
O Sul do país ocupa o quarto lugar no ranking de vitimização de homens por armas de fogo em 2022 e concentrou 11% dos homicídios masculinos dessa natureza naquele ano. Na região, o Rio Grande do Sul apresenta a maior taxa de homicídios, com 25,2 mortes para cada 100 mil homens. É o que revela a recém-lançada pesquisa “Violência Armada e Racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial”, do Instituto Sou da Paz. O relatório mostra que a mortalidade de homens negros é superior a de homens não negros em todos os estados, à exceção de Santa Catarina.
A terceira edição da pesquisa traça um panorama do impacto da violência armada na vida dos homens brasileiros e utiliza como banco de dados as informações do Ministério da Saúde, por meio do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), consolidados para o ano de 2022. Além do recorte nacional, a pesquisa busca entender os impactos regionais e estaduais dessa violência, bem como analisa as dinâmicas criminais em Porto Alegre e outras quatro capitais brasileiras.
Na capital gaúcha, a disputa entre facções criminosas contribuiu para um aumento expressivo da violência armada, principalmente entre os anos de 2014 e 2016. Segundo a pesquisa, isso reflete como as dinâmicas de violência armada podem ser profundamente influenciadas por transformações internas nas próprias comunidades e bairros, marcados por décadas de segregação social e desigualdade. Esse cenário fez com que houvesse uma diferença grande entre as taxas de homicídios no interior e em Porto Alegre.
O relatório destaca que, a o longo da década de 2010, a cidade passou por transformações significativas nas suas dinâmicas de criminalidade, impulsionadas por fatores como a reorganização do tráfico de drogas, o aumento da violência letal e a resposta das autoridades públicas, que alternaram políticas de repressão e tentativas de mediação. O crescimento da violência armada esteve fortemente atrelado a uma rede de disputas internas entre coletivos criminais locais, como o Bala na Cara (BNC) e o Antibala.
O material divulgado pelo Instituto Sou da Paz traça um histórico desse cenário na cidade. O grupo BNC, fundado em 2005, se consolidou como um ator central no cenário criminal de Porto Alegre. A facção expandiu seu domínio por meio da eliminação violenta de gangues rivais e da apropriação de territórios, o que desestabilizou as dinâmicas criminais estabelecidas na capital gaúcha. Antes da ascensão da BNC, algumas áreas de Porto Alegre mantinham uma divisão negociada de territórios entre grupos menores, garantindo certa estabilidade no tráfico de drogas e evitando confrontos armados. No entanto, a expansão agressiva da BNC colocou fim a esses acordos e acirrou a competição violenta.
Em 2015, em oposição à BNC, surgiu a coalizão criminosa Antibala. Segundo a pesquisa, esse coletivo, formado por gangues menores que buscavam conter o avanço da BNC, inaugurou uma nova fase de polarização no crime organizado de Porto Alegre. A partir de então, BNC e Antibala se tornaram as duas principais forças criminais na capital, rivalizando pelo controle dos mercados ilegais e das áreas periféricas.
A guerra entre esses dois grupos, conhecida localmente como “embolamento”, levou a uma intensificação dos confrontos, que o Instituto identifica terem culminando em um recorde de homicídios na Capital, com bairros registrando taxas acima de 200 mortes por cem mil habitantes entre 2013 e 2016. O período foi marcado pela escalada dos homicídios armados resultantes das disputas entre grupos rivais, que passaram a predominar nas periferias da cidade. Em termos de violência armada, a cidade registrou a maior taxa de homicídios masculinos, quase 100 por grupo de cem mil, no ano de 2016.
O relatório aponta que as taxas de Porto Alegre começam a declinar após o fim do conflito territorial entre as facções em disputa na Capital, e seguem em tendência de redução nos anos recentes, após a implementação do programa RS Seguro, política pública focalizada na redução de homicídios.
“É preciso compreender os diferentes cenários regionais e implementar políticas públicas capazes de atuar sobre diversos fatores de risco, estruturais e conjunturais, que sujeitam a população negra à violência armada”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
A análise do Instituto revelou que as armas de fogo foram as responsáveis por quase 38 mil mortes anuais de homens no Brasil entre 2012 e 2022. Esse número indica que para cada três homens assassinados no Brasil, dois são mortos por armas de fogo.
É justamente na fase produtiva dos homens em que cresce a chances de mortes, já que 43% das mortes ocorrem na faixa de 20 a 29 anos; e 40%, entre 30 e 59 anos. Porém a pesquisa chama a atenção para o sistema de desigualdade racial que também recai sobre as vítimas da violência armada. Homens negros são 79% das vítimas, sendo três vezes mais propensos a serem mortos por armas de fogo do que homens não negros.
“A desigualdade racial está no cerne da mortalidade por arma de fogo no país”, afirma Carolina. “A violência armada que atinge sobretudo os homens negros é uma realidade que permanece ao longo do tempo e reflete as vulnerabilidades estruturais que afetam a população negra”.
No ano de 2022, foram registradas 4.702 notificações de violência armada não letal contra homens no Brasil, de acordo com a pesquisa. A desigualdade racial também é notada nos dados de violência armada não letal contra homens, os homens negros são a maioria das vítimas em quatro das cinco regiões do país. No Norte e Nordeste, representam mais de 80% das vítimas, enquanto na região Sul, os não negros são 65%. Porém, a análise dos números em termos relativos revela que todas as regiões apresentam taxas de notificação de violência armada não letal superiores para os homens negros.
As informações disponíveis sobre a autoria da agressão armada indicam que a maior parte das pessoas que cometem a agressão é desconhecida, o que representa 46% dos casos. Já as pessoas conhecidas são 17% e 7% são policiais. A idade das vítimas também altera o perfil dos agressores, os autores conhecidos têm uma maior participação nos casos de violência armada contra crianças, eles representam 32% dos algozes. Já entre os adolescentes e adultos jovens, os policiais respondem por 9% das agressões.