
Por Andressa Marques e Ester Caetano*
Passados quase dois anos do início da pandemia da covid-19, três instituições que trabalham com pessoas em situação de rua em Porto Alegre estimam que houve um aumento de 19% a 38% no número de pessoas nessa condição na cidade. Apesar disso, até então não houve investimento para geração de dados oficiais sobre o incremento dessa população nas ruas. A capital do Rio Grande do Sul segue sem saber a quantidade de mulheres, homens e crianças ocupando as calçadas, em consequência realiza políticas de acolhimento criticadas por organizações que trabalham no setor.
A atual gestão do município gaúcho estima que há 2.500 pessoas em situação de rua, porém o movimento da população de rua Passa e Repassa considera o dado subestimado. O grupo segue as publicações quadrimestrais da Secretaria Municipal de Saúde de atendimentos nos consultórios de rua. “A gente observou que desde o início do ano até agosto, o Consultório na Rua Centro abriu mais 1.300 cadastros, um número chamativo que indica essa tendência de aumento da população em situação de rua com a pandemia”, afirma Gabriela Godoy, professora do Bacharelado em Saúde Coletiva da UFRGS e integrante do Grupo Passa e Repassa – Pesquisa e Extensão sobre Políticas para população de rua.
No início de 2021, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) também havia identificado o aumento de 38% da população em situação de rua na cidade. Segundo o órgão, que se baseia nas abordagens e nos atendimentos dos Consultórios na Rua localizados no Centro e Zona Norte, em março de 2020 haveria 2.700 pessoas ocupando as ruas e, no início deste ano, 3.850. Outro dado também aponta um cenário de incremento. Uma pesquisa amostral realizada pelo centro social da rua Banho Solidário, em dezembro de 2020, mostrou que, das 800 pessoas em situação de rua atendidas, 19,2% passaram a estar nessa condição depois da pandemia.
Gabriela Godoy afirma que no Rio Grande do Sul os dados oficiais das pessoas em situação de rua são contabilizados a partir do Cadastro Único, mas que há uma defasagem nos dados. Por esse cadastro, Porto Alegre teria 1.800 pessoas em situação de rua, um número que está abaixo dos mais recentes contabilizados por organizações não governamentais.
“Para nossa surpresa, ao lançarem a política deste governo para população em situação de rua, eles reduziram drasticamente essa população, com corte de 1.300 pessoas e chegaram ao número de 2.500. E o que a gente viu é que, na verdade, tem duas versões do plano Ação Rua circulando. Em um, falam em 2.700 e em outro em 2.500 pessoas. Por isso, questiono os números”, explica Gabriela.
Ela defende a urgência no recenseamento da população de rua de Porto Alegre. “Porque se a gente não sabe quantas pessoas tem, se chega a uma política de oferta de 650 auxílios moradia, 200 vagas de hospedagem social, coisas que sempre são insuficientes. Então a gente tem que pedir um novo censo já.”

Depois de alguns dias cinzas e frios, fazia sol no reencontro de Cícero Almeida, 47 anos, com as ruas. O espaço onde ele já viveu agora é onde conta para outras pessoas a sua trajetória, por meio do Movimento da População de Rua. Cícero é um recorte daqueles que através de ajuda conseguiram sair dali, mesmo em meio às incertezas e desafios.
O agravamento da pandemia modificou e intensificou a vulnerabilidade das pessoas que vivem em situação de rua, além de ter alargado o grupo populacional e alterado o perfil dessa parcela da população. Aqueles que recentemente estão nas ruas são, também, autônomos, trabalhadores que perderam empregos e casas. Gabriela alega que para o enfrentamento dos problemas sociais são necessárias políticas públicas congruentes, mas um retrato do Brasil que reflete em Porto Alegre é a insuficiência de dados para dar base a essas políticas públicas.
“As pessoas estão dizendo ‘na rua eu consigo comer’, então tem que pensar em intervenções precoces e em políticas efetivas que considerem essas necessidades e, mais, que dialoguem e envolvam a população em situação de rua. Políticas de cima pra baixo, sem a participação dos interessados, não adiantam, não resolvem, não são efetivas”, contesta a pesquisadora.
Mesmo não tendo um plano efetivo, a Prefeitura lançou em agosto o Ação Rua Adultos – com programa de ações para os próximos quatro anos. A ênfase do trabalho será nas áreas da Saúde e Assistência Social, com apoio da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), complementados pelas demais áreas do Executivo: trabalho, educação, habitação, esporte, cultura e segurança. A estimativa é que sejam destinados R$ 14 milhões para a efetivação do programa.
Nas brechas deixadas pelo poder público, programas de reparação social atuam tentando garantir o mínimo de direitos à população de rua gaúcha. É o caso do Clube de Pães Amada Massa e do Jornal Boca de Rua. As duas iniciativas têm por intenção uma construção de autonomia através de um sistema de apoio e geração de renda para as pessoas em vulnerabilidade social.
