Fernanda Morena

Dez artistas vivem a melhor idade na Casa do Artista Rio-grandense (CAR), uma hospedaria para quem um dia viveu de arte e cujos talentos não são mais a forma de sustento. Na Casa, a forma de sustento é a doação – e é o que esses legendários artistas precisam.
O casarão onde está instalada a instituição fica no bairro Glória. Foi construído em 1953 depois que o radialista Antonio Amabili criou a Associação Casa do Artista Rio-grandense, em 1949. A CAR não é um grande ateliê coletivo; é um abrigo, onde artistas gaúchos idosos podem viver e conviver sem gastar um centavo.
O prédio tem dois andares, quatro banheiros, duas cozinhas – uma delas recém reformada -, uma lavanderia no aguardo de uma máquina de lavar e um projeto elétrico, duas salas de lazer, uma biblioteca com computadores e uma extensa área verde no contorno. A manutenção de tudo isso – contas de luz, água, internet, limpeza, IPTU – somam R$ 1,5 mil ao mês – cinco vezes o valor arrecadado pela CAR em doações diretas.

O jeito é conseguir apoio fixo: a luz é paga por um ator (que não é residente da Casa), a televisão a cabo é mantida pelo Grupo RBS, a água fica sob responsabilidade dos estudantes do Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS ou do Sindicato dos Artistas, conta Luciano Fernandes, presidente da CAR.
Reformas
Há dois mandatos na presidência da CAR – um trabalho para o qual se voluntariou -, Fernandes divide seus dias em batalhas constantes em nome dos artistas. Membro do Sindicato, é engajado em “reformas que tragam melhorias para a categoria. Na CAR, o trabalho é mais humano”, conta.
Desde que assumiu os cuidados da CAR, Fernandes encabeçou projetos de reformas na infraestrutura do prédio: “Fizemos essa cozinha de apoio, uma área para receber as pessoas, ou ser usada como um ateliê, e construímos uma área para receber coletivos de arte de fora do estado que estejam na capital para apresentações”, aponta o circense. “Essa poderá ser uma forma de angariar mais fundos”, explica.

O que a Casa precisa é de verba para completar as necessárias obras e realizar a manutenção local. A fim de apresentar o projeto da CAR aos moradores de Porto Alegre e levantar algum dinheiro, há um ano eles promovem um sarau no último sábado de todo o mês. O projeto deu certo e, com a quantidade de pessoas que participam das sessões conduzidas por um grupo de quatro artistas na sala principal do casarão, há um projeto para ampliar a área de convívio dos hóspedes da CAR e o público mais uma vez. “Esse novo espaço, o Varandão da Cultura, está orçado em R$ 50 mil. Conseguimos captar R$ 15 mil no ano passado. Então estamos ainda procurando”, diz Fernandes.
O ato de buscar incentivo para trabalhos culturais é um dos problemas que circundam a vida dos artistas dentro e fora da instituição. Apesar de instrumentos legislativos como as Leis de Incentivo à Cultura e a Lei Rouanet terem aberto o caminho para muitos dos projetos, a captação de recursos ainda barra num sistema burocrático complicado – muitas empresas desconhecem que podem deduzir a doação de seus impostos.

Além do Varandão, outras obras estão previstas no futuro de Fernandes à frente da CAR: um reparo no sistema elétrico da casa parece ser de necessidade imediata: “Conseguimos agora um seguro para o prédio, mas eles estão nos cobrando que a fiação têm de ser consertada”, revela, apontando para os fios que se penduram nas paredes e teto da casa, sem canaletas que os protejam e escondam de intempéries. Uma outra é a construção de um mausoléu no Cemitério São João.
O local já foi doado pela administração do cemitério, e agora é preciso arrecadar outros R$ 30 mil para a construção da área. “Parece um assunto mórbido, mas é preciso pensar na morte nessa altura da vida deles”, reflete Fernandes. Ele lembra que o falecimento de uma hóspede da CAR no ano passado revelou a necessidade de se preparar para o inevitável. “Um enterro é caro, custa entre R$ 2 mil e R$ 3 mil. É muito difícil levantar essa grana do nada.”
Itens da cesta básica também entram na lista das necessidades diárias, como lâmpadas e material de limpeza e higiene. E até mesmo doação de serviços é bem-vinda, como os de eletricistas, faxineiras e contadores. “Só para fazer a prestação de conta e entrar nos projetos para arrecadação de verba, gastamos R$ 1 mil com um contador”, afirma Fernandes.
A vida na Casa

