
Ana Paula Dahlke, 41 anos, ficou grávida em 2018. Pouco antes de descobrir que gestava uma criança, havia decidido começar a licenciatura em Educação Física – após concluir o bacharelado – e ao mesmo tempo ingressar no doutorado. Na seleção para o Programa de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da UFRGS, pensou que a gravidez poderia ser um impeditivo para ser aceita e, portanto, decidiu não comentar sobre a gestação.
O medo de Ana Paula não era infundado, afinal de contas há estudos mostrando que a produtividade acadêmica das mulheres decai quando elas se tornam mães. Utilizando como métrica a quantidade de publicações científicas, é possível afirmar que elas só voltam a produzir como antes quando seus filhos completam quatro anos de idade – isso sem falar de crianças com deficiência, que demandam atenção especial durante a vida inteira. E a academia, até pouco tempo, acabava punindo as mulheres que decidiam conciliar ciência e maternidade.
Ela ingressou no doutorado e, meio ano depois, deu à luz ao Ian, hoje com