
Verônica, Caroline, Mana, Selena e Morgana, cinco mulheres trans assassinadas em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, entre setembro de 2019 e janeiro de 2020. Uma onda de assassinatos que, até o momento, não tem conexão direta, mas revela uma escalada de intolerância contra uma das populações mais marginalizadas da sociedade. Na última quinta-feira (12), o Sul21 conversou com a advogada e ativista Marina Maria de Ávila Callegaro, que atua em três dos casos — de Verônica, Caroline e Selena –, para tentar compreender as circunstâncias que envolvem estes assassinatos. Confira a conversa a seguir.
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Sul21 – Como estão as investigações dos casos que tu acompanhas diretamente?
Marina: Todos os autores já foram reconhecidos e estão presos. O caso da Carol já está na fase de instrução e a audiência ocorreu hoje [quinta-feira, dia 13]. Foram ouvidas três testemunhas e serão ouvidas mais três. O caso da Verônica está na fase de resposta da acusação. E o processo da Selena está na fase final de inquérito. Essa semana, a delegada talvez já tenha mandado para o fórum.
Sul21 – Quem são os suspeitos de cometer os crimes?
Marina: Todos são homens. O da Carol recém tinha saída prisão., fazia um dia. Estava há um dia em liberdade e retornou depois de alguns dias, tem 18 anos. O da Verônica era um rapaz que não era conhecido, se ofendeu com alguma coisa que ela falou e simplesmente a matou, por motivos fúteis. Por isso que eu digo que elas estão muito vulneráveis. Eles acham que vão matar e não vai acontecer nada. Essa é a minha visão. E o da Selena, na verdade, tinha uma relação com ela. Ela tinha um comércio, vendia cavalos, ela também fazia trabalhos, era uma líder religiosa. Teve uma divergência. No meu entendimento, teve uma questão de intolerância religiosa.
Sul21 – Esse era o único caso em que o suspeito e a vítima se conheciam?
Marina: Sim, nos outros casos, eles não se conheciam. A Verônica não conhecia o rapaz, nem a Carol.
Sul21 – Houve algum avanço nas investigações para achar alguma conexão entre os casos?
Marina: Na verdade, os casos não têm conexão quanto aos fatos. O que a gente diz que tem que analisar, e a própria polícia reconhece em reunião interna, é que há um contexto comum em torno desses crimes. Essas pessoas vivem em situação de vulnerabilidade, muitas vezes à margem da sociedade, porque não sendo aceitas, legitimando discriminação, preconceito. As pessoas precisam passar a respeitá-las. Por mais que os crimes não tenham conexão direta, eu entendo, como uma mulher, advogada e ativista da causa, que um acaba legitimando o outro. E a gente não pode deixar que isso se naturalize perante a sociedade. Então, por mais que eles não tenham essa conexão direta, eu entendo que os fatos acabam ocorrendo porque um acaba legitimando o outro. Essa é a minha opinião.
Sul21 – Esse número de assassinatos de mulheres trans em um curto espaço de tempo é algo que não tem precedente, não é?
Marina: É que, na verdade, nós estamos vivendo um momento, enquanto sociedade, em que há uma violência contra todas as mulheres, mulheres transgênero, mulheres cis. Aqui em Santa Maria há uma onda de violência muito grande. Inclusive, essa semana, em menos de seis horas, duas mulheres foram violentadas. Santa Maria também é a terceria maior cidade do Rio Grande do Sul em números de feminicídios. Ano passado, também foram quatro vítimas mulheres. Eu vejo que nós estamos em uma onda muito conservadora, com um presidente que legitima isso, que incita à violência, e cada vez mais está aumentando. A comunidade LGBT, as mulheres, os negros, dizem que a gente é a minoria, mas a gente é a maioria, e ainda sofremos mais violência.
Sul21 – Na tua opinião, existe algo que explique o fato de Santa Maria, especificamente, estar concentrando esses casos?
Marina: A nossa cidade, por mais que seja uma cidade universitária, ela ainda é uma cidade muito conservadora. Mas isso se deve também a uma falta de políticas públicas. Hoje, nós não temos uma política pública na cidade que acolha mulheres trans. Elas ainda estão à margem da sociedade. Claro, elas têm a opção de viver da forma como elas quiserem, né, a maioria delas vive da prostituição, mas não tem uma política efetiva que as insira no mercado de trabalho. No momento em que elas estão na rua, trabalhando, elas também se colocam em perigo. A gente não vê, aqui em Santa Maria, uma mulher trans trabalhando no comércio, dentro da universidade, num consultório médico ou numa fábrica, a gente não vê. Por quê? Porque não tem oportunidades e também porque não tem uma política pública, que deveria ter, porque aqui tem uma comunidade LGBT muito grande. Então, no momento em que elas estão na rua, estão vulneráveis, obviamente que acaba acontecendo esse tipo de crime. A Verônica e a Carol estavam trabalhando, foi nessa situação que elas morreram.
Sul21 – Qual foi a reação do poder público municipal e de outros entes sediados em Santa Maria aos assassinatos?
Marina: Até houve reuniões, mas não teve nada efetivo. A única coisa que teve é o ambulatório trans. Esse trabalho está iniciando agora, mas são quatro anos de governo e apenas agora, no último ano, teve a criação desse ambulatório. Por exemplo, não tem uma rede de acolhimento, nada.
Sul21 – Teve algum posicionamento público do prefeito Jorge Pozzobom?
Marina: Ele chegou a marcar duas reuniões, mas a maior fala dele é que ele tem dificuldades financeiras e não tem condições agora para, de fato, apoiar. Chegaram a sugerir para ele a criação de um centro de cidadania, o que eu achei super interessante, que acolheria mulheres trans, crianças. Enquanto Estado, tem a Delegacia de Intolerância agora aqui na cidade. Eu já acompanhei esse mês três mulheres lá para fazer registros de situações de violência dentro de casa, violência na rua. Muito é pelo preconceito.
Sul21 – Essa delegacia é recente?
Marina: Se eu não me engano, desde o ano passado. E, agora, quem veio para cá é a delegada Débora Dias, que era da Deam [Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher], que é especializada na violência contra a mulher. Essa delegada trabalhou muito tempo na Deam e agora está na Delegacia de Intolerância. O que eu acho é que as delegacias da mulher trans deveriam ser tratadas na Delegacia da Mulher. Eles dizem que não tem estrutura, mas acho que seria muito melhor a acolhida e elas se sentiriam mais identificadas. Tem que aproximar, não podem criar um sectarismo.
Sul21 – Pois é, porque as mulheres trans acabam ficando num limbo de políticas públicas, não é?
Marina: Mas eu já consegui, aqui em Santa Maria, uma decisão recente de uma solicitação de medida protetiva com base na Lei da Maria da Penha e foi deferida para mulher trans. Eu fui com ela até a delegacia, fiz o registro, consegui a medida protetiva e o juiz da Vara da Violência Doméstica deferiu.
Sul21 – Como foi a repercussão desses assassinatos na opinião pública local? Eles foram debatidos na imprensa?
Marina: Elas foram debatidas, foi dada visibilidade na imprensa local. Mas é o momento, né. Eles tratam do tema, até há uma crítica quanto à falta de políticas públicas, mas depois para. Eu vejo que é muito do momento. Acho que a gente precisa dar sequência nisso. Não adianta acontecer, a reação da polícia até foi eficaz, mas a gente não quer que aconteça. Para isso, nós precisamos ter uma política pública que insira essas mulheres, que dê dignidade para que elas possam acessar o mercado de trabalho e não terem como única opção se prostituir.
Sul21 – O que tu descobristes a partir do trabalho nesses casos, tanto em termos de razões, mas também da situação de vulnerabilidade desses mulheres? Que lições esses casos trazem?
Marina: São mulheres que ainda são muito discriminadas. A sociedade ainda não as aceita, muitas vezes, as famílias não aceitam. Em diversos casos, os pais não as reconheceram, elas só têm a mãe na certidão de nascimento. Então, já vem desde a infância esse preconceito. Depois, toda a questão da aceitação das famílias. Elas não têm oportunidades. Todos os casos se mostram assim, é um plano de fundo. Precisa ser dada a visibilidade e só através da imprensa, só através de políticas públicas eficazes, elas poderão fazer as escolhas que quiserem na vida delas. Nesse sentido, a gente fez um esforço muito grande, eu estive envolvida nisso, para que o velório da Verônica ocorresse dentro da Câmara de Vereadores, porque é importante dar visibilidade a esses casos. Ela, como uma liderança que era, fez-se necessário que o velório dela ocorresse na Câmara para que a sociedade enxergasse. Mas muitos criticam. Muitos criticam, mas foi muito importante, porque, se tu não dá visibilidade para isso, elas vão continuar morrendo, elas vão continuar sendo deixadas à margem da sociedade, e não é isso que a gente quer.