
Britney Louise Lima, 39 anos, é uma mulher trans que desembarcou em Porto Alegre pela primeira vez em janeiro deste ano. Vinda de São Paulo, onde acreditava que ela e o filho adotivo, Leone, uma pessoa com transtorno do espectro autista, estavam ficando doentes com a poluição gerada pelo grande tráfego de veículos na avenida em que moravam, tinha um contato na Capital que a recebeu. A hospedagem, no entanto, durou até ela não suportar a hostilidade da pessoa que a recebeu com Leone. Britney decidiu que precisava se mudar.
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Apesar do pouco tempo em Porto Alegre, ela conta que já tinha conseguido se estabelecer, em algum nível, em seus dois ofícios. Um deles, de cantora em eventos, já havia lhe rendido datas em bares do bairro Cidade Baixa, onde se apresentava cantando músicas de divas internacionais, do passado — como Whitney Houston, Mariah Carey e Celine Dion –, como diz, e do presente, como Beyoncé e Britney Spears, que inspirou o nome após sua transição de gênero.
A renda principal, contudo, era oriunda da venda de salgados e doces. Entre suas especialidades, ela conta, estão as barquinhas de siri, crepes, brigadeiro recheado com morango e beijinho com kiwi. “Coisa bem diferenciada, sempre voltada para a mistura de sabores”, diz.

Com os recursos angariados vendendo seus salgados e doces para confraternizações, happy hours, evento de bancos, e mais uma clientela que fidelizou por meio de redes sociais, Britney já tinha conseguido juntar dinheiro para investir em equipamentos de cozinha necessários para montar uma confeitaria virtual em aplicativos de entrega de comida. No final de abril, alugou uma casa no bairro Sarandi, na comunidade Asa Branca, perto de um valão. Seis dias depois, o sonho virou pesadelo.
“Eu já tinha montado a cozinha mais equipada do mundo, tinha investido quase R$ 20 mil em todos os equipamentos, em todos os insumos. Seis dias depois, eu falei: ‘vou tirar o sábado e o domingo de folga para descansar, porque segunda-feira eu queria abrir uma confeitaria no iFood. Tive que sair nadando com o meu filho e com o gato na madrugada de sábado para domingo. Mais de 2,5 m de água”, conta. “Eu paguei R$ 600 [de aluguel], que era o meu Bolsa Família. Gastei R$ 100 por dia para ir embora sem nada”.
A partir dali, Britney, Leone e o gato Mike iniciaram um périplo que se estenderia por quase dois meses e meio. O primeiro abrigo para o qual tentaram ir era uma Igreja Adventista que teria cinco vagas disponíveis, que poderiam se destinar a eles, a vizinha e o filho, também autista. Ela conta que, quando os responsáveis pelo abrigo viram que ela era uma mulher trans, fecharam a porta, com rispidez.
O motorista da van que os levava se deslocou, então, para a Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no bairro Rubem Berta, onde diz que foram recebidos de braços abertos. Este abrigo, contudo, fechou após algumas semanas, obrigando-os a se transferir para outro, na Paróquia Santa Clara, em Cachoeirinha. Mais um período passou, o novo abrigou também fechou. Foram transferidos para a Paróquia São Francisco de Paulo, também em Cachoeirinha, que logo seria fechado. Já era meados do mês de junho e agora eles retornavam para Porto Alegre, em um novo abrigo voltado para a população LGBTQIA+ no bairro Cascata.
Esta jornada migratória foi encerrada, ao menos por enquanto, na última segunda-feira (15), quando a família chegou ao Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Vida, no bairro Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre. Um dos três centros de abrigamento transitório montado pelo governo do Estado em parceria com a Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para as Migrações (OIM), que faz a gestão, e tem capacidade para receber até 848 pessoas.