A Amada Massa parte da militância na luta pela garantia de direitos de pessoas em situação ou trajetória de rua, como Edson Campos, conhecido também como Beiço, que passou 22 anos na rua e há três anos mudou essa realidade. O Clube de Pães nasceu a partir de uma ocupação feita pelos moradores. “A gente fez a ocupação porque ninguém queria mais voltar para a rua e, para isso não acontecer, nós tínhamos que ter um projeto com geração de renda”, conta Beiço. A partir disso, o projeto foi crescendo junto aos apoiadores e assinantes.
Para trabalhar no Amada Massa, os integrantes participam de três reuniões iniciais, depois disso já podem pegar o pão para vender em feiras e ganhar sua parte. “Cada pessoa que frequenta as reuniões têm direito a cinco pães para vender a R$15”, explica Beiço. “Para entrar para a produção, precisa ter uma demanda”, completa.

Beiço ainda conta que fazem o Rango na Rua, ação dos integrantes do Amada Massa realizada todo sábado. “Nós fazemos os pães e distribuímos o rango toda a semana para não esquecer dos irmãos”, diz.
Os participantes ganham o benefício de R$ 600cada, com o compromisso de ir trabalhar três vezes por semana. Agora Beiço sabe do seu valor e reconhece que no Amada Massa se encontrou. “É a oportunidade que eu não tinha”, diz.
Outro projeto que atua distribuindo alimentos para a população em situação de rua de Porto Alegre é o Prato Alegre, que está no Centro, na Lomba do Pinheiro e na Cruzeiro. São restaurantes que servem alimentação para famílias e população de rua todos os dias, e integram o Projeto Amor Centro.
O serviço também conta com assistência social, onde são feitos atendimentos de acompanhamento, encaminhamento e escuta. “Há um diálogo que informa, porque muitos deles não sabem os seus próprios direitos, acessos e garantias, então para eles não é só um almoço, é um atendimento geral”, explica o assistente social Júnior Alves.
O Projeto Prato Alegre nasceu após uma participação no edital da Secretaria de Desenvolvimento Humano da Prefeitura de Porto Alegre, em que a associação ganhou o espaço que está ativo há dois anos com verbas do município. O edital é lançado todo ano para que organizações da sociedade civil possam oferecer o serviço de refeições sociais.
As organizações beneficiadas após chamamento público do edital assinam um termo de colaboração com a SMDSE por um ano, com possibilidade de prorrogação por até 60 meses. Em 2020, os recursos repassados às organizações somaram um total de R$ 331.800,00, sendo 12 parcelas de R$ 26.400,00, segundo a Prefeitura de Porto Alegre.
São muitas as tentativas governamentais de implementação de programas sociais, mas para Gabriela Godoy eles acabam funcionando de forma paliativa.
O Moradia Primeiro, programa implementado em 2017 em Porto Alegre, com o nome de Mais Dignidade, foi um desses casos de ajuda paliativa. O programa foi de fato efetivado em 2018, com verbas do governo federal e hoje está sob responsabilidade da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e da Secretaria Municipal de Saúde.
O programa consiste em oferecer acesso imediato à moradia, com aluguel de habitação para pessoas que vivem nas ruas. Além disso, dá um acompanhamento de serviços dos centros de Atenção Psicossocial (Caps) do município.
“Primeiro, ele veio com essa garantia de moradia a longo prazo, mas que não funcionou aqui em Porto Alegre. Aqui foram seis meses, prorrogados por mais seis, como os demais benefícios, auxílio-moradia e hospedagem social. Sempre tem um limite, a pessoa chegou a dois anos, por exemplo, de auxílio-moradia e não tem mais como receber, já prorrogou quatro vezes, volta pra rua”, explica a pesquisadora.
Para ela, o programa de moradia dá certo naqueles lugares que não impõem limite de tempo, já que aqueles que estão na rua precisam se reorganizar para buscar o auto sustento. Gabriela acredita que falta sensibilidade para entender que são pessoas que vêm de uma pobreza transgeracional e marcados pelo racismo. “A gente vê um desmonte de políticas sociais, uma expansão dessas tendências neoliberais, mudanças drásticas no mundo do trabalho e agora, com a pandemia, ainda mais. Não é à toa que a rua tem cor, a rua é preta. A maior parte das pessoas, porque a gente tem uma história de escravidão, de colonialismo, uma maneira como se expressou o modelo capitalista aqui nas colônias europeias. Por isso, o processo de acompanhamento tem que ser de longo prazo.”
Cícero, por exemplo, é um homem negro. Fez parte de todas as estatísticas, no centro da cidade, debaixo de uma ponte, ele descreve um lugar com marcas de fogo que tinha um barraco onde já morou com um amigo. “Aqui ele foi queimado vivo por dever para os traficantes”, diz. “É importante falar sobre isso porque muita gente ainda vive nessa realidade, tem vários Cícero que ainda estão nessa situação e, se Deus quiser, eles vão encontrar um caminho como eu encontrei.”
*Esta reportagem é uma produção do Programa Sala de Redação, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, do projeto Jornalismo & Território, com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Porticus e Open Society Foundation.