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14 de maio de 2024
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19:31

Desalojada por inundação, Casa Mirabal abre abrigo para mulheres em escola

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Casa de Mulheres Mirabal montou abrigo na zona leste de Porto Alegre | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Casa de Mulheres Mirabal montou abrigo na zona leste de Porto Alegre | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Há cerca de oito anos, a Ocupação Mirabal surgiu no Centro de Porto Alegre como um espaço para abrigar mulheres vítimas de violência. Mesmo passando por um processo de despejo e uma nova ocupação, com o tempo foi se tornando um espaço de referência para o abrigamento de mulheres e se transformou na Casa de Mulheres Mirabal. Desde setembro de 2018, funciona no prédio da antiga escola estadual Benjamin Constant, no bairro São João. Mas, no último dia 6, as integrantes do Movimento de Mulheres Olga Benario RS, que organizam a Casa, e abrigadas tiveram que deixar o local, com água no joelho, para fugir da inundação que atingiu a zona norte de Porto Alegre.

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Uma das coordenadoras da Mirabal que estava trabalhando na casa no início deste mês, Andressa Ribeiro conta que a água começou a subir na sexta-feira, dia 3. A água estava chegando na esquina, na altura de um atacado localizado na Av. Ceará. “A gente viu que estava chegando e começamos a nos organizar. Pensamos em comprar comida, alguns mantimentos. Na nossa cabeça, ‘em três dias a água baixa e vai ficar tudo certo’”, conta.

Neste momento inicial, a ideia de deixar o imóvel não era vista como uma possibilidade, uma vez que, apesar do reconhecimento institucional da Mirabal pelo governo do Estado — ela hoje faz parte do Conselho Estadual da Mulher –, ainda há aberto um processo de reintegração de posse movido pela Prefeitura, que é dona do terreno da antiga escola. Mas a água subiu muito rápido. “Nós pensamos que, se a água chegasse, ia ser no portão. Então, a gente ia ficar ilhadas. Nunca pensamos que fosse entrar dentro da casa”, diz Andressa.

Quando acordaram na manhã de sábado (4), a água já tinha tomado o pátio e batia na porta dos fundos. A luz foi desligada. Nesse momento, as coordenadoras da Mirabal que estavam na casa tomaram a decisão de tirar as crianças e realocá-las na residência de uma coordenadora do movimento, que mora na zona leste e tinha água, luz e internet.

 

Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Às 13h de sábado, a água entrou na Mirabal. Ainda tentavam subir todos os móveis e eletrodomésticos para o segundo andar ou colocá-los em lugares mais altos. O fogão, por exemplo, foi parar numa sala de convivência no segundo andar, transformada em cozinha improvisada.

Ainda assim, seguiam acreditando que a água desceria em breve.

Mesmo com a região toda alagada e na escuridão, Andressa e Vicky Motta, outra coordenadora da Mirabal que ficou no imóvel, tentaram ir ao mercado comprar velas no final da tarde. “Passamos por toda a água, caminhamos encharcadas até o Bourbon. Na rua, estava todo mundo enlouquecido, parecia um cenário de guerra”, diz Vicky.

No domingo (5), a água já batia no primeiro andar da escada. “A casa é alta, na rua já estava no joelho”. Apesar da situação, seguiam recebendo doações, especialmente de água, que começava a faltar. Mas cada carga exigia que cruzassem uma área alagada para conseguir receber.

“Para mim, é muito marcante, uma coisa que me deixa apavorada até agora, é que na frente tem o viaduto da Souza Reis, onde aconteciam os resgates de barco. Então, toda hora passava alguém gritando nomes. ‘Rodolfo’, ‘Sabrina’. Toda hora a lembrança de que as pessoas estavam ali”, diz Vicky.

 

Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Na madrugada de segunda (6), Andressa ligou para Nana Sanches, também coordenadora do movimento, resignada que a situação não iria melhorar em três dias. “Acho que não tem mais como, falei para ela”, relembra. “Quando a nossa rua alagou completamente, os barcos começaram a passar ali. E cada vez que passavam, as ondas jogavam água para dentro da casa”, diz Andressa.

Durante a madrugada, sem sinal de internet, ficaram incomunicáveis. No final da manhã de segunda, o resgate apareceu, mas sem bote. Saíram com a água ainda na altura do joelho.

