
Ao longo dos últimos meses, quando visitou as regiões mais afetadas pelas enchentes de maio na Região Metropolitana de Porto Alegre, a reportagem do Sul21 ouviu de famílias atingidas a repetição de um mesmo temor: “as chuvas de setembro”. O medo de que as enchentes possam voltar a acontecer poucos meses depois de terem suas casas destruídas é baseado em um conhecimento popular de que setembro é um mês de chuvas intensas no Rio Grande do Sul. Este foi o caso em 2023, quando as chuvas devastaram especialmente a região do Vale do Taquari. Mas será que há chances disso voltar a correr ainda em 2024? O Sul21 conversou com Marcelo Dutra da Silva, professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), que se dedica a pesquisar o comportamento das chuvas e os efeitos das mudanças climáticas.
Leia mais:
‘Nós precisamos entender que isso não foi obra do acaso’, alerta professor da FURG sobre enchente
Professor destaca uso do Orçamento Participativo após tempestade em NY como exemplo para o RS
O medo das chuvas de setembro foi relatado, por exemplo, pelo segurança Macgayver da Silva Gonçalves, morador de Eldorado do Sul. “A gente está aqui por falta de opção mesmo. O primeiro momento era de não querer voltar. Agora, conversando com os vizinhos, tem quem acha que não vai acontecer mais. Mas eu vou ficar um ano pagando as coisas que eu comprei aqui, setembro pode ser que dê de novo e eu perca o que nem paguei ainda. Medo a gente tem. Se eu tivesse condição, acho que eu não voltaria. Passar por tudo isso aí de novo.”
O professor destaca que, para entender o que aconteceu no Rio Grande do Sul em maio e o que poderá acontecer em setembro, primeiro é preciso compreender o comportamento dos fenômenos climáticos que afetam o Estado. Ele explica que El Niño é o nome que se dá para o fenômeno do aquecimento das águas do Oceano Atlântico na região equatorial, o que afeta o nosso continente a partir da chegada da umidade trazida pelos ventos, causando um “corredor de umidade”. O que se viu recentemente foi um super aquecimento destas águas, que ficou conhecido como Super El Niño, o que intensificou o fenômeno. Este corredor de umidade sobrecarrega o continente, tenta fugir para o Oceano Pacífico, mas encontra a Cordilheira dos Andes e acaba retornando. Contudo, o que explica a gravidade das chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio deste ano é o fato de que este fenômeno foi combinado com outros fatores. Em razão do desmatamento e da redução na cobertura florestal na Amazônia, não houve resfriamento necessário do continente, o que levou à criação de uma “bolha de calor”, o que aumenta a intensidade das chuvas.
“Esse é um processo normal, na verdade, não tem nada de diferente nisso. A diferença é o fato de que ocorreu um aquecimento exagerado dessas águas oceânicas. Então, uma carga de umidade muito aumentada somada com o fato da gente estar desmatando a Amazônia e o Cerrado, descaracterizando a paisagem, fez com que a gente não tivesse alguns resfriamentos necessários neste contexto espacial, formando zonas de muito calor, intensidade de calor, e isso acaba inclusive prejudicando, o que aconteceu nesse nosso último evento, que a massa de ar polar fria não consegue avançar”, explica.

No entanto, Silva destaca que o momento atual é de resfriamento das águas do Atlântico Sul, o que resulta na mudança do El Niño para La Niña, fenômeno cujos efeitos sob o Rio Grande do Sul se caracterizam pela escassez de chuva e períodos prolongados de estiagem. Por outro lado, ele explica que a transição de um fenômeno para outro, apesar de já estar ocorrendo, é gradual, não ocorre “de uma hora para outra”, o que também faz com que os efeitos não sejam sentidos imediatamente.
“Não é que La Niña não tem chuva, tem, e nós vamos presenciar isso nesse trimestre, de agosto, setembro e outubro, com chuvas muito irregulares, mas talvez ainda algumas chuvas tendam a ser intensas. Podemos ter episódios de pancadas de chuvas mais intensas, a chuva não desaparece quando temos uma La Niña muito pronunciada. Ou seja, quando temos um resfriamento muito grande das águas oceânicas, esse processo de produção de umidade para gerar esse ambiente de chuva, esse corredor de umidade, perde muita força, então aí começamos a entrar no período um pouco mais seco. Já tivemos episódios de estiagem prolongadas no Rio Grande do Sul. A gente tem aí um período longo em que este corredor de umidade demora a chegar aqui, chega muito fraco em umidade, então acaba gerando chuvas também de muito pouco volume, muito irregulares”, explica.
