
“Estava com seis anos e era uma menina muito esperta, linda mesmo”. Assim os pais de Aline dos Santos Reis descrevem a filha, mais de um ano após a morte da criança por complicações da H1N1 – e pelo que consideram ter sido uma negligência. A indignação com a demora da polícia para investigar o caso os levou a reviver e compartilhar o que aconteceu em maio de 2023. “Decidimos não nos calar, doa a quem doer, porque não vai doer mais do que em mim e no meu marido. Ninguém perdeu mais que eu e ele. Ninguém está livre disso acontecer”, disse Rosane Aparecida dos Santos, mãe de Aline, ao Sul21.
Rosane e o marido, Márcio Roberto dos Santos Reis, são agricultores e vivem em uma comunidade quilombola em Lagoão, município com 6,5 mil habitantes que fica a 240 km de Porto Alegre. Em maio de 2023, eles levaram Aline ao Hospital Municipal da cidade porque a filha apresentava sintomas gripais. Lá, ela foi atendida por um médico que receitou um xarope e recomendou repouso por três dias. Era apenas uma gripe, segundo ele.
Três dias depois, Aline não havia melhorado e os pais retornaram com ela ao hospital. A criança foi atendida pelo mesmo médico que, sem encaminhar exames, receitou o mesmo medicamento e tornou a dizer: é uma gripezinha. No dia seguinte, entretanto, Aline piorou. Com dificuldade para respirar, foi novamente levada ao hospital. Dessa vez, foi atendida por uma enfermeira – não havia médico de plantão.
“Pedimos para agilizar, que nos encaminhassem ‘para fora’”, disse Rosane, se referindo ao hospital de Espumoso, município a 95 km de Lagoão. “Tivemos que esperar chegar a enfermeira responsável. A gente aguardou meia hora. Quando chegamos a Espumoso eles atenderam rapidamente, mas já passaram para nós, depois do raio-X, que a situação era grave”.
A pediatra que atendeu Aline em Espumoso constatou o quadro grave de H1N1 e chegou a questionar os pais porque não haviam levado a filha para atendimento antes, achando que fosse esse o caso. A criança foi então encaminhada para uma terceira cidade, Passo Fundo, onde foi internada na UTI pediátrica. Lá, faleceu no mesmo dia por septicemia – ou infecção generalizada –, insuficiência respiratória e pneumonia.
“Aqui em Lagoão, a saúde é bem complicada”, resume a mãe de Aline. O hospital do município trata-se, na verdade, de um pronto-atendimento. É o único posto de saúde da cidade e não conta com especialistas.
Segundo o advogado da família, Arilson Jesus, comunidades quilombolas como a em que Aline vivia com os pais têm o acesso à saúde dificultado. “Isso que aconteceu com a Aline acontece com os mais velhos também. Essa falta de acesso é generalizada”, afirma.

Especialista em saúde coletiva, o médico e professor da UFRGS Alcides Miranda reitera que o caso de Aline não é isolado e que tem a ver com a condição de vulnerabilidade da família. “O que aconteceu pode envolver erros individuais de condução do caso, mas isso não exclui um erro sistêmico. É um sistema [de saúde] que não consegue reconhecer casos com maior risco, maior exposição a desgastes. Esses casos vão continuar se repetindo”, lamenta.
Somado a isso, há o estigma. Essas pessoas chegam a ser desprezadas ao acessar o serviço de saúde, de acordo com o especialista. “Longas filas, atendimento mal feito, às pressas, sem o devido cuidado – tudo isso é pior no caso das populações vulneráveis, pelo estigma que elas têm”, diz o professor. “Essa família, especificamente, está tomando a iniciativa de ir atrás e denunciar – é algo muito positivo, porque geralmente as populações sofrem caladas sem acreditar que algo vai ser feito sobre a condição em que elas já vivem há tanto tempo”.
Existem diversos tipos de vulnerabilidade, segundo Miranda. Biológica, Social, Psicológica ou uma combinação delas. “A população quilombola passou por longo processo de alienação. Têm havido, nos últimos anos, políticas mais centradas nesse tipo de população. Entretanto, são na saúde primária. Ainda não chegou na assistência especializada, nas emergências dos hospitais, esse tipo de prioridade”, afirma o especialista.
O conhecimento, a tecnologia e a logística para aperfeiçoar esse sistema já existem, conforme Miranda, há décadas: “Já é possível estabelecer a marcação de vulnerabilidade. Se uma pessoa chegou ao atendimento e foi identificada essa condição, seja individual, familiar ou do âmbito de domicílio comunitário, o enfoque deve ser diferenciado. Não vai ter que ficar horas esperando, o exame não é o mesmo da rotina, tem que ser agilizado”.
No entanto, quando há iniciativa para tanto, faltam recursos. “A sensibilidade para identificar esse risco implica aprimorar os prontuários clínicos e epidemiológicos – eles são mal feitos, são fragmentados”, explica Miranda. “O cartão SUS não funciona como prontuário. Precisamos de um sistema de registro, com acesso em qualquer serviço, que demarca uma pessoa em risco ou vulnerabilidade e já acende uma luz amarela de que o caso requer atenção redobrada. Mas não se tem acesso a um prontuário único no país inteiro, e não há esse marcador”.
Sobre o caso específico de Aline, Miranda diz que as condições do atendimento são importantes para entender se houve negligência médica ou não. “A negligência ou a imperícia podem ter ocorrido, mas o CRM teria de investigar a conduta médica. Muitas vezes, o profissional não consegue fazer o diagnóstico em tempo hábil. Também pode haver condições infraestruturais que dificultam o diagnóstico e a intervenção correta. Pode ser uma combinação de fatores”, pontua. “A família demanda judicialmente contra o profissional, mas o prefeito, o governador, o Ministério da Saúde estão isentos e, na verdade, há uma responsabilidade também nessas esferas. Se há conhecimento para aprimorar esse tipo de sensibilidade, por que não implantar nos sistemas de saúde?”.
Em 1º de setembro de 2023, Rosane e Márcio foram até a 16ª Delegacia de Polícia Regional do Interior, no município de Sobradinho. Os pais de Aline prestaram depoimento para um boletim de ocorrência que narra os fatos e identifica o médico responsável pelos dois primeiros atendimentos da criança como suspeito.
Até agora, a família não obteve retorno sobre a investigação. “Eu acho um total descaso. Se fosse outra pessoa, eles iriam atrás. A pessoa que é humilde, que é pobre, eles não estão nem aí. Sempre foi assim aqui, para falar a verdade”, desabafa Rosane.
A mãe de Aline lembra com exatidão do dia em que ela e o marido foram até a delegacia: “Eles disseram para nós que sentiam muito e escreveram ali. E disseram que iam chamar as testemunhas. Eu não sei se eles chamaram”.
O policial civil responsável pelo caso, Éverton Schmidt, afirmou que assumiu o inquérito em abril deste ano. Segundo o agente, já haviam sido realizadas diligências como solicitação dos prontuários e laudos periciais médicos. Com as enchentes de maio, no entanto, o inquérito foi perdido.
“A delegacia foi totalmente destruída, sendo perdidos documentos físicos, computadores e telefones celulares com contato do advogado da família. Após reestruturarmos este órgão policial, foram recuperados os documentos. No momento, o procedimento encontra-se em fase de intimações e oitivas de testemunhas”, explicou Éverton por e-mail, e adiantou que não tem autorização para dar informações mais detalhadas.
Ao Sul21, o médico* que atendeu Aline disse que até agora não foi procurado pela polícia. “Sempre recomendo, se não melhorar, retornar para nova avaliação. Agora, como não tenho os prontuários, fico sem poder responder quanto tempo depois ela retornou ao serviço para ser reavaliada. Acredito que houve demora da família para retornar”, afirmou.
Informado que os pais voltaram ao hospital com Aline passados três dias do primeiro atendimento, ele disse novamente: “Sempre deixo bem claro, caso não melhorar, retornar para reavaliar. Infelizmente os pais negligenciam”. Em seguida, o médico apontou possíveis causas para a complicação de saúde da criança: “Lá é interior e fazia muito frio. Pode ter sido intoxicação, porque queimam lenha para aquecer o interior das casas. Lógico, além de qualquer outra doença pulmonar que poderia ter agravado”.
O site do Conselho Federal de Medicina revela que, atualmente, o médico tem o registro ativo no Paraná. Já uma declaração de atividade profissional, emitida pela Secretaria Municipal da Saúde de Lagoão, mostra que em dezembro de 2023 o médico não trabalhava mais para o município gaúcho.
Enquanto isso, os pais de Aline vivem o luto pela filha que morreu dias antes do aniversário de sete anos. A mãe conta que ela tinha pedido para comemorar com um bolo na escola. “Às vezes as peças nem encaixam na cabeça. Mas a gente espera justiça”, diz Rosane. “Claro, não tem como reparar a perda. Mas a gente não quer que aconteça de novo. A gente quer melhoria na saúde, porque não é fácil”.
*O médico não foi identificado na reportagem porque ainda não existe um processo contra ele, que afirma sequer ter sido notificado pela polícia