Débora Fogliatto
A assistente social Adriana Feijó é diretora do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) desde fevereiro de 2014. A instituição, que abriga as pessoas com problemas de saúde mental que tenham cometido delitos, funciona em uma lógica que está entre o presídio e o hospital. Ela garante, porém, que sua busca é por tornar este um local de tratamento e não de punição. Durante esta semana, o IPF é um dos lugares que recebe a semana de luta antimanicomial, com atividades mencionadas por Adriana na entrevista.
Antes de assumir a direção, ela já dedicava boa parte de sua carreira a ser assistente social do instituto, período em que conseguiu trabalhar na reabilitação da grande maioria das pacientes mulheres. De trinta, o número foi diminuído para três, desde que ela voltou a trabalhar no IPF em 2008. Adriana conta que esse trabalho foi feito “uma a uma”, a partir da ressocialização com as famílias.
Nesta entrevista ao Sul21, ela fala de reforma psiquiátrica e da lógica que pretende seguir em sua gestão, prezando o bem-estar dos pacientes e lembrando sempre que “aquele paciente naquele momento poderia ser qualquer um de nós ou um familiar nosso”. Buscando um olhar mais humanizado dentro de uma instituição total, Adriana pretende deixar o mandado no final de 2014, mas sem deixar de trabalhar no Instituto: “Eu sou servidora daqui e amo isso. Eu acho que não tenho como fugir disso mais da minha vida”.

Sul21 – Como funciona a medida de segurança e a questão de que pode ser renovada?
Adriana – Essa medida é para contemplar o indivíduo que cometeu o delito e que é entendido que era naquele momento incapaz de compreender o ato delituoso. Uma pessoa comete um delito e vai para a cadeia, chegando lá alguém suspeita, às vezes pelo tipo de delito ou pela conduta daquela pessoa, que ele pode ser incapaz de entender o ato. E aí então ele vem para o IPF para a triagem. Ele ali ainda é preso. E passa por um laudo de responsabilidade penal, feito por psiquiatras forenses. E isso só é feito aqui, no Rio Grande do Sul todo. E se nesse laudo diz que ele era incapaz de compreender que aquele ato era delito, ele passa a não cumprir pena, e sim medida de segurança. Torna-se um paciente, e não mais um preso. Não vai para o presídio, fica aqui.
A medida de segurança é dada de um a três anos inicialmente, e todo o ano esse paciente é avaliado por um perito e pela sua equipe, que geram um laudo de verificação de periculosidade, que é renovado por mais um ano.
Sul21 – E caso se julgue que essa pessoa não precisa mais ficar aqui, como acontece o processo?

Adriana – Isso é gradativo. Existe um benefício que se chama alta progressiva (AP). Nessa verificação de periculosidade, se determina que ele já pode ir retornando gradativamente para a sua comunidade. Ele começa a ser inserido na alta progressiva e vai para casa passar alguns dias, vai se organizando lá. A alta progressiva prevê o retorno social, vinculação com as unidades de saúde. E agora a ideia deste momento é que este paciente já comece com essa possibilidade de retorno social, para que ele não se institucionalize. Então existe a medida de segurança ambulatorial, em que ele nem sai da sua comunidade, e a que já vem com alta progressiva. Daí não é necessária mais uma avaliação para depois sair, já vem com essa possibilidade. Então esse é o futuro, que ele não se institucionalize e não perca os vínculos com a sua comunidade, com a sua família.
Sul21 – E esse projeto surgiu com a reforma psiquiátrica?
Adriana – A alta progressiva surgiu antes, nós fomos precursores no Brasil. Foi uma ideia dos nossos peritos. A reforma vem otimizar estas saídas, através dos Centros de Atendimentos Psicossociais (CAPS), que precisam existir. Os pacientes precisam ter atendimentos em suas próprias comunidades, isso não pode ficar centralizado só aqui.
Para Porto Alegre, deveria ter mais CAPS, por ser uma capital. Mas a maioria das regiões do interior tem. A nossa crítica era que achávamos que eles precisam atender melhor nosso paciente, acolher melhor. No início tinha essa dúvida de “mas o paciente é nosso ou do IPF?”, e agora as coisas estão sendo esclarecidas, os CAPS estão acolhendo mais o paciente. Mas às vezes enfrentam problemas como não ter remédios em determinadas regiões, alguns pacientes vêm aqui só para buscar medicação. Ou não tem psiquiatra em determinados momentos.