O professor pondera que, caso a La Niña se comporte como nos últimos tempos, as chuvas deverão começar a ficar esparsas, especialmente entre outubro e dezembro, com o tempo ficando consideravelmente mais seco a partir de janeiro.
Sobre o medo das “chuvas de setembro”, ele avalia que não deverão se repetir episódios de chuvas intensas que atingem uma grande área de abrangência, como as registradas no mesmo período do ano passado, quando o Rio Grande do Sul estava sob efeito do El Niño. De forma mais didática, ele explica que o “motor” que impulsiona a geração das chuvas está perdendo a força.
“Não se acredita que se possa ter chuvas volumosas de grande impacto, que reproduzam prejuízos significativos. É claro que a gente está agora numa condição de exposição muito vulnerável, muita coisa se perdeu, estragou, o solo está saturado, os corpos hídricos estão assoreados. Esse é um detalhe que pode fazer diferença em algum ou outro lugar em função do volume de chuvas que venha a cair, mas aí é uma coisa que talvez seja muito pontual. Não se espera um episódio desses de chuvas de grande volume, de grandes proporção e que possa fazer grandes estragos, acredito que nem parecido com 2023, já que a gente está saindo do El Niño e entrando forte na La Niña. Então, na verdade, o motor que impulsiona, que gera grandes corredores de umidade, está perdendo força”, diz.
Por outro lado, ele destaca que outras regiões do Brasil, como Minas Gerais e o litoral do Rio de Janeiro, caracterizam-se por estarem expostas a chuvas de verão em períodos marcados pela La Niña.
Para além da mudança de El Niño para La Niña, o professor Marcelo Dutra da Silva destaca que outras condições que contribuíram para os temporais de maio continuarão atuando sobre o Estado e, mesmo que isso não resulte em chuvas intensas ainda este ano, devem ser enfrentadas para minimizar os efeitos do próximo El Niño. Um desses casos é justamente o desmatamento e a perda da cobertura florestal no Brasil.
“Em qualquer situação, já que nós estamos falando de uma atmosfera carbonizada, um clima que está se mostrando alterado porque a Terra está mais quente. O fato da gente ter uma paisagem muito alterada e que continua sendo alterada com o avanço sobre áreas naturais, com queimadas e desmatamentos, na medida que a gente vai aumentando isso, vamos aumentando a exposição e a geração de um ambiente e de regiões de calor. Isso vai seguir permanente e, claro, vai seguir interferindo para um clima que se torna cada vez mais quente”, diz.
Outro fator que ele destaca que precisa ser discutido é o desassoreamento dos corpos hídricos, que é o processo de retirada de areia, lodo e outros sedimentos do fundo de rios e lagos, que ficaram mais concentrados em razão das recentes enchentes.
“A gente tem observado que temos corpos hídricos que estão bastante saturados e, uma vez saturados, já vinha com a navegabilidade comprometida. Mas muito mais do que isso, essa quantidade de material que está presente no corpo hídrico também está fazendo com que se tenha menos condição de manter a água dentro do corpo hídrico. Então, isso é um ponto chave. Vamos ter que avançar uma política que é necessária de manutenção, retificação e de redução desses materiais, que, se já eram em grande quantidade, agora, com este evento climático que passamos, muito mais material foi arrastado para lá. Então, nós precisamos fazer, necessariamente, uma manutenção dos corpos hídricos do ponto de vista do desassoreamento”, diz.
Para o professor, é urgente que o Estado trabalhe para recuperar áreas degradadas. “Tem muita cobertura ciliar que, simplesmente, ao longo do tempo desapareceu. E nós temos que qualificar as táticas de uso e ocupação do solo. Nós temos uma cultura muito ruim, que não usa práticas conservacionistas de manejo, de conservação do solo e da água, então a gente precisa melhorar a cultura do nosso produtor rural, que atua de uma forma muito tradicional e precisa ter suas práticas modernizadas. Esse é um esforço que a gente também precisa fazer”, diz.
Além disso, destaca a importância de que as cidades estejam mais preparadas para as próximas enchentes. “A gente precisa continuar no processo de discussão a respeito de como estamos ocupando nossa cidade. Nós precisamos efetivamente revisar planos diretores e precisamos, claro, quem sabe deixar algumas áreas e adaptar as cidades com contenções, sistemas anti-alagamentos, para torná-las mais seguras e não permitir mais o avanço sobre áreas vulneráveis e expostas aos eventos climáticos extremos”, finaliza.