
Quando a água baixou após mais de 20 dias de inundação no bairro Farrapos, os moradores puderam voltar e iniciaram o doloroso trabalho de limpeza de suas casas. Também viram grande parte de seus pertences virarem pilhas de lixo nas ruas, se transformando em um novo fardo para quem buscava retomar a vida. Com o tempo, esses resíduos foram levados pela Prefeitura para os chamados bota-espera, grandes terrenos que deveriam abrigar o material até que recebesse um novo destino. Quase três meses depois, dois bota-espera instalados no bairro Farrapos seguem sendo “lixões a céu aberto”, que frequentemente dispersam fumaça tóxica e um cheiro que dificulta a vida na região, inclusive trazendo riscos à saúde.
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Moradora do bairro Farrapos há 32 anos, Tuanny Uglione Maia destaca que as ruas ficaram tomadas por resíduos, em alguns casos, por semanas e que a comunidade “ficou feliz” quando as pilhas de entulhos retirados das casas alagadas foram removidas. “A gente ficou muito feliz que saiu o lixo da frente das nossas casas, conseguimos caminhar tranquilamente, até quando a gente descobriu que eles tiraram o lixo do bairro e deixaram no próprio bairro, em dois lixões gigantescos. De um, retiraram um pouco, mas tem lixo ainda, e tem outro gigantesco com muito lixo, todo lixo que saiu das casas aqui, todo esgoto, tudo que é tóxico tá ali”, diz.
Procurado pela reportagem, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) informou que a empresa MCT Transportes LTDA foi selecionada na semana passada como vencedora do chamamento público para fazer o transporte de Resíduos Sólidos do Desastre Natural (RSDN) dos dois bota-espera ativos na entrada de Porto Alegre — na avenida dos Estados, 1.763, bairro Anchieta, e na rua Voluntários da Pátria, 1.047, bairro Farrapos — para o aterro de inertes de Minas do Leão.
Em conversa como Sul21, o diretor-geral do DMLU, Carlos Alberto Hundertmarker, afirmou que os trabalhos iniciarão na manhã desta terça-feira (20) e deverão levar 45 dias para serem concluídos. O peso estimado dos resíduos depositados nos locais é de 37.450 toneladas.
Tuanny conta que mora há cerca de quatro quadras do bota-espera do bairro Farrapos e têm sofrido com a fumaça e o odor oriundos do local. “Infelizmente, no bairro acontece essas coisas de colocarem fogo pra tentar tirar o lixo da onde está. Subiu um odor terrível, terrível, terrível. Eu tava dentro do meu quarto, com as janelas fechadas, e inundou o bairro todo uma fumaça muito grande, como se fosse um incêndio. E aquele odor, eu posso lhe dizer que odor de esterco de cavalo, um odor ardido muito grande, e nós estamos tendo que lidar com isso, lidar com essa situação. O cheiro da fumaça já é tóxico, e mais esse cheiro horrível ainda, está muito complicado aqui para a nossa comunidade”, diz.
A moradora conta que, conversando com um vizinho, percebeu que ambos começaram a apresentar tosse após seguidos dias em que o bota-espera dispersou fumaça. “A gente está sentindo muita tosse. Eu e esse meu vizinho aqui da frente notamos isso, que a gente está com esses mesmos sintomas, a noite a gente tem muita tosse”, diz.

Hundertmarker afirma que há duas circunstâncias que estão causando a fumaça. “Uma é a diferença de temperatura. Às vezes, a temperatura está mais fria e os resíduos estão mais quentes, então isso cria uma condensação de ar. Choveu nesse período, esses resíduos ficaram úmidos. Quando estão muito tempo ali paralisados, tem uma temperatura maior, até porque teve outro dia que esquentou. Baixa temperatura, a sensação de fumaça, de condensação da umidade, é maior”, diz.
A segunda circunstância seria ligada a pessoas que invadem o terreno dos bota-espera e provocam incêndios. “Lamentavelmente, nós vemos alguns episódios em que algumas pessoas entraram e, mesmo com o monitoramento feito pela Guarda Municipal dos bota-espera, fizeram alguma queima de fios, principalmente, para retirar o cobre e tal. Isso é uma prática ilegal. Agora, iniciaremos amanhã essa limpeza, principalmente dos resíduos mais próximo à comunidade e vamos limpar isso o mais rápido possível”, afirma.
Professor do Curso de Engenharia Química da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Claudio Crescente Frankenberg visitou a região do bairro Farrapos recentemente e avalia que o grande problema relacionado aos bota-espera é que se tratam de espaços que deveriam ser emergenciais, em que os resíduos permaneceriam até que fossem levados para um destino adequado. Contudo, os únicos locais adequados disponíveis são os aterros sanitários, que não estavam preparados, no caso da Região Metropolitana de Porto Alegre, para receber o volume de resíduos da enchente.