Sul21 – O IPF é ligado à secretaria de segurança ou de saúde?
Adriana – Da Segurança, mas existe essa parceria, essa dualidade que o IPF tem. Porque ele é segurança, mas também é saúde, é um tratamento.

Sul21 – Quando os pacientes têm as medidas extintas, eles preservam os vínculos aqui?
Adriana – Quanto tem a medida extinta, as questões jurídicas já estão acertadas, o juiz diz que ele não tem mais porque estar internado. O que impede o retorno são as questões sociais. Nós através de laudos o mantemos aqui porque não têm muito mais condições sociais. A nossa realidade é de pacientes com dificuldades de retorno social, que perderam todos os vínculos. Todas as decisões nesse sentido aqui são comunicadas à Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas, a VEPMA. Que é a nossa parceira, essa vara tem muito claro o entendimento da reforma e dos prejuízos da institucionalização do indivíduo, e de se poder entrar pensando na saída. Antigamente havia um olhar hospitalocêntrico, centralizador no hospital, e agora temos um olhar de reorientação do modelo. Trabalhamos reorientando, não mais aquele modelo hospitalar, mas de rede, de o paciente poder estar na comunidade, de inclusão, na verdade.
“A reforma prevê a extinção dos manicômios judiciários, e eu acho que isso seria o ideal”
Sul21 – Para ti, o ideal seria que o IPF como instituição não exista mais?
Adriana – A reforma prevê a extinção dos manicômios judiciários, e eu acho que isso seria o ideal. Acredito que esse espaço institucional talvez seja importante ainda, porque tem alguns pacientes que cometeram delito dentro da própria família. A reforma psiquiátrica prevê que a pessoa que cometeu o delito e recebeu uma medida de segurança vá para um hospital geral, se estabilize e retorne para a comunidade, ficando vinculado à rede. Mas às vezes, como seria esse retorno para a comunidade? Muitas vezes não pode ser na família. Então tem esse outro elemento que são os residenciais terapêuticos, que nesses casos é o ideal. Mas para nós aqui, atualmente temos 40 pessoas com medida extinta e que não podem retornar para as famílias, eles poderiam ir para esses residenciais, mas não estamos conseguindo. Porque Porto Alegre tem poucos, e os que têm são absorvidos pelos pacientes do Hospital São Pedro, que são doentes mentais que não cumprem medida de segurança.
Sul21 – Mas mesmo assim, o número de pacientes aqui vem diminuindo aqui, certo?
Adriana – Sim. Nós tínhamos um número bem elevado de pacientes, e de uns três anos para cá com essa questão de impor a reforma, a reorientação do modelo diminuiu bastante. Hoje temos 380, e a ideia é que mais saia do que entre. Tem uma portaria que saiu em fevereiro que prevê na entrada já uma equipe multidisciplinar que vá triar os pacientes para que eles não venham para a instituição. Isso já junto ao judiciário, antes de dar a medida de segurança. Essa equipe vê as condições da comunidade e já busca incluir ele na rede de saúde, ao invés de excluí-lo aqui. Essa é mais uma ferramenta para que uma instituição dessas não receba mais pacientes, ou receba muito poucos.

Sul21 – E então para onde vão esses pacientes que não podem ser reinseridos nas famílias, visto que ainda não há residenciais terapêuticos para o IPF?
Adriana – O que fazemos em alguns momentos é procurar lugares com o caráter asilar, como casas de abrigo. Mas daí aconteceu, por exemplo, de uma fechar e todos os pacientes voltarem para cá. Algumas vezes são abrigos que não conseguem ter psicólogo, enfermeiro, e eles não dão conta com o salário mínimo de nosso paciente – que é o que podem pagar. Até usamos um termo chamado trans-intitucionalização, que é transferir de uma instituição para a outra, e procuramos evitar isso.
Sul21 – Os pacientes daqui recebem benefício quando estão saindo?
Adriana – Não é só quando estão saindo. Quando estão aqui, a gente já encaminha o benefício de prestação continuada, que a previdência tem para pessoas incapazes física e mentalmente de trabalhar. O serviço social encaminha, precisa ter uma documentação civil, vem uma avaliação de um perito do INSS. E aí eles começam a receber o benefício de prestação continuada, que é um salário-mínimo. Isso ajuda muito na reinserção com a família, porque eles deixam de ser uma boca a mais e contribuem com a família. Isso ajuda muito e abre portas pra eles.