Ao chegar no local, Britney passou por uma entrevista e, ali, ouviu de um funcionário da OIM que essa seria a sua casa até que uma solução definitiva de moradia fosse encontrada.
Especializada na resposta emergencial a eventos como o que acometeu o Rio Grande do Sul, a OIM avalia que o CHA é um espaço que visa promover a autonomia e independência das pessoas, uma vez que a participação da comunidade nas atividades de gestão do espaço também é estimulada. Isso passa por adaptações e ajustes que a comunidade possa sugerir ao longo da estadia. A organização atua no local com uma equipe de cerca de 50 pessoas, fora os trabalhadores do refeitório e limpeza, que são terceirizados.
“Saber que, aqui no Centro Vida, mais de 200 pessoas já possuem um local digno e seguro para se abrigarem neste momento, nos permite continuar avançando para que cada vez mais famílias possam dar o próximo passo rumo à reconstrução”, diz Eugênio Guimarães, coordenador de projetos da OIM.
Inaugurado no dia 11 de julho, o local foi visitado pela reportagem do Sul21 nesta quinta-feira (18), quando completou a primeira semana de operação. Até o momento, o CHA Vida tem recebido novos moradores de forma escalonada. No início da tarde desta sexta (19), abrigava 268 pessoas, sendo 160 homens, 107 mulheres e uma pessoa não binária divididos em quatro alas: grupo familiar, feminina, masculina e LGBTQIA+. A ala familiar é composta por quartos individuais, com capacidades para cinco ou dez pessoas, enquanto as demais alas contam com quartos compartilhados, como alojamentos, com capacidades variando entre quatro e dez beliches. Os dormitórios são separados por estruturas modulares utilizadas em hospital de campanha, revestidas por uma tinta antichamas. Ao todo, 132 famílias estavam abrigadas, sendo 28 idosos (+60 anos) e 85 crianças e adolescentes. Oito das mulheres estão grávidas.
No local, há também refeitório, lavanderia coletiva, berçário, fraldário, posto médico, policiamento 24h, ambientes multiuso e espaços para as crianças e de conectividade, onde os acolhidos poderão carregar seus telefones e acessar a internet.

“Os Centros Humanitários de Acolhimento foram projetados como uma solução transitória e digna para quem perdeu tudo nas enchentes de abril e maio. Os espaços, além de serem um abrigo seguro para as pessoas que lá precisam ficar até que recebam a moradia definitiva dos programas habitacionais anunciados pelo governo federal, garantem o acesso a serviços essenciais e suporte para a reintegração social e econômica das famílias”, explica o vice-governador Gabriel Souza, que assumiu a coordenação do programa no governo do Estado.
Souza pontua que, além dos dois centros em funcionamento, o Vida e o Recomeço, em Canoas, um terceiro será aberto, Esperança, também em Canoas. “Acompanhamos diariamente o funcionamento dos espaços e mantemos um Comitê Gestor com representantes do Estado e do Município, que sempre que necessário se reúne para tratar de demandas específicas. Nas próximas semanas, levaremos aos acolhidos outros serviços do Estado e parceiros no sentido de contribuir com a recolocação profissional, acesso ao mercado de trabalho e assistência social e médica para quem precisa”, diz o vice-governador.
Na quinta-feira, Britney dividia a ala LGBTQIA+ com outras seis pessoas, sendo uma delas Leone, que é gay. O espaço tem capacidade para 50 pessoas.
“Aqui é um espaço muito bom. Não é como os outros abrigos, que tinham cinco refeições, mas as refeições são muito bem reforçadas, é um buffet que você pode comer bem”, diz. O almoço do dia havia sido feijão, arroz, polenta, frango, batata-doce, legumes refogados e salada. Sempre há uma opção de fruta para sobremesa e dois tipos de suco. “A equipe toda é muito carinhosa, dão toda uma atenção para o meu filho, que não come qualquer coisa”, complementa.