“Eles já recebem todo o resíduo diário da cidade e ainda chegou todo esse outro material. Ninguém estava preparado para essa quantidade muito acima. O que acontece? Aquele bota-espera já está ficando um tempo muito maior do que se esperava. Esperava-se que rapidamente a gente conseguiria ter condições de levar isso para os aterros”, explica.
O professor Frankenberg ressalta que os resíduos levados para os bota-espera incluem diversos tipos de materiais, desde madeiras, plásticos, e vidros até materiais orgânicos, como lodo, vegetação e animais mortos. Essa mistura dificulta qualquer tipo de separação e, pior, começa a se tornar mais perigosa à medida que o material orgânico começa a se degradar, o que resulta na produção de vapores e da fumaça sentida pela população.
“Que tipo de vapor? A gente não tem ideia exatamente, porque tem uma mistura de coisas. Pode ser vapor da água, como pode ser vapor d’água com metano, pode ser vapor d’água com alguma outra coisa que a gente nem tem ideia, porque é alguma coisa decorrente da decomposição desse material orgânico. A mesma coisa é que vai começar a se produzir uma quantidade de chorume, que é aquele líquido dessa degradação, e, obviamente, em cima disso tu tem muitos animais que começam a se aproximar dessa região. Tu vai ter barata, ratos, muita mosca, principalmente aquela mosquinha que aparece quando tu deixa uma banana, mosca normal. Dependendo do horário e da temperatura, o cheiro vai ser mais intenso ou menos. Mas tudo isso interfere, porque esses bota-espera foram colocados rente a moradias. Tu atravessa a rua e tem uma série de casas”, diz.
Melissa Medeiros Markoski, professora de Biossegurança na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), alerta que a fumaça gerada pela combustão dos resíduos que estão nos bota-espera pode libera substâncias químicas que são tóxicas para a saúde, como óxidos de nitrogênio e óxidos de enxofre. Ela compara os efeitos, por exemplo, com a fumaça gerada no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, pela queima da espuma de isolamento acústico, mesmo pontuando que há uma grande diferença entre os dois cenários, pelo fato de que na atual situação a fumaça é liberada a céu aberto.
“A exposição é bem diferente daquela exposição da Kiss, mas o fato das pessoas estarem respirando esse ar cronicamente, ou seja, essa exposição é diária, é por um período de tempo prolongado, isso pode trazer problemas respiratórios. Imagino que nada muito agudo, como aquela intoxicação química que é causada nos alvéolos dos pulmões, mas algo que pode trazer problemas mais para frente, da pessoa começar a sentir sintomas parecidos com asma, sintomas respiratórios variados, porque esse tipo de composto químico liberado vai, sim, prejudicando os alvéolos dos pulmões. Fora todos os fatores neuronais, porque essa substâncias tóxicas, através da respiração, também alcançam o cérebro e isso pode trazer também problemas ao longo do tempo. Agora, se for uma exposição realmente que a pessoa está todos os dias respirando fumaça, aí pode passar, sim, para quadros agudos”, diz Melissa, acrescentando que os moradores expostos deveriam passar por atendimento médico e serem direcionados para análises do sistema respiratório.
A professora salienta que, além da tosse relatada por Tuanny, os primeiros sintomas a serem percebidos podem ser ardência nos olhos, nariz e garganta. Questionada se máscaras como aquelas que eram usadas para prevenção a covid-19 poderiam ser utilizadas para amenizar os efeitos da fumaça, Melissa pondera que mesmo os modelos PFF2 não seriam adequados, pois são voltadas para evitar a contaminação com partículas como gotículas de saliva.
“Para substâncias tóxicas que são produzidas por causa de queima, tem que ser respiradores. A gente nem chama mais de máscara, tem que ser respirador para produtos químicos, para vapores químicos, que aí são máscaras feitas com filtros muito mais potentes do que as da covid. Eu vou dar um exemplo, quando a gente coloca a máscara PFF2 e passa por uma pessoa fumando, vai sentir o cheiro da fumaça de cigarro, porque a fumaça consegue penetrar na máscara. Claro que, entre nada e essa máscara, ajuda um pouco, mas ela não é indicada para isso”, explica.
O professor Frankenberg orienta as famílias a não deixarem alimentos expostos, mesmo dentro de casa, bem como a não deixarem comida para os animais domésticos fora do horário de alimentação, apenas no momento em que vão consumir. “Não deixar comidas abertas e expostas, porque tu não sabe o que tem ali de insetos que possam intervir”, afirma.
Ele orienta ainda que as pessoas não coloquem fogo nos resíduos em nenhuma circunstância. “Se botar fogo, é muito pior, porque tu vai gerar uma fumaça que tu não sabe o que tem, então pode ser muito mais danoso à saúde do que deixar ali”, diz.