Geral
|
26 de novembro de 2024
|
16:17

No Sarandi, mulheres relatam sensação de abandono seis meses após enchente

Por
Isabelle Rieger
isabellerieger@sul21.com.br
Seis meses após a enchente de maio, bairro na Zona Norte de Porto Alegre ainda sofre com as consequencias das enchentes. Na foto, Lucimara Pizzuti e um dos equipamentos da distribuidora de bebidas que funcionava em sua casa antes das enchentes. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Seis meses após a enchente de maio, bairro na Zona Norte de Porto Alegre ainda sofre com as consequencias das enchentes. Na foto, Lucimara Pizzuti e um dos equipamentos da distribuidora de bebidas que funcionava em sua casa antes das enchentes. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Desamparo, tristeza, luto e cansaço. São esses os sentimentos que Marlene Duarte descreve quando fala dos seis meses transcorridos desde a enchente de maio no bairro Sarandi, um dos mais atingidos pelas águas. Diariamente, ela limpa e reorganiza sua casa no final da Avenida Toledo Piza, próxima a um arroio, mas ainda não tem coragem de morar lá de novo. “Eu fico com o meu namorado na casa dele, não consigo dormir aqui, tenho medo que a água volte”.

Marlene conta que tentou um dia dormir em sua casa, mas não conseguiu. A lembrança da água invadindo a residência era forte demais para que sua mente ficasse tranquila. Embora não consiga voltar de vez, desde que a água baixou, no início de junho, ela se dedica a reconstruir sua casa, que é própria. No pátio, ela desenhou por cima das marcas da água vários girassóis. O desejo de Marlene é vender a casa, mas ela diz que se sente desamparada: “quem vai comprar uma casa aqui no Sarandi? Não tem outra opção para mim senão continuar no bairro”. Desculpando-se pelas lágrimas que teimam em cair, ela diz que se sente abandonada pelos responsáveis pela gestão da cidade.

A filha de Marlene, Liane Duarte, vive situação semelhante. Ela está hospedada na casa da cunhada, dividindo um quarto com a filha, Isabele, e o marido, no segundo piso de uma construção na rua Rodrigues Moreira. No térreo da construção, ficavam sua casa e o bar que fazia parte da composição da renda da família. Tudo foi inundado pela água e, até hoje, está inabitado. Agora, Liane sobrevive com bicos de comércio via Mercado Livre e seu marido, que chefiava o bar, trabalha no setor da construção civil. Isabele cursa Administração e, neste momento, está desempregada, buscando outro emprego após ter saído de um estágio na época das enchentes.

Seis meses depois, o único auxílio financeiro que Liane diz ter recebido foi o Reconstrução, iniciativa do governo federal que repassou R$ 5.100 para famílias afetadas no Rio Grande do Sul. Embora a parcela tenha auxiliado a família a reconstruir o portão de frente da casa, ainda faltam outras reformas que viabilizem descer as escadas e voltar para casa. “A gente limpou com lava-jato a nossa casa exaustivamente, mas é um trabalho muito pesado”, explica Liane.

Para reconstruir a moradia, Liane conta com o auxílio de vizinhos e doações. Ela se inscreveu em um projeto chamado “Mulheres da enchente”, idealizado por mulheres de Porto Alegre que entenderam que o trabalho voluntário de mediação de bens e repasses financeiros para a população feminina atingida pela enchente de maio seria uma forma de ajudar uma camada da população que não recebeu o amparo necessário dos órgãos públicos. Liane perdeu a maioria dos móveis de sua casa, mas mostra a cozinha e o rack novos que ganhou do projeto.

“A gente queria que fosse algo mais perene, porque, no momento em que estava acontecendo a enchente, as pessoas estavam precisando de alimentos, de roupas, de um teto durante aquele momento. Só que quando a água baixasse, as pessoas iam continuar precisando, então pensamos em algo como um auxílio permanente”, explica uma das idealizadoras do projeto, Amaralina Xavier. Como as organizadoras não são do bairro, mas de outras regiões da cidade, elas contam com a ajuda de articuladores locais para formarem a ponte entre as mulheres atendidas e a equipe organizativa, que as coloca em contato com quem pode doar itens e organiza rodas de conversa, por exemplo.

Liane é o ponto de articulação em sua família, como se define. Ela auxilia nas tarefas da casa compartilhada e gerencia as atividades familiares, que a ONU Mulheres define como trabalho de cuidado. Liane também empresta seu fogão para a vizinha da frente, que não consegue cozinhar depois que perdeu o seu na enchente. As duas conversam e acabam também realizando um trabalho de cuidado mútuo.

As mulheres investem no cuidado com familiares e tarefas domésticas mais que o dobro do tempo que os homens dedicam ao chamado “trabalho não remunerado”, de acordo com artigo publicado na revista científica Mnemosine pelos pesquisadores Raquel Guedes (UFPE), Rafael Bezerra (UFPE) e Fábio da Silva (Uneb). “Ao todo, as mulheres dedicam, em média, cinco horas por dia a trabalhos não remunerados que não geram autonomia, em comparação com apenas duas horas dedicadas pelos homens. Nesse sentido, há uma divisão de tempo entre a mulher profissional, a esposa e a mãe para tentar dar conta de todas as atividades dentro e fora do lar”, explicam os autores.