Por enquanto, ela diz que a convivência no local tem sido tranquila. Com exceção de risadinhas que ouviu de algumas crianças e adolescentes, conta que tem sido bem tratada e respeitada por todos os adultos. A única dica que daria para a organização qualificar o espaço é analisar a possibilidade da instalação de câmeras nos alojamentos compartilhados, pois percebeu que parte dos abrigados tem medo de roubos de pertences que conseguiram resistir à enchente e às diversas migrações.
A angústia principal de Britney, no momento, é saber quando conseguirá voltar a cozinhar. Os seus pedidos para o Auxílio Reconstrução, do governo federal, e do Volta por Cima, do governo estadual, estão em análise. Como perdeu o endereço, precisou refazer o cadastro no Centro de Referência de Assistência Social e precisará aguardar para voltar a receber o Bolsa Família. No CHA Vida, há um serviço de assistente social voltado para auxiliar os abrigados e receberam esses recursos. A ideia de Britney é de que assim que recebê-los, consiga voltar a trabalhar.
“Eu sou fênix, renasço das cinzas, só espero a oportunidade aparecer, agarro com unhas e dentes e vou para cima. Estou só esperando os auxílios vingarem para eu investir. Quero investir porque tenho lúpus e PTI”, diz.
Lúpus é uma doença inflamatória autoimune, que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos, como pele, articulações, rins e cérebro. O sintoma principal são dores agudas espalhadas pelo corpo. Púrpura Trombocitopênica Idiopática (ou Imunológica), conhecida por PTI, é uma doença hemorrágica, de origem autoimune, caracterizada pela redução da quantidade de plaquetas (trombócitos) presentes no sangue.
Britney adotou Leone há 4 anos. Ela conta que o filho tem a aparência de um adolescente, mas está com 31 anos. A idade, só descobriu depois de assinar os documentos para a adoção. “Eu não tenho perspectiva com relação a tempo de vida por causa dos meus problemas de saúde, então eu queria crescer e, o que eu queria fazer com o meu iFood aberto, era juntar um dinheiro mais rápido para investir num advogado para ele poder aposentar o meu filho. Imagina se acontece alguma coisa comigo e esse menino fica sem benefício, sem nada, sem ter como se virar”, complementa.
Assim como Britney e o filho, Maria Pereira, 64 anos, e Paulo da Rosa Pereira, 63, casados há 44 anos, também passaram por uma longa jornada até chegarem ao CHA, nesta terça-feira (17). Moradores da Ilha das Flores, o casal viu a água subir rapidamente no dia 1º de maio, quando Maria saiu de casa. Paulo aguentou mais um dia, mas saiu quando a água já batia no seu peito.

O primeiro abrigo em que ficaram era localizado perto do aeroporto Salgado Filho, onde permaneceram uma noite, apenas o período para a região também alagar. Depois, passaram 40 dias no Ginásio da Brigada Militar, na avenida Aparício Borges. “Foi um ótimo lugar também, não temos do que nos queixar”, diz Maria.
Dali, foram para um abrigo no Morro do Sabiá, onde mais uma vez ficaram apenas uma noite. No local, foram orientados a não desmanchar nenhuma bagagem. De ônibus, foram levados para a Hípica, onde permaneceriam outros 15 dias antes de serem transferidos para o Centro Comunitário da Restinga, local em que ficaram de meados de junho até esta semana. “Aí nos avisaram que a gente ia vir para as casinhas da ONU”, conta Maria.
Paulo diz que chegou a voltar para a Ilha das Flores, mas já não havia o que salvar. “A minha casa tapou de água. Eu fui lá, está horrível, não tem como morar. A minha casa levantou, recuou para o lado e baixou no meio uns 15 cm. Tu entra, estala tudo”. A única coisa que ele diz que poderia ter sido salva era um botijão de gás, mas foi roubado quando a água cedeu.
Mesmo que fosse possível, Paulo diz que não retornaria para a antiga casa. “Nunca mais. A casa saiu do lugar. Reformei ela o ano passado, perdi tudo. Teria que desmanchar toda ela e fazer de novo, mais a mão de obra, para ficar mais um ano e perder tudo porque inundou de novo, então não tem o que fazer”, afirma.
Maria complementa que, para a reforma, tinha comprado zinco que não enferruja, tinta branca, e deixada do jeito que sonhou. “Era linda, linda, tá submersa embaixo d’água”, diz, relatando a última memória que tem do lar que abrigou o casal por 29 anos.
Por enquanto, eles ainda não receberam nenhuma informação sobre qual poderá ser seu destino após o CHA. Governo do Estado e OIM firmaram um acordo para manter as instalações por ao menos seis meses, com possibilidade de renovação por mais seis. Os custos iniciais das instalações foram financiados pelo Sistema Fecomércio/Sesc/Senac, com parte de equipamentos, como máquinas de lavar e secar roupa sendo doados por empresas.
Paulo, contudo, está paciente. “Um dia de cada vez, a gente tem que ir aguardando, vai chegar lá”.
Pela primeira vez em dois meses e meio, ele tem um espaço para ficar sozinho com Maria. A atividade que mais gostam de fazer é tomar chimarrão no quarto e ficar conversando.
“Aqui esta ótimo, em vista dos outros, meu amigo, melhor do que nunca. Depois que nós perdemos a nossa residência, aqui a gente arrumou um cantinho para privacidade, um canto de sossego, um canto bem acolhedor. O banheiro é bom, o chuveiro quente a hora que tu quiser, a comida mil maravilhas, o café, não tem o que reclamar. De todos os lugares que a gente esteve, aqui é uma casa. Eles tratam bem a gente, é nota 10”, afirma.
Assim como Britney, a única situação que deseja resolver logo é a possibilidade de voltar a fazer seus bicos de pedreiro e carpinteiro, embora tenha perdido seus equipamentos na enchente. Por enquanto, a única renda da família é o amparo social ao idoso que Maria recebe em razão de problemas na visão. Três, de seus filhos, também estão abrigados no Centro Humanitário, mas em quartos diferentes.

A última coisa que elogiam, antes de se despedirem da reportagem, é o fato do CHA Vida contar com a segurança permanente de policiais militares. No entanto, a presença ostensiva dos brigadianos é um dos problemas apontados pelo professor de boxe e músico Gabriel Leal, 30 anos, em seus primeiros dias de estadia.
“Até que está boa, mas só na parte dos policiais que é meio ruim, tá ligado. Bah, eles falam muito para o cara, xingam o cara bastante quando tu vai fumar um cigarro ali na frente. Mas o resto é tranquilo”, diz Gabriel, que também passou por diversos abrigos, de norte a sul de Porto Alegre. “Não é bom, porque parece que a gente está sendo jogado de um lado para o outro, sem chão, sem nada. Então, é muito chato, a pessoa entra em depressão, ansiedade, tudo. A pessoa acaba se estressando demais, a cada dia que passa não acontece nada”, complementa.
Nesta quinta, Gabriel estava tocando um violão, que comprou em um abrigo para substituir o seu, perdido quando a água do Guaíba tomou conta do local onde dava aulas e da pensão em que morava, no segundo andar de um prédio na Av. Presidente Franklin Roosevelt, bairro Navegantes. “Se eu não tivesse com meu violão aqui, ia ficar na depressão, porque eu me sinto como se estivesse preso, quase”, diz.
No instrumento, ele faz trap, improvisa rimas na hora, toca covers de bandas como Legião Urbana, Charlie Brown Júnior, Natiruts, Chimarruts e, como diz, “até Nirvana e Metallica”.
No CHA Vida, ele conta com a companhia de sua namorada, mas eles estão em alas diferentes, uma vez que foram cadastrados pela Prefeitura de Porto Alegre, responsável por indicar os abrigados, para as alas individuais. Ele espera que logo possam ser transferidos para a ala familiar. “Tá sendo chato, complicado, estressante, o cara não pode estar convivendo junto”.
Também sem ter tido acesso aos benefícios do governo federal e estadual até o momento, ele tinha a perspectiva de ao menos nesta sexta ter um primeiro retorno ao trabalho, quando estava previsto para tocar em seu primeiro evento desde o início das enchentes. “Eu quero sair daqui já, ter minha casa, minhas coisas. Recuperar tudo de novo, pelo menos”, diz.

Henrique Mendes, 19 anos, chegou ao Centro Humanitário na sexta-feira (12), foi um dos primeiros. Assim como Gabriel, está afastado da namorada, mas não separados por uma ala, visto que a dele está morando com a irmã, na Restinga.
Ele diz que a sua expectativa no momento é conseguir um imóvel pelo aluguel social, em que possa trazer a namorada para morar junto. Nesta sexta, o plano de Henrique era ir até a zona sul encontrá-la.
Ex-morador do Humaitá, a única certeza que tem é a de que irá para outro bairro. O trauma da enchente ainda está muito fresco e diz que “ouviu falar” que há previsão para mais uma enchente, mas que não sabe se é verdade. No momento, não há qualquer previsão neste sentido. “É impossível voltar. Não tenho mais condição. A minha casa, foi tudo levado, meus materiais”, diz Henrique.
Ele conta que os primeiros dias foram tranquilos, com exceção de algumas brigas que ocorreram por conta de furtos, especialmente de materiais de higiene. No entanto, credita as desavenças a um período de aprendizagem dos acolhidos, visto que há um centro de suprimentos no CHA que fornece estes itens, bem como cobertores e outros itens de demandas particulares, como leite em pó e absorventes.
O jovem trabalhava como vendedor em comércio antes da enchente, quando ficou desempregado. Já espalhou diversos currículos pela região, uma vez que estava instalado no abrigo do Vida Centro Humanístico, localizado ao lado do Centro Humanitário de Acolhimento. Até agora, não teve retorno.
Enquanto isso, ele diz que tem feito amizades e tem sido bem tratado. “Eu estou bem, me alimentando bem, dormindo bem, tomando banho bem. Tudo vai indicando o que Deus quer, não é a hora que tu quer. Logo, logo, vão se ajeitando as coisas”.