Quando eles estão aqui, a gente usa, de uma forma organizada, porque aqui o dinheiro tem duas faces. Tem a questão da droga, então não dá pra ter muito dinheiro no bolso, e tem a coisa de um roubar do outro, porque tem aquele que tem envolvimento com droga. Então é um fator complicador, mas, por outro lado, se é organizado, como estamos organizando uma vez por semana a retirada de R$ 80, eles atravessam a rua e compram tudo aquilo que a instituição não pode oferecer e lhes dá uma qualidade de vida melhor: um refrigerante, um sanduíche, um salgado, um doce. Tem uns que compram as suas roupas. Isso é um resgate de cidadania e de autonomia. Quando não tinha esse benefício de prestação continuidade, eles contavam com alguns familiares que traziam algumas coisas. E era a miséria da miséria. Agora os pacientes têm seu próprio dinheiro, podem se programar para comprar alguma coisa melhor.

Sul21 – Eles administram seu próprio dinheiro?
Adriana – Alguns são curatelados, outros não. A maioria não. Mas aí quando é curatelado, o curador tem que dar conta desse dinheiro, o que, às vezes, dá problema também. A gente tem que estar em cima. Agora mesmo uma das pacientes, a dona Maria Ondina, a casinha dela ficou pronta. Como ela tem um dinheiro acumulado ali, porque as retiradas são semanais, sobra um tanto do salário mínimo todo mês. Ela vai poder comprar geladeira e fogão. A gente vai junto ajuda-la. A gente procura sempre que não sobre muito dinheiro, para que eles possam usar em benefício deles. Porque já aconteceu de o paciente morrer e ter R$ 10 mil, por exemplo.
Sul21 – Como é o caso da Maria Ondina? Ela foi atrás do Minha Casa, Minha Vida?
Adriana – O delito dela é que ela botou fogo na casa onde morava, em Farroupilha. A casa era da mãe dela e ela é filha única. A mãe dela foi para um asilo e ela veio pra cá, e ela tem um filho preso. E agora a mãe morreu e ela é uma paciente que nunca se deixou institucionalizar, sempre reivindicou sua casa. Aí nós pedimos, e chegou a sair na televisão. No dia seguinte, a prefeitura de Farroupilha nos ligou e perguntou o que podia fazer por ela. Quando explicamos qual era a situação, disseram que não podiam fazer nada. Aí fizeram contato com a Secretaria da Saúde, que me disse para mandar para um residencial terapêutico. Só que ela não quer residencial terapêutico, ela quer a casa dela. Mas em paralelo eu recorri ao Ministério Público de Farroupilha, que intimou a prefeitura a construir a casa pra ela. E aí sim o prefeito aprovou, estava prometido pra fevereiro e só agora a casa está pronta. E para essa semana achamos que ela vai. É um resgate da vida dela. Ela não quer ir para residencial terapêutico, ela não quer ir para uma instituição asilar, que nem a mãe estava. Ela se nega de ir para outro lugar que não seja a casa dela. Vamos levar ela para essa casinha e o CAPS de lá vai dar um atendimento especial e diferenciado, porque ela vai ficar só. A gente vai junto, eu quero ir. Vai eu, uma Terapeuta Ocupacional e a assistente social atual. Vamos ajudar a Maria Ondina, junto com o CAPS, a dar essa primeira arrancada. Depois ela vai se organizando na vida dela e no cotidiano dela.
“Cada caso é um caso e é uma história que tem que ser reconstruída”
Sul21 – Tinham 30 e poucas pacientes mulheres e agora só tem três. Como foi esse trabalho?
Adriana – Foi de resgate de famílias. Eu era assistente social e se formou uma equipe de trabalho com esse entendimento. Tinham muitas pacientes que já estavam prontas para retornar, e isso foi feito em dois anos, não é uma coisa de uma hora para outra. Foi uma a uma. Tinha uma psicóloga maravilhosa que foi lá no interior de Caxias do Sul e localizou a irmã de uma das pacientes, que tinha perdido o vínculo, porque são famílias pobres, é difícil de se locomover. Teve outra que o irmão é idoso e não poderia vir. Aí começamos a mandar nossa paciente também idosa de ônibus. Esse irmão, que era indiferente a essa irmã na instituição, começou a criar um vínculo de novo. Eu não mandei pra ficar, mandei para passar o final de semana. E assim fiquei quase dois anos mandando a Eni. Gradativamente os vínculos de afeto foram voltando, até que o irmão arrumou um lugar pra ela. Ela está num asilo perto da casa do irmão, o que é muito bom. Porque ele não pode ficar com ela, mas, resgatado esse afeto, ele mesmo tomou todas as providências. Ele pega ela no final de semana e trás pra casa dele ou vai visitar. E ela não voltou mais pro IPF. Estamos providenciando judicialmente a desinternação dela.
Cada caso é um caso e é uma história que tem que ser reconstruída. Aí a gente sempre faz o contato com o CAPS pra dizer para onde está indo esse paciente. Se o CAPS não acolhe bem, não dá conta, aí a gente acaba recebendo de volta. E isso acontece. E aí começa tudo de novo. Acho que para as mulheres isso aconteceu bem pouco. Isso acontece mais com os dependentes químicos, que não conseguem aderir ao tratamento, precisa estar mais fortalecido. Mas também tenho história de sucesso de uma paciente feminina, dependente química, que o CAPS entendeu que ela aqui não estava se beneficiando. Então o próprio CAPS interna em hospital geral, desintoxica, manda para a comunidade terapêutica, volta para a família, ela fica bem um tempo, recai, começa tudo de novo. Mas na maioria das vezes, eles voltam para o IPF. E é isso que não queremos.

Sul21 – Entre os dependentes químicos que estão aqui, existem casos relacionados a alcoolismo também, ou apenas drogas ilegais?
Adriana – Sim, muitos.
Sul21 – E os pacientes que são dependentes químicos ficam em unidades separadas?
Adriana – Tem a unidade fechada da dependência química, que é o G. Se não teve nenhuma intercorrência, nada que indique que ele tenha que ficar longe dos outros, ficam no aberto e a gente fica no controle. Claro que os nossos problemas são principalmente nas áreas fechadas, mas o IPF é mais do que a fechada. É muito mais aberto, eles entram e saem, a maioria. Eu tenho feito muito a fala de fechar como último recurso, estou em cima disso.
Sul21 – Eles podem sair mesmo sem ter os Acompanhantes Terapêuticos (AT)?
Adriana – Podem, é só ter alta progressiva e autorização da equipe pra sair. Tem alguns que têm autorização diária. Outros vão ter autorização específica. Outros não têm nenhuma autorização. Podem ter o AT e não necessariamente ter autorização pra sair.
Sul21 – Como é o programa de dependência química?
Adriana – Esse programa antes tinha um tempo de seis meses, e com a minha administração diminuiu pra cinco. Mas eu argumento que não é por adesão, eles não estão ali porque querem, eles foram mandados para esse programa. A parte do tratamento em si ainda está muito precária, eu estou trazendo recursos para que eles possam ter mais atividades, recursos e atendimentos. Não acreditamos em prender por prender. Estou tentando dar uma reorganizada, na releitura desse programa.
Sul21 – E quais são os pacientes que estão na Unidade F, que é a outra fechada?
Adriana – São pacientes que não estão bem, mas que não estão ligados à questão da droga. Daí eles ficam ali, como um resguardo mesmo, tanto para os outros quanto para ele. E ali é um tempo que vai depender da avaliação do psiquiatra. Eles ficam alguns dias e conforme já podem sair. E eu fico em cima disso, para que sejam só uns dias de fato, para que sejam sempre avaliados e não seja só o castigo pelo castigo. Há uma busca constante dessas questões.
“E estou querendo fazer as coisas muito mais pela sensibilização e pelo conhecimento do que pela imposição”

Sul21 – Aqui então se trabalha bem mais numa lógica do atendimento ao paciente do que prisional mesmo, me parece.
Adriana – Tu achaste isso?
Sul21 – Sim, é a impressão que eu tive.
Adriana – Esse é o nosso objetivo. E era para ser bem mais. E é isso que eu quero nesse um ano de gestão, e inclusive decidi ficar só um ano, porque é muito puxado. Nem todos os nossos servidores têm esse entendimento, então estou sempre na busca de não prender tanto, não punir tanto. E estou querendo fazer as coisas muito mais pela sensibilização e pelo conhecimento do que pela imposição. E isso demora mais, dá muito mais trabalho e cansa demais. Eu sonho todas as noites com o IPF. Eu olho os pacientes com um olhar um pouco diferente agora, porque é minha responsabilidade. Que diferença eu vou fazer para eles? Os pacientes me conhecem e apostam muito em mim.
Eu sempre penso que a qualidade de vida enquanto eles estão aqui é algo que eu posso fazer. Por exemplo, melhorar alimentação. A alimentação que os servidores recebem é a mesma dos pacientes? E se não é, por quê? Eu tenho um projeto de ir almoçar com eles, nos refeitórios dos pacientes. Tem outras coisas também, como a limpeza daqui, a higienização pessoal que também estou lutando por isso. Estou conseguindo tintas para pintarmos os quartos, mais camas, a minha ideia é conseguir armários pequenos para eles guardarem as roupas. Eles guardam tudo em mochilas. Se por um lado eu quero mudar isso, por outro eu quero que eles saiam. Mas existe a realidade que eles passam um período aqui, então essa qualidade nesse momento também é de dignidade.
“Fiquei dois anos estagiando aqui e me apaixonei, porque o serviço social faz muita diferença na vida das pessoas aqui”
Sul21 – E como tu te interessaste por trabalhar com saúde mental?
Adriana – Na verdade foi tudo muito por acaso. Eu era estudante da Unisinos, na graduação de Serviço Social, e quando eu precisei fazer estágio, eu queria um lugar que não precisasse concorrer com ninguém. Perguntei qual lugar ninguém queria, e me disseram que era o IPF. Eu nem sabia do que se tratava, então vim ver. E eu aceitei. Fiquei dois anos estagiando aqui e me apaixonei, porque o serviço social faz muita diferença na vida das pessoas aqui. Eu tive ótimas experiências no estágio, que foi em 1990, então foi antes da reforma psiquiátrica. Mas quem tem um olhar de maior sensibilização já percebe que o ideal não é ficar aqui. Então mesmo sem a reforma, eu já tinha essa visão da reforma, eu já conseguia botar os pacientes com as suas famílias, fazendo esse trabalho. E quando terminei a faculdade, fui convidada para trabalhar aqui como cargo de confiança técnico. A minha orientadora me chamou e fiquei aqui por cinco anos.
E depois disso fui trabalhar em outros lugares, a partir de concursos, em um albergue em Gravataí, no Presídio Central, no Centro de Observação Criminológica. E enquanto estava lá surgiu uma vaga para cá, em 2008, a partir do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que foi uma decisão judiciária para trazer mais funcionários para cá e poder se fazer a reforma psiquiátrica mesmo. Porque com poucos profissionais não têm como atender o paciente a ponto de organizar a saída dele. Foi quando vieram váras assistentes sociais, mais psicólogas, psiquiatras e enfermeiros. E começamos esse trabalho de diminuir muito os pacientes.

Sul21 – E como tu estás encarando a direção, nesses primeiros três meses?
Adriana – Quando veio o convite da direção foi um desafio, de poder estar em outro lugar, outra posição e poder interferir também de outra forma. Não só com um ou outro paciente, mas de uma forma geral. Tem sido bem desafiador. Foi uma indicação técnica, feita pela Secretaria de Segurança Pública, por eu ser uma servidora. Já que existe todo esse olhar da reforma e eu compro muito essa ideia, acho que isso colaborou. Mas ao mesmo tempo não sou radical, de fechar o IPF de repente e mandar para qualquer lugar os pacientes. A extinção do manicômio judicial tem que ser construída, é um ideal a ser conquistado. Eu procuro fazer essa mediação, então talvez também possa ser por isso. E tem a ver com a minha trajetória.
Quando eu recebi o convite eu não ia aceitar, mas a minha filha falou comigo e disse “mãe, tu entrou como estagiária e agora está sendo convidada para ser diretora pela tua trajetória, pela tua carreira profissional”. E eu aceitei, estou me empenhando.
Sul21 – Já houve outras assistentes sociais a serem diretoras?
Adriana – Eu sou a segunda, na verdade. A primeira foi exatamente esta que foi minha orientadora no estágio e depois me convidou para vir para cá, que é a Maria Palma Wolff. Ela se aposentou e foi convidada para a direção do IPF, rompendo paradigmas. Porque a direção tinha sempre sido médica, e ela foi a primeira diretora não-médica. E ela ficou um ano e meio e depois veio uma psicóloga, e agora eu.

Sul21 – E quanto tu saíres da direção, vais continuar atuando aqui como assistente social?
Adriana – Sim, sim. Eu sou servidora daqui, e eu amo isso. É um desafio, eu gosto de trabalhar com os pacientes. E quando a gente trabalha com aquilo que a gente gosta, faz toda a diferença. Busco sempre humanizar o lugar, singularizar cada um. Eu acho que não tenho como fugir disso mais da minha vida. Eu digo que preciso largar em um ano porque é uma experiência, que é um desafio, mas eu gosto muito desse trabalho diário com os pacientes. Tanto que minha sala está sempre aberta para eles.
Ao mesmo tempo, temos que ter muito cuidado para não adoecer, tem um autor que diz que a gente adoece daquilo que a gente trata. E aqui estamos em uma instituição total. Então tratar com o paciente também é algo que temos que ter muito cuidado.
“A gente tem que trabalhar muito com o lado saudável deles”
Sul21 – Vocês têm programas ou cursos profissionalizantes?
Adriana – Estamos trazendo agora o Senai e o Senac, através do programa Jovem Aprendiz. Os pacientes vão ganhar meio salário mínimo, assinam a carteira Jovem Aprendiz, o que não fica incompatível com a situação deles. É uma adaptação ao sistema prisional e mais adaptado ainda para o IPF. Vai acontecer durante todo o ano e acho que é uma diferença bacana, de resgate da autonomia deles. O Senac vai oferecer cursos de vendas, que é uma experiência que alguns já tinha em suas comunidades. O Senac já mostrou o que é o curso, e os pacientes interessados já se inscreveram e agora estão fazendo uma seleção. E o Senai vai nos apresentar em breve os projetos. Vão começar os cursos mesmo no final de maio. No Senac, é uma turma de quinze pacientes, e no Senai, duas turmas de seis.
Eu acho isso bem importante para o resgate da cidadania, da autonomia, de eles se sentirem capazes. A gente tem que trabalhar muito com o lado saudável deles, e eu acho que essa é uma forma. Eu estou sempre em busca de algo a mais para os pacientes, para que seja trabalhado com eles esse lado saudável.
Sul21 – Eu vi que vai ter a semana antimanicomial a partir desta segunda. O que vai ter aqui?
Adriana – Nós vamos abrir um espaço de arte aqui na Unidade D, vai vir um grafiteiro para deixar bem colorido. Eles vão ter roda de conversa, rodas de história para falar de suas vidas. Vai ter uma sessão de cinema, uma oficina de teatro com o grupo do Hospital São Pedro. Estamos junto com o São Pedro nessas atividades. Talvez tenha uma audiência pública na outra semana também na Assembleia Legislativa. E isso é bom, porque temos que discutir o assunto. As pessoas que são contra entendem que a rede não está preparada (para a reforma psiquiátrica), e acho que tem que ter esse diálogo, otimizar essa rede.
Porque segregar não resolve. Mas tem uma questão, eu acho que a nossa sociedade não está preparada para conviver com os diferentes, esta é a verdade. A gente tem que absorver que existem pessoas diferentes, não podemos querer ser todos iguais.

Sul21 – Parece que as pessoas se sentem muito ameaçadas.
Adriana – Sim, se sentem muito ameaçadas pelo diferente e pelo desconhecido. Acho que temos muito a caminhar, mas não temos como retroceder. E eu acho que tem coisas que acontecem aqui dentro que são muito bonitas e extrapolam aqui, tu levas para a vida. Porque nós somos humanos, e precisamos preservar esse olhar mais humanizado, que aquele paciente naquele momento poderia ser qualquer um de nós, ou um familiar nosso. E esse atendimento mais singular é o que a instituição total perde. Tira deles essa singularidade, e daí eles passam a ser mais um. Isso que é difícil, e a gente nem pode imaginar como é. Fico pensando se a gente sobreviveria. Por isso que é importante a gente poder dar voz e vez para eles, com resgates de cidadania, realizando assembleias, dando oportunidade para eles serem escutados. Essas ações nós temos que preservar. Eu acho que a gente tem que valorizar esse aspecto saudável, não é como se tudo fosse doença. Vamos nos colocar em uma lente, todos temos particularidades. E aqui isso fica mais ampliado. Eu acho que a gente tem que apostar mais na recuperação mesmo.