 

Liane Duarte mora junto com sua cunhada porque sua casa ainda está sem condições de habitação após as enchentes. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
A casa de Liane também servia como um bar, que auxiliava no sustento da família. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Na foto, Isabele, Marlene e Liane Duarte na casa de Marlene. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Os extremos do clima impostos pelo aquecimento global também acentuam essa desigualdade: uma pesquisa do Observatório do Clima indica que mulheres pobres de periferias urbanas são a maioria dentre as vítimas de enchentes e outros eventos climáticos. Por isso, Amaralina defende a ideia de um projeto voltado exclusivamente para mulheres: “pelo nosso olhar, a gente sabia quem estaria entre as populações mais vulneráveis e o nosso grupo entende que, a longo prazo, são as mulheres que acabam sofrendo mais”.

A mestranda em Política Social e Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bacharela em direito Alícia Marques concorda com a observação de que mulheres estão dentre as populações mais vulneráveis quando ocorre um desastre climática nessas proporções, com o recorte de classe e raça. Mulheres negras periféricas estão dentre as que mais sofrem com as consequências de desastres climáticos. Em momentos de crise, a violência de gênero, por exemplo, acaba se revelando de forma mais intensa, assim como outras condições, como o trabalho de cuidado não remunerado em prol das pessoas de sua família.

Alícia conta que, quando estava se voluntariando, em maio, em um abrigo construído emergencialmente no bar Opinião, no bairro Cidade Baixa, ela atendeu uma família composta por um homem, uma criança e uma mulher. Seu papel era de prestar assistência para as pessoas que chegavam lá. Alícia, no momento do acolhimento, perguntou à mulher o que ela precisava. Ela, prontamente, respondeu que queria roupas para seu filho e foi embora. Quando voltou pela segunda vez à ilha de distribuição de roupas, Alícia perguntou de novo o que precisava. A mulher respondeu que estava atrás de roupas para seu marido. Foi só na terceira vez que a mulher voltou que Alícia conseguiu perguntar de forma enfática o que ela estava precisando. Para a pesquisadora, este foi um momento de percepção do quanto o trabalho de cuidado está arraigado na forma de agir das mulheres, que têm seu tempo utilizado para cuidar dos outros e não de si.

Avó de Ísis e mãe de Tayná, Anita Carpes reclama da falta de iniciativas comunitárias entre as mulheres do bairro Sarandi. Ela gostaria que suas vizinhas conseguissem compartilhar as experiências que viveram durante as enchentes, como forma de auxílio mútuo e enfrentamento ao trauma. Embora já estivesse acostumada com as enchentes do bairro, Anita não consegue falar da sua saída de casa em maio sem chorar. Ela mora na Rua Josué de Castro, que foi severamente alagada e saiu na madrugada de sábado de casa. Ao lembrar do momento em que estava fora, vem raiva e indignação. Anita se ressente de políticos que, segundo ela, “usaram o bairro como palanque eleitoral e nunca mais voltaram”.

Ísis brinca no pátio e posa diversas vezes para a câmera. Ao contrário, a avó, em um primeiro momento, não quis tirar fotos. “Não me coloca como coitadinha, eu não sou coitadinha”, afirma. Ela explica o incômodo com a forma como mulheres periféricas como ela são retratadas. Anita frisa que não é vítima, mas uma pessoa que vive conforme o que a vida oferece. Anita e sua filha mantêm as terapias para Ísis no setor privado, não conseguiram, ainda, a assistência na rede pública. O pagamento e o deslocamento, no entanto, ficaram mais desafiadores após as enchentes. “Antes, as fonoaudiólogas e outros terapeutas moravam ou atendiam no Sarandi, mas, depois das enchentes, temos que fazer deslocamentos mais longos. Vamos sempre de carros de aplicativos, então já cheguei a gastar R$ 200 de Uber em um único dia”, explica Tayná.

A algumas quadras de distância de Anita, na rua Jacob Philippsen, moram Lucimara Pizutti e sua família. Seu marido tinha uma distribuidora de bebidas que fechou em razão das perdas por causa da enchente. Na casa da família, a água chegou na janela do segundo andar, a uma altura de 3 a 4 metros. Os equipamentos da distribuidora ainda não foram completamente limpos e retirados da casa, já que são muito pesados, explica Lucimara. Sem a fonte de sustento, seu marido agora trabalha como vendedor. Lucimara tem um filho com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e após as perdas materiais causadas pela enchente, não consegue arcar com os custos das terapias que ele precisa fazer.

