Geral
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28 de julho de 2024
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10:23

Tragédia e saúde mental: ‘Precisamos falar sobre o que aconteceu ou tudo cairá no esquecimento’

Por
Marco Weissheimer
marcow@sul21.com.br
"Tragédia climática e saúde mental" foi o tema da retomada do projeto Conversas Cidadãs. (Foto: Isabelle Rieger/Sul21)

Passados apenas cerca de dois meses das enchentes que provocaram uma tragédia climática no Rio Grande do Sul, há uma crescente demanda na sociedade para que a vida volte à “normalidade” e não se insista mais em ficar falando mais sobre o que aconteceu, deixando para trás tentativas de responsabilização em relação às perdas de vidas e perdas materiais. Mas é muito cedo para sairmos da condição de urgência, pois ainda há muitas pessoas desassistidas e essas tragédias desestabilizam nosso sentido de pertencimento ao mundo. Neste contexto, há um risco daqui em diante de que as pessoas que ainda estão desassistidas passem progressivamente da condição de vítimas para a de “incômodos” na sociedade. Essas foram algumas das principais conclusões do debate “A tragédia climática e a saúde mental”, que marcou, na manhã deste sábado (27), a retomada do projeto Conversas Cidadãs, uma parceria entre o Sul21 e o Goethe-Institut Porto Alegre.

Participaram do debate, realizado no auditório do Goethe-Institut Porto Alegre, o psicanalista Volnei Antonio Dassoler, doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), e a jornalista Flávia Lima Moreira, que vivenciou na própria família, residente no bairro Rio Branco, em Canoas, os efeitos destruidores da enchente. Só na sua família, foram oito casas devastadas pelas enchentes, o que a levou a se engajar na construção de uma rede de mobilização para iniciar a reconstrução do que foi destruído.

 

Flávia Lima Moreira: “não estamos aprendendo com o que aconteceu”. (Foto: Isabelle Rieger/Sul21)

“Precisamos falar sobre o que aconteceu, senão tudo vai cair no esquecimento. Se nós não falarmos sobre, a memória vai se apagando”, defendeu Flávia Lima Moreira, que alertou para alguns sinais nesta direção que estariam mostrando que não aprendemos nada com o que aconteceu. Para a jornalista, o início da enchente foi marcado por uma coincidência com uma data muito importante na história da família. Ela havia combinado uma viagem ao Rio de Janeiro para celebrar os 25 anos de um transplante de medula óssea de sua irmã. “Nós pegamos o último voo a sair de Porto Alegre. Chegamos no Rio com a notícia de que Canoas e Porto Alegre já estavam debaixo d’água. Nossa família mora em Canoas desde que eu me conheço por gente e, como acontece com muitas famílias lá, todos moram perto uns dos outros. Assim, dificilmente, só uma casa de cada família foi atingida”, relatou. No caso de sua família, oito casas foram atingidas pela enchente.

A partir daí, a jornalista iniciou uma mobilização colocando em movimento uma rede de contatos que tinha com jornalistas e conhecidos de outros estados. “Eu descobri como é ruim e doído a gente virar notícia”, contou. Graças a essa mobilização, em menos de um mês ela conseguiu arrecadar cerca de R$ 77 mil. Neste processo, Flavia lamentou ter visto pessoas importantes e célebres usando a tragédia para se promover. E agora, no pós-enchente, a solidariedade começa a perder lugar para disputas políticas mesquinhas, individualismo e esquecimento. “Já vimos isso acontecer em outras tragédias como foram a da boate Kiss, em Santa Maria, ou a de Brumadinho, em Minas Gerais. Não estamos aprendendo com o que aconteceu. Não criamos protocolos e já estamos começando a deixar de falar sobre o assunto”, assinalou.  

Flavia citou ainda um estudo realizado pela Prefeitura de Porto Alegre, segundo o qual cerca de 84 mil pessoas vivem em áreas de risco na cidade. “O que já foi feito a partir desse estudo em termos da adoção de protocolos para essa população? – questionou. “Parece que a gente é incapaz de aprender. Essa é a minha dor principal. Eu firmei um compromisso comigo mesmo de ir atrás das responsabilidades pelo que aconteceu. Serei o grilo falante. O meu pós-enchente é esse não deixar esquecer”.

 

Volnei Dassoler: “é muito cedo para sairmos da condição de urgência”. (Foto: Isabelle Rieger/Sul2)1

A desestabilização do nosso sentido de pertencimento ao mundo

O psicanalista Volnei Antonio Dassoler atua há vários anos em situações pós-tragédias e traumas. Trabalhando em Santa Maria, ele acompanhou o processo que se seguiu ao incêndio da boate Kiss, além de outras situações como o rompimento da barragem em Brumadinho ou a tragédia aérea que atingiu a equipe de futebol da Chapecoense. Na maioria destes casos, assinalou, após um período inicial de grande mobilização, há um movimento de naturalização e normalização que acompanha esses grandes desastres. “Após todo desastre desse tipo, a gente escuta uma posição ética para que aquilo não se repita, uma posição de que é preciso não sucumbir à indiferença”. Mas, com o passar do tempo, essas vozes começam a perder força.

Os desastres, disse Dassoler, sempre ultrapassam as condições estabelecidas de resposta. Essas estruturas de resposta não são concebidas para dar conta desse tipo de situação e isso ocorre também em relação ao tema da saúde mental. “Todo desastre produz um aumento de demanda de saúde mental. Ele introduz uma avalanche de acontecimentos e sentidos que você não consegue dar conta. A gente fica preso entre o acontecimento e a busca de um sentido para ele. Nestas situações, é comum a gente ouvir as pessoas questionando por que Deus permitiu que aquilo acontecesse ou onde ele estava”.

Outra dimensão, destacou ainda o psicanalista, que deve merecer atenção ao se avaliar o impacto destas tragédias na saúde mental da população é seu caráter coletivo. “O que produz efeitos no coletivo precisa de respostas coletivas também. Nestas situações, o nosso próprio sentido de pertencimento a esse mundo é desestabilizado, o que exige tentativas de restituir coletivamente a confiança na vida em comum”, apontou Dassoler. E essa demanda de restituição de sentido dialoga diretamente com a situação presente que estamos vivendo agora, cerca de dois meses após as enchentes, e também com a perspectiva de futuro.

 

Debate foi realizado no auditório do Goethe-Institut Porto Alegre. (Foto: Isabelle Rieger/Sul21)

O momento atual é marcado, entre outras coisas, pelo recuo acentuado do voluntariado e pela necessidade de políticas públicas articuladas para atender milhares de pessoas que ainda vivem em seu cotidiano os impactos da tragédia. Neste cenário, Volnei Dassoler advertiu para um risco que paira sobre a população atingida. “Ainda há uma população que permanece desassistida e que necessita de políticas públicas coletivas. A efetivação dessas políticas exige pressão, mobilização social e a manutenção do sentido de urgência. É muito cedo para sairmos da condição de urgência. É muito cedo para entrarmos numa nova fase, achando que a situação normalizou. Há muita gente desterritorializada, geográfica e psicologicamente. O grande risco que podemos correr aqui é que essas pessoas, que ainda estão desassistidas passem a sair da condição de vítimas para serem consideradas como um incômodo para a sociedade”.


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