
Débora Fogliatto
A crise pela qual o mundo passa atualmente não é apenas econômica ou social, mas sim uma crise do sistema capitalista como um todo. Foi o que sustentaram os palestrantes em uma das primeiras mesas do Fórum Social Temático 2014, que debateu a crise capitalista e a agenda pós-2015. Com a presença de três conferencionistas internacionais e dois nacionais, o evento, que aconteceu nesta quarta-feira (22), no mezanino do Salão de Atos da UFRGS, abordou a necessidade de se erradicar as desigualdades sociais e discutiu as mobilizações civis, sob a perspectiva tanto do Brasil quanto do Egito.
O diretor regional da Associação Brasileira de ONGs (ABONG), Damien Hazard, foi o mediador do debate, e iniciou sua fala esclarecendo a composição da mesa. “Essa mesa não é formada por especialistas das Nações Unidas, mas sim por pessoas de movimentos sociais, que têm um percurso dentro de uma militância e que buscam outro modelo de desenvolvimento”, explicou.
Ele então afirmou que os dois próximos anos serão fundamentais, tanto para a ONU quanto para organismos multilaterais e organizações da sociedade civil que estão trabalhando para o desenvolvimento sustentável. A própria ONU, no entanto, foi duramente criticada pelos membros da mesa. Gilberto Leal, da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), chamou a entidade de “retrógrada”. “Na ONU, cinco países decidem o que vamos comer e de que forma vamos nos mover, o sistema atual funciona assim”, criticou. Conforme afirmou Hazard, a organização “cada vez mais é influenciada pelo grande capital, pelas grandes corporações”.

Hazard mencionou os objetivos do milênio, traçados no início dos anos 2000, e analisou a forma como eles não abordam uma mudança no sistema global. Os oito objetivos, lembrados no evento, são: erradicar a pobreza extrema e a fome; atingir o ensino básico universal; promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde de gestantes; combater o HIV/AIDS, malária e outras doenças; garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.
“Os objetivos minimizam importância da igualdade social. Falam de erradicação da pobreza, mas não da diminuição da riqueza. Hoje, precisamos tanto reduzir a extrema pobreza quanto a extrema riqueza”, criticou Hazard. A ONU, assim como a maioria dos Estados, são hoje controlados por empresas privadas, o que gera parcerias público-privadas que produzem serviços que são “nem sempre adequados e acessíveis”, explicou.
Crise sistêmica
O francês Bernard Cassen, um dos criadores do primeiro Fórum Social Mundial e diretor do jornal Le Monde Diplomatique, foi mais longe e afirmou com todas as letras que o mundo passa por uma crise sistêmica do capitalismo. Ele relatou que o Fórum Econômico Mundial, que acontece em Davos e que inspirou a criação do FSM como contraponto, também começou hoje.
O evento é baseado nos princípios do neoliberalismo e, segundo Cassen, discute um relatório produzido por especialistas sobre os principais problemas internacionais atuais: crise econômica; crise ecológica; risco tecnológico e geopolítico; e os riscos da sociedade (como revoltas e protestos). “Este relatório tem dados evidentes. Eles consideram que os riscos estão conectados, o que dizemos há anos. Mas as repostas ao relatório são ridículas, não se questionam sobre o sistema”, criticou. “Eles dizem para encontrar parcerias entre privado e público. Governos são nacionais, mas empresas são multinacionais, e o objetivo seria chegar à privatização do poder público. E o que colocar no lugar?”, questionou.

Da mesma forma, a egípcia Heba Khalil, que trabalha com direitos sociais e econômicos em seu país, não acredita que uma mudança seja possível sem o fim do sistema capitalista. Ela trouxe o relato e as críticas de alguém que participou diretamente dos protestos e observa os rumos que o Egito tomou após a revolução que derrubou Hosni Murbarak em 2011. “Existe um mito de que nós só precisamos corrigir alguns errinhos, não mudar todo o sistema (capitalista), e isso é muito perigoso”, argumentou.
Ela disse que os países em desenvolvimento muitas vezes são considerados pouco integrados ao sistema, mas que este não é o caso. “Existe um mito de que países pobres precisariam estar mais integrados no sistema capitalista, mas o que vimos nos últimos anos é que esses países são pobres exatamente por estarem integrados a um sistema capitalista injusto. O sistema global como um todo precisa mudar”, afirmou.

Para Khalil, a situação só pode mudar quando acontecer um combate efetivo à pobreza, o que só aconteceria com uma reflexão a respeito de onde ela vem, e das formas como o capitalismo a reproduz. “Lamento dizer, nenhum país que viu revoluções acontecerem vai ver as transições com as quais estávamos sonhando, de justiça econômica, social e mudança. Não veremos isso a menos que algo aconteça com o sistema global”, concluiu, admitindo falar de uma perspectiva pessimista.
Para começar a mudar essa realidade, a sociedade civil precisa se organizar, possivelmente aliada a governos progressistas, para buscar “outra concepção de desenvolvimento, que não seja só o crescimento econômico”, conforme definiu Damien Hazard. “Os movimentos podem se organizar, trabalhar coletivamente. Todos os setores têm que atuar nessa dinâmica de mobilizações, e na América Latina é possível conversar com os governos, em sua maioria progressistas”, concordou o Presidente da Associação Chilena de ONGs (Acción), Miguel Santibáñez. “Temos que convencer alguns governos de que existem causas estruturantes, como a desigualdade e a pobreza. Nós temos que buscar novas formas de provocar os governos, inclusive no plano dos financiamentos das políticas”, reforçou Hazard.