 

Anita Carpes e sua filha Tayná compartilham a rotina com Ísis, filha de Tayná. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Para Isabel Freitas, integrante da organização feminista Marcha Mundial das Mulheres, uma medida para desafogar o trabalho das mulheres, garantindo sua autonomia, seria implementar medidas de alimentação comunitária no bairro. A militante destaca a experiência do movimento em construir um restaurante comunitário em Canoas e a percepção sobre a importância de criar espaços solidários de alimentação. “Dessa forma, a mulher não vai precisar planejar toda a alimentação da família, nem se ocupar com o trabalho de preparação dos alimentos. Ela vai ter o tempo para ela”, explica Isabel.

Em Porto Alegre, existem seis restaurantes populares geridos pela Prefeitura que funcionam de segunda a sexta-feira em diferentes regiões da cidade. O restaurante do Centro também atende aos finais de semana. Ainda, movimentos sociais promovem iniciativas de cozinhas solidárias, como é o caso da Cozinha Solidária da Azenha, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Cozinha Vida Nova, do União Nacional por Moradia Popular (UNMP/RS), dentre outras. Para ingressar nos restaurantes populares da Prefeitura, é necessário estar inserido no Cadastro Único. Já nos restaurantes vinculados aos movimentos, o acesso é livre.

Embora existam políticas específicas para a população feminina em questão de enfrentamento à violência de gênero, como é o caso das delegacias de atendimento às mulheres ou das casas de acolhimento a mulheres em situação de violência, após desastres climáticos, parece que ainda falta o entendimento de que é necessário criar formas de acolhimento a essa população, explica Alicia. “Não há políticas públicas específicas para a população feminina após as enchentes porque não há interesse do Estado em formulá-las”, afirma.

Embora o plano apresentado pela Prefeitura de Porto Alegre em junho deste ano para a reconstrução da cidade após as enchentes englobe ações como financiamento de projetos para adaptação climática, incentivo à oferta de habitação de interesse social, por exemplo, políticas específicas para mulheres envolvendo o trabalho de cuidado não são citadas. Nem em nenhum outro plano. “Acho que sobre essas questões climáticas, a gente tem que criar um protocolo com perspectiva de gênero”, define Alícia.

Questionado pela reportagem sobre políticas públicas específicas para mulheres periféricas, a Prefeitura de Porto Alegre respondeu, em nota, que as políticas elaboradas após a enchente priorizam todas as pessoas, independente de raça ou gênero, focando nos bairros mais atingidos pela enchente. “A Prefeitura de Porto Alegre destaca que as ações de reconstrução pós-enchente são conduzidas de forma inclusiva, priorizando a necessidade de cada pessoa, independentemente de raça ou gênero. Esse princípio garante que as comunidades mais vulneráveis, as mais impactadas por desastres naturais, estejam incluídas prioritariamente nas ações de reconstrução, tendo como critério os bairros mais atingidos pela inundação.”

Da parte do governo estadual, foi enfatizado que as políticas públicas emergenciais e de reconstrução têm como beneficiários prioritários mulheres periféricas ou em situação de vulnerabilidade, ainda que não exista alguma ação específica para essa população após as enchentes. Confira a seguir políticas públicas estaduais que, embora não sejam voltadas exclusivamente às mulheres, as comtemplam prioritariamente:

Aluguel Social + Estadia Solidária
O valor do benefício é de R$ 2.400, que corresponde a R$ 400 pelo período de seis meses.

Volta por Cima
Programa destina R$ 2,5 mil para famílias desabrigadas ou desalojadas, em pobreza e pobreza extrema.

Pix SOS Rio Grande do Sul
O Governo do RS gerenciou as doações da campanha Pix SOS Rio Grande do Sul e encaminhou R$ 2 mil para 36.876 famílias em 89 municípios. Os recursos vieram de doações via pix ou depositadas em contas internacionais.

Outras ações do Governo do RS que contemplam as mulheres

Cuidar Tchê 60+
Vai beneficiar 1,9 mil idosos em vulnerabilidade que foram afetados pelas enchentes de abril e maio no Rio Grande do Sul. A iniciativa fornece kits de itens essenciais no valor de R$ 3 mil.

Mulheres Empreendedoras
Parceria de entidades públicas e privadas com o objetivo de estimular o empreendedorismo feminino no Rio Grande do Sul, em especial de negócios liderados por mulheres em situação de vulnerabilidade social e as de municípios atingidos pelos eventos climáticos. 

Casa Violeta
Inaugurado no final de maio, em Porto Alegre, o espaço busca garantir a permanência estendida e assistência às mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade atingidas pelas enchentes.

Atendimento especializado à mulher
O Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado (CRM-VAM-RS) é o espaço de atendimento especializado para as mulheres em situação de vulnerabilidade no Rio Grande do Sul. Instituído por meio do Decreto Nº 41.509, de 27 de março de 2002. Está localizado em Porto Alegre na rua Miguel Tostes, 823. 

 

As marcas da enchente ainda são visíveis no bairro. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Marcas no bairro Sarandi. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

 

No Sarandi, o cenário é composto por casas com marcas de água nas paredes. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Leia também