disse Roberta, alegando ter sido avisada do grau do perigo pelas amigas. “Como não tenho segundo andar, deu tempo de subir algumas mesas e cadeiras, umas em cima das outras, um ou outro freezer”, conta. Guilherme, do 512, colocou o que tinha de mais valioso em cima do palco, mas não imaginou que a água passaria da altura do mesmo. “Um metro e meio? Ninguém imaginava”, lembra.

É uníssono que não houve uma orientação correta e precisa das autoridades sobre o que poderia acontecer. Dessa forma, não deu tempo para os empresários pensarem em ideias que minimizassem as perdas. Eles afirmam que o aviso poderia ter vindo com mais antecedência para ampliar a possibilidade de defesa do patrimônio, assim como poderia ter sido estimada uma possível altura do alagamento. “Quem tem os dados, a estrutura do poder público e os especialistas são eles [o governo], é impressionante a falta de competência, o que gerou muitos danos evitáveis”, critica Pepe Martini, proprietário do Milonga Bar, que conseguiu subir somente algumas mobílias.

As cerca de duas semanas sem poder entrar nos estabelecimentos foram angustiantes. Enquanto em outros bairros e cidades vizinhas se contavam os mortos e se multiplicavam pedidos de resgate, alimentos, roupas, luz e água, de todo lugar partiam iniciativas de solidariedade. Nesse meio tempo, os empresários foram surpreendidos novamente: desta vez com a informação da lenta diminuição da altura das águas, estimada entre 10 e 20 dias.
Nesse período, mesmo flagelados e impossibilitados de trabalhar em seus estabelecimentos, se empenharam em ajudar outras pessoas na enchente. Pepe, por exemplo, organizou uma cozinha solidária, e Guilherme foi ajudar nos resgates e doações. Cada um articulou ações de solidariedade que podiam. “Precisa de um fogão? Eu empresto”, lembra Guilherme, do 512, que cedeu o aparelho para Roberta, do Ninkasi. Ela, por sua vez, recebeu uma funcionária atingida em sua casa. E assim por diante.
“No momento mais difícil, os comerciantes da Cidade Baixa se uniram”, conta Diego Dresch, do Caos Bar, e assim se organizou um grupo no WhatsApp que começou como uma forma de ajuda mútua e se tornou um fórum de discussão e efervescência de ideias. Dali, surgiu a intenção de fazer um festival chamado Viva CB, que aconteceu com sucesso meses depois. Trata-se de um grande evento de rua pensado para que mostrasse a união do bairro e pudesse ajudar os bares e os comerciantes na demorada reconstrução.
Os prejuízos dos donos de bares foram inestimáveis. No Guernica, foram mais de R$ 10 mil. No Milonga, mais R$ 15 mil. No Gal, R$ 20 mil, e R$ 30 mil no Caos e no Ninkasi. Mas o maior prejuízo foi o do 512, sendo de mais de R$ 250 mil. Mas números não são suficientes para explicar o tamanho do estrago.

Diego, do Caos Bar, afirma que tem em seu empreendimento um modelo de negócio em que as bandas são autorais e, em maioria, da região metropolitana. “Na mesma noite, chegavam a tocar três ou quatro bandas no bar. No mês, eram mais de 30, e nesse um ano de existência já foram quase 200 bandas que aqui se apresentaram”, conta. Diego diz que alguns dos músicos que moravam em Canoas, uma das cidades da região metropolitana mais atingidas pela enchente, perderam tudo, inclusive seus instrumentos.
Depois de seis meses da inundação, nenhum dos proprietários considera que seu empreendimento esteja plenamente recuperado. “Muitas das bandas que são da região metropolitana trazem um público que é também dessa região. Boa parte desse público foi atingida direta ou indiretamente pela enchente, em suas casas ou locais de trabalho, e até hoje não tem trem para que possam vir”, afirma Diego, explicando que o movimento no bar ainda não voltou ao mesmo do que era antes da enchente.
A cena vista pelos empresários ao entrarem em seus empreendimentos e se depararem com praticamente tudo destruído e sujo de lama, foi dramática. “Ali pensei: ‘já era, nosso sonho foi destruído’”, diz Gabriel, do Gal. Mas foram dos colaboradores e frequentadores que esses proprietários afirmaram tirar forças para reabrir e seguir com os estabelecimentos. “O mar de gente que mandou mensagem se prontificando a ajudar, dizendo que o 512 não podia fechar, realmente me emocionou”, conta Guilherme.

O músico Gabriel Cabelo, artista da banda Tribo Brasil e de outros grupos, figura carimbada há mais de duas décadas na cena cultural de Porto Alegre e região metropolitana, vive apenas com a renda de eventos. “Foi um mês e meio, quase dois, sem nenhum cachê. Até hoje não sei direito como sobrevivi. Sorte que o proprietário do apartamento que eu alugo também é músico, então entendeu minha situação e não cobrou o aluguel de maio”, conta.
Gabriel Cabelo participou de um programa do Ministério da Cultura que ofereceu dois depósitos de R$ 2 mil mediante a realização de um curso. “Genial a iniciativa”, elogia. O músico também afirmou que, assim como fez na pandemia, ajudou quem necessitava mais do que ele: “Além de participar do corre dos abrigos, peguei a bike e fui distribuir cestas básicas que os espaços de conhecidos demandavam. Cheguei a presenciar uma briga de duas pessoas, famintas, por uma cesta básica, uma das situações mais terríveis que já vivi”.
Entre trabalhadores da cultura, artistas, baristas, produtores culturais, cozinheiros, gerentes, administradores, caixas, seguranças, equipe de limpeza, fotógrafos, designers, técnicos de som e muitos outros trabalhadores, calcula-se que, nestes bares abordados, mais de 500 pessoas tiveram sua renda impactada na enchente de maio, o que pode refletir direta e indiretamente na qualidade de vida de suas famílias, podendo chegar a milhares de pessoas.

Apontada como único ponto positivo de toda a tragédia, a união das pessoas fez — mesmo — a força. “Aqui no Ninkasi, as gurias vieram e ficaram dias e dias nos ajudando a limpar, faziam até churrasco no latão no fim da noite, único momento de confraternização em meio à tanta tristeza e cansaço”, lembra Roberta. Ela relata ter uma comunidade feminina e LGBTQIA+ muito sintonizada com a ideia do bar e da cerveja Sapatista — de responsabilidade também dela –, de pertencimento e protagonismo a estes grupos no local.
No Caos, diversas bandas tocaram gratuitamente por algumas semanas, revertendo toda a arrecadação para o bar, o que ajudou a recuperar em pouco tempo 20 dos R$ 30 mil de prejuízo. Gabriel conta que no Gal Bar e Arte, houve um grande evento de retomada com o grupo Samba do Arvoredo. “Os guris fizeram na parceria, nos ajudaram muito, somos muito gratos”, recorda.

Pepe, do Milonga, diz que não pensou em fazer uma vaquinha online por acreditar que o bar, por ser um local comercial e cultural, deveria se viabilizar com a própria operação. Ele, no entanto, fez um único post nas redes sociais com o pix à disposição para quem quisesse ajudar, sem nenhuma campanha maior. Com isso, arrecadou mais de 90% do prejuízo.
Guilherme, do 512, foi o que mais precisou realizar iniciativas. Como não poderia pegar empréstimo por ainda estar pagando a dívida da pandemia e seu prejuízo na enchente ultrapassar os R$ 250 mil, abriu um financiamento coletivo — que arrecadou cerca de R$ 20 mil reais. Recorreu a programas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que ofereceram outros R$ 20 mil . Realizou também um festival de arrecadação chamado “Re-Existência”, com grandes atrações no Bar Opinião — também na Cidade Baixa — e um evento de reabertura, no qual compareceram mais de 400 pessoas.
Guilherme também abriu uma associação do 512 para envolver artistas e produtores culturais como um caminho de trabalho a fim de pensar novas produções e disputar editais culturais. Tudo para tentar dar continuidade ao funcionamento do bar. “Não chegamos a sanar nem metade do prejuízo ainda, vai demorar no mínimo mais um ano”, avalia. Léo, do Guernica, deu um passo adiante e está em vias de abrir um novo bar: “Diante de tanta desgraça que poderia ser evitada, não é tempo de recuar, e sim de avançar”. Vai abrir o bar A Palo Seco, também na Travessa dos Venezianos, em frente ao Guernica, com uma opção diferenciada de shows e gastronomia.
Alguns proprietários afirmam que o bairro já não estava bem — e por consequência, seus empreendimentos também não. “A Cidade Baixa só aparecia na mídia quando acontecia algum episódio de violência”, afirma Diego, do Caos Bar, alegando que o movimento do bairro já não era mais tão grande quanto o de anos atrás. Ele diz que o bairro é composto principalmente por comércios de pequeno porte e microempresários. “Quem pode ter dinheiro de reserva para tempos difíceis é a turma que empreende em outros bairros mais abastados, que possibilitam outro capital de giro, mas aqui praticamente ninguém”, afirma Diego.
Tanto a pandemia quanto a enchente foram eventos de grande impacto para o bairro, que serão sentidos ainda por muitos meses e até anos. No caso da enchente, os donos de bares esperam só em 2025 começar a sanar as dívidas e voltar a lucrar como antes. “Se houver novas enchentes e o sistema de proteção falhar novamente, vai ser impossível reabrir”, acredita Guilherme.
Segundo Pepe, os responsáveis por tanto estrago estão diluídos em séculos de ação humana de destruição da natureza, mas, para ele, o projeto de tendência neoliberal dos últimos governos municipais proporcionou a diminuição e precarização do aparato público e fez com que os alertas dos técnicos sobre a necessidade de manutenção do sistema de proteção contra cheias fossem ignorados e negligenciados, além de culminarem na incompetência da gestão de crise. “Foram os primeiros a dizerem que é impossível apontar culpados, sendo eles próprios, culpados”, aponta Pepe.

Apesar de tantas dificuldades e do sofrimento ao relembrar e conviver com as consequências da tragédia, os bares resistem. Seguem abrindo, fazendo pessoas felizes, proporcionando momentos de arte, lazer, afeto e pertencimento. Oferecendo cultura e gastronomia. Resistindo em meio a problemas climáticos, políticos, econômicos e sociais, tentando fazer a diferença para uma Porto Alegre que ofereça opções culturais diversas, potentes e condizentes com a sua história e com o lugar que pode ocupar na cultura brasileira e sul-americana.