
Às 10h30 da manhã de 30 de abril, Yá Patrícia do Xangô, também conhecida como Mãe Patrícia, começou a perceber que a terra deslizava de terrenos vizinhos sobre o barracão da Ilê Obá Kosso Asé Ogunjá Agadá, a Casa de Orixás A Roça, localizada no município de Feliz, na Serra Gaúcha. Quinze minutos depois, conta, já não sobrava muita coisa do espaço dedicado a cultos de matriz africana, tampouco a sede de um projeto social voltado para o acolhimento de mulheres vítimas de violência e outras instalações no mesmo terreno. Quatro meses depois das chuvas que devastaram o Rio Grande do Sul e causaram grandes estragos no município, Mãe Patrícia e representantes de outras entidades de matriz africana protestaram neste sábado (7) contra a falta de respostas do município para a situação do território. Eles planejavam levar a mobilização ao desfile de 7 de Setembro, mas em razão do mau tempo a cerimônia foi cancelada.
Com faixas com os dizeres “diga, não ao racismo” e “urgente a aplicação da lei 10.639” — que trata do ensino de história e cultura africana em escolas públicas –, os manifestantes denunciaram o que seria uma omissão deliberada por parte do poder público local, que configuraria racismo religioso, em trazer soluções para a situação do território de 6,7 hectares, dos quais 1,5 hectare é utilizado para a práticas do Candomblé, atingido primeiro pelo deslizamento de terra de 30 de abril e depois pelas sucessivas chuvas que permaneceram caindo no Rio Grande do Sul no início de maio.
Em conversa com o Sul21 na sexta-feira (6), Patrícia explicou que vinha reivindicando, sem retorno, o apoio da prefeitura para que pudesse retomar as atividades de matriz africana, uma vez que o Barracão onde são realizados cultos ficou totalmente soterrado e ela não possui máquinas para fazer a limpeza do local, bem como outras instalações do terreno, como o espaço que serve de casa de acolhimento e a casa da mãe dela, que permanece desabrigada desde o final de abril. Patrícia conta que, ainda maio, cobrou da prefeitura a limpeza do acesso ao território para poder chegar às instalações, mas só foi atendida após denunciar publicamente que a falta de apoio se tratava de uma questão de racismo religioso. “Eu acusei a prefeitura 5 horas da tarde. De terça para quarta, eles colocaram as máquinas [para liberar o acesso]. Então, os processos são todos muito pontuais. Eu levei 14 dias para entrar dentro da Roça”, diz.
Contudo, quatro meses depois do início das chuvas, a situação do terreno permanece praticamente inalterada, impossibilitando a retomada dos cultos de matriz africana e demais atividades. “Na casa da minha mãe, que era de 60 m² e não sobrou nada, eles tiraram a terra de um lado e botaram do outro. Não tem segurança. Eu tive que trazer um geólogo do território quilombola para fazer análise do terreno, porque a análise da prefeitura é totalmente diferente da análise que o geólogo do Conselho do Território Quilombola me deu. A área que o geólogo diz que é de alto risco é três vezes a área que a prefeitura notificou para o Estado”, explica.

Patrícia afirma que já acionou o Ministério Público do Estado para cobrar da prefeitura uma intervenção, bem como a Defensoria Pública da União — em razão de se tratar de uma área de religião de matriz africana — e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Ainda sem uma solução, decidiu levar a cobrança para o desfile de 7 de setembro, contando com o apoio de outras entidades ligadas a religiões de matriz africana.
Ela explica que a Roça já desfilou em outros anos no 7 de Setembro, em razão do trabalho social realizado, mas que neste ano a manifestação teria um caráter diferente. “Nós e as mulheres de axé mandamos fazer faixas contra a misoginia, a perseguição política e cobrando o ensino da cultura afro dentro das escolas, porque tudo isso só acontece porque não existe educação”, diz Patrícia.

Mãe Patrícia conta que, às 10h30 de 30 de abril, uma barreira de cerca de 300 m, localizada em um terreno vizinho, deslizou para dentro da área da Roça, atingindo primeiro a casa de sua mãe, que conseguiu ser resgatada com vida a tempo. Na sequência, avançou sobre o barracão onde é realizada a prática do Candomblé.
“Duas cozinhas são soterradas, totalmente destruídas, o salão é destruído, os quartos de Santo, os fundamentos, foram todos eles fora, toda a biodiversidade. Como a gente já sabe o Candomblé não é oriundo do Rio Grande do Sul, então as folhas do Candomblé têm que vir de outros estados, as quais eu tinha aqui. Isso tudo soterrou em questão de 15 minutos, não foi mais que isso. Nós estávamos dormindo dentro, porque como tem os quartos dentro da Roça, eu estava com um pessoal de fora que eu atendo, fora da cidade e da cidade também. Normalmente o pessoal dorme dentro do barracão. Tudo foi soterrado”, relata.
A primeira reação dela foi ligar para a Defesa Civil do município, que orientou a saída do terreno. “Quando a Defesa Civil veio, nós já tínhamos descido, saído do território, porque não se sabia o que ia acontecer. Nunca nenhum de nós tinha passado por isso. Eu vou para o primeiro abrigo, que é na casa do meu irmão, e a gente fica acompanhando pelas câmeras. Seguiu deslizando ao longo de todos os dias que seguiu chovendo. A Defesa Civil interdita a Roça”, relata.

Posteriormente, a expectativa era de que fossem disponibilizadas máquinas para, primeiro liberar o acesso, e depois para ajudar a liberar o terreno, o que não aconteceu até o momento. “Eu precisava colocar máquinas aqui dentro para ver o que conseguiria resgatar, porque eu não tenho só o Candomblé. Eu tinha uma biblioteca com mais de 3.000 exemplares. Isso tudo dentro do espaço que soterrou. Os elementos do Candomblé, as obrigações, as louças, fora a parte do museu de Cultura, porque eu tenho objetos de tudo que é lugar do mundo, inclusive da África. Tudo isso estava na área em que ficou tudo caindo. A terra derrubou uma parte do barracão e a outra parte ficou inacessível, até porque tinha que se respeitar a Defesa Civil”, diz. Patrícia conseguiu entrar na Roça apenas após a reclamação que resultou na abertura do acesso.
Ela aponta que o descaso com a situação do território não é novidade, uma vez que, em junho do ano passado, já tinha protocolado junto à prefeitura e à secretaria de Obras um pedido de análise para o possível risco de deslizamentos de terra em áreas vizinhas que poderiam atingir a Roça. “A parte que deslizou começa a dar sinais de ceder em junho do ano passado. E a prefeitura simplesmente não responde protocolo nenhum. Eu tenho mais de 40 protocolos pedindo que eles venham ver, para que eles revitalizam o acesso à Roça, porque é uma área particular de uso público. Nada adiantou”, diz.