Carlos Conde tem 70 anos. Os três últimos deles foram passados na Casa, onde ocupa o primeiro quarto no enfeitado corredor do segundo piso. Ele era cantor da noite; hoje, divide seu tempo entre um ou outro bico e o corte da grama do pátio da CAR. “Sempre disse que ser músico é um hobby remunerado.”
Conde embalou ativamente noites gaúchas na época de Lupicínio Rodrigues e serestas românticas. Queria mesmo, no entanto, era ser roqueiro. Ele agora procura músicas na internet, tira as letras e ensaia os refrões para eventuais apresentações. Na lista, Cazuza, Djavan e alguma incursão pelo inglês. “Estou agora estudando The Lady is a Tramp, do Sinatra, e New York, New York. Não entendo toda a letra, mas acompanho a canção lendo no papel”, conta.

Perguntado se gosta de viver na CAR, Conde dá de ombros. “É o que tenho. Se eu tenho só R$ 1 mil no bolso, preciso aprender a viver com aquilo, e não pensando que tenho R$ 2 mil”, tenta explicar.
A vida profissional da música também lhe causa menos interesse hoje. Diz que gosta somente de apresentações, em que vai com sua seleção pré-programada para tocar, dubla as músicas, e a noite acaba ali. Melhor ainda seria, reflete, se tivesse um músico para acompanhá-lo no violão. “Essa coisa de ficar recebendo pedido da plateia não é comigo. Não conheço as músicas, não preparei. Não dá”, determina.
Isso não significa que a música esteja fora de sua vida por completo. Conde segue preparando seu repertório e frequentando bailes da cidade todas as terças e sextas-feiras – mas como convidado, não como músico.
Adaptação
Fernandes escuta a fala de Conde e acena com a cabeça: “Talvez mais do que qualquer outra coisa, o problema aqui seja o humano”. Como um igual, Fernandes reconhece traços comuns da personalidade dos artistas que possam dificultar a vida no coletivo. “São pessoas de personalidade forte”, admite.
Enquanto o Sul21 visitava a CAR, os artistas estavam fechados em seus quartos. Não dividem horas do dia trabalhando em projetos conjuntos, ou simplesmente fazendo companhia um ao outro. Escutava-se o som de uma gaita de boca vinda de um dos quartos. Mas ele verberava só.
“Fico pensando se não precisaríamos investir em uma pessoa que ficasse aqui, conduzisse atividades e criasse esse convívio”, pondera Fernandes. “Mas é muito caro.”
O presidente conta que atividades como o sarau têm rendido bons momentos para os hóspedes. “Às vezes eles reclamam, não querem participar. Mas no final gostam do contato com o público”, lembra.
Ainda que tenha problemas, a CAR é o único abrigo para artistas que, por ser gratuito, permite que muitas estrelas de décadas passadas possam se reerguer e participar de eventos e atividades culturais mesmo sem contar com o antigo emprego que tinham; e mais, sobreviver e ter um lugar para viver. Como é o caso do ator e primeiro galã do estado, Carlos La Porta, de 77 anos, e o locutor e radialista Carlos Borges, de 72 anos, moradores da Casa. “Artista deveria viver a vida fazendo arte, e não se preocupando em guardar dinheiro para ter um imóvel”, entende Fernandes.




