
Quem admira a praia do Lami, no extremo sul da Capital, tem dificuldade em reconhecer a beleza da orla uma semana após a enchente histórica que atingiu Porto Alegre. Por outro lado, quem não conhece a praia do Lami e visita o bairro por esses dias, tem dificuldade em imaginar os encantos de um dos poucos pontos próprios para banhar-se no Guaíba na cidade.
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Os bairros do extremo-sul, junto com as ilhas, foram os mais afetados pelo avanço das águas do Guaíba no último dia 26 de setembro, quando o nível d’água chegou a marcar 3,18 metros no Cais Mauá. Nos últimos 87 anos, o índice só ficou abaixo dos 4,76 metros registrados em 1941, na famosa enchente que deu origem, anos depois, ao muro da Avenida Mauá.
Hoje, o cenário no Lami é de devastação. Na beira da praia, os pequenos bares que costumam atender moradores e visitantes estão completamente destruídos. Tijolos, azulejos, pedras, telhas, pedaços de madeiras, de portas e janelas se misturam à areia. Se alguém dissesse que o local explodiu com uma bomba, seria verossímil. No Bar e Lancheria Flor do Caribe, cadeiras de ferro estão amontoadas junto à parede, cobertas por areia, como se ali estivessem abandonadas há muito tempo.

Nas residências, comércios e ruas próximas à orla do Lami, barricadas de sacos de areia empilhadas às pressas para tentar conter o avanço das águas, ainda permanecem à postos. O nível do Guaíba segue muito alto no bairro. Moradores sabem que se o vento sul soprar, as águas cobrirão novamente o calçadão, tomarão conta da rua e podem, mais uma vez, invadir as casas. No momento, desfazer as barricada de areia não parece ser a melhor estratégia.
Em determinados trechos, o calçadão da orla do Lami está destruído. Blocos de tijolo e cimento foram arrancados do lugar como se fossem simples peças de lego. Há bancos caídos, outros na iminência de sucumbir e alguns estão completamente embaixo d’água. O campinho de futebol está submerso.

– A água deveria estar lá pra trás do último arbusto –, diz Moisés dos Santos Freitas, apontando uma distância considerável em relação ao atual nível do Guaíba, batendo na mureta do calçadão.
Morador da Avenida Beira-Rio, bem em frente ao calçadão do Lami, ele ainda carrega no olhar a incredulidade pelo que viveu. Aos 37 anos de idade e há 24 morando no Lami, conta jamais ter visto algo parecido. Até lembra a última grande enchente, em 2015, mas afirma que essa agora foi muito superior. A cheia de 2015 não invadiu sua casa.
Vestindo uma bermuda preta, camisa regata laranja e calçando chinelo de dedo, Moisés anda de um lado para o outro no pátio da residência, ainda mexendo e arrumando o que foi possível salvar. Uma barricada de sacos de areia está montada em frente ao portão da casa. Ele caminha em direção à parede da frente e mostra o nível que a água alcançou: é praticamente na linha da sua cintura.
– Naquele dia, as ondas estouravam aqui –, lembra Moisés, tocando com o dedo indicador da mão direita a parede da residência.
Na histórica terça-feira, 26 de setembro, sua mãe, de 66 anos, entrou em pânico e foi socorrida de canoa, levada para a casa de uma amiga, onde ainda permanece. A irmã, mais velha que ele, também buscou abrigo na residência de amigos e não retornou até o momento. Moisés decidiu ficar na casa. Conta que agentes da Defesa Civil tentaram convencê-lo a sair, mas ele não aceitou.
– Se a gente sai, ladrão vem aqui e rouba o que puder –, explica.

Moisés trabalha como vigia em Viamão e está temporariamente afastado do serviço por problema de saúde. Sozinho em casa, uma semana depois do dia fatídico, ainda conta o prejuízo. Perdeu geladeira e freezer. A água invadiu todos os cômodas da residência. Tentou salvar o que pode, como móveis, objetos e eletrodomésticos, colocando em lugares mais altos da casa. No pátio, a moto foi posta num ponto elevado da varanda e assim preservada. As águas do Guaíba tomaram conta de tudo.
No dia da enchente e nos dias seguintes, ele diz que a ajuda veio por meio dos bombeiros e da Defesa Civil. Na última semana, foram os garis do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) que apareceram pelo bairro e trabalharam bastante raspando o lodo, varrendo resíduos e removendo materiais acumulados. Segundo a Prefeitura, desde a quinta-feira (28) da semana passada até essa quarta (4), as equipes de garis já removeram 915 toneladas de materiais dos locais com possibilidade de acesso, como o trecho 3 da Orla do Guaíba, a Orla Iberê Camargo, Orla do Anfiteatro Pôr do Sol, a avenida Guaíba, dos bairros Ipanema e Guarujá, e no calçadão da praia do Lami. Se os garis estiveram presente, Moisés conta não ter visto políticos no bairro oferecendo ajuda ou perguntando se precisava de algo.
– Eles só aparecem em ano de eleição. Ano que vem vão estar aqui, pedindo voto –, comenta, se afastando do portão e voltando para cuidar da casa que não abandonou em momento algum da pior enchente em quase 90 anos.