Com a ajuda de um pallet improvisado como embarcação, tiraram documentos importantes, equipamentos, colchões e outros itens importantes. “Fizemos várias voltas, indo e voltando”.

O primeiro destino foi a sede do partido Unidade Popular (UP), na Cidade Baixa, onde todos os serviços funcionavam. Contudo, naquela mesma segunda-feira, uma falha na casa de bomba que atende a região resultou no alagamento do bairro e no desligamento dos serviços. “Um filme de terror. Mas acho que é pior”, diz Andressa.

Havia a possibilidade de abrigamento na casa de outra companheira do movimento na Rua Demétrio Ribeiro, no Centro, mas um mapa que a Defesa Civil do Estado estava divulgando alertava para o risco de inundação na área — o que não se confirmou. Resolveram permanecer então na sede da UP.

Na terça (7), com a região já inundada, foram abrigadas no bairro Rio Branco e, no dia seguinte, quarta-feira (8), conseguiram carona para ir até Cidreira. “Quando a gente chegou em Cidreira, já estavam circulando algumas denúncias, mas uma ex-abrigada nos enviou uma mensagem fazendo uma denúncia de abusos em Novo Hamburgo”, conta Andressa.

A mensagem pedia que a Mirabal montasse um abrigo temporário específico para mulheres e crianças. A denúncia foi repassada para as advogadas do movimento, enquanto novas denúncias chegavam. A decisão foi então tomada. “Nós já temos quase oito anos de experiência nisso, então vamos nós fazer um abrigo para mulheres”, diz Andressa.

Ainda na quarta, o movimento começou a transformar a ideia em ação. Surgiu a opção de montar o abrigo em uma escola na zona leste da Capital — o local não é informado pelo movimento para preservar as abrigadas. Em reunião com o movimento, a diretora da instituição deu aval. Também receberam o aval da Coordenadoria Regional de Educação da área e conversaram com a própria secretária de Educação, Raquel Teixeira. Na sexta-feira (10), o abrigo começava a ser montado. “Ficou pronto em um dia”, diz Andressa.

 

Salas de aula foram convertidas em quartos | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A operação no abrigo está sendo tocada por militantes do movimento, o que inclui uma série de profissionais, como psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, entre outros, e voluntários, que passam de 100. O primeiro passo, explica Andressa, foi estabelecer um protocolo de triagem para receber abrigadas, que começaram a chegar no sábado (11). “A gente usou muito dessa experiência de oito anos para construir o abrigo”, diz. “Não é só jogar as pessoas aqui dentro, tem que ter um protocolo e uma organização”.

A abertura do abrigo foi divulgada nas redes sociais e, imediatamente, receberam uma enxurrada de perguntas sobre o recebimento de doações. Andressa diz que, no momento, não há necessidade imediata de novos materiais, destacando que, se houver, ela será informada pelas páginas da Mirabal e do Movimento de Mulheres Olga Benário.

A cozinha da escola está sendo usada para preparar a refeição para abrigadas e a equipe do movimento, bem como para preparar quentinhas que são distribuídas para moradores do bairro. Também foram improvisados espaços como sala de leitura, brinquedoteca e sala de pintura para as crianças. No banheiro da sala dos professores, foi instalado um chuveiro — estão se organizando para instalar mais. Com a doação de uma máquina de lavar, organizaram uma lavanderia. No saguão, há mesas com milhares de peças de roupas doadas.

Há espaço para 45 abrigadas, em salas de aula convertidas em quartos. Andressa diz que, em geral, as abrigadas têm filhos, mas diz que não há impeditivo para mulheres sozinhas e que mulheres trans também estão entre as pessoas acolhidas. Ela explica que o movimento está fazendo busca ativa em abrigos e recebendo contatos à procura de vagas em suas páginas nas redes sociais, o que inclui ex-abrigadas, pessoas que fazem contato direto e indicações.

Conforme o acordo firmado com a escola, o abrigo deverá ser mantido no local até ao menos o final do mês, uma vez que não há expectativa de retorno das aulas antes disso. “Mas a gente não quer nem pensar que as coisas não estejam boas. Todos os dias a gente faz avaliação de como está a coisa no bairro, como está a situação de trabalho das pessoas e tudo”, diz Andressa.

 

Vicky (esq.), Andressa (centro) e outras integrantes do movimento estão organizando o abrigo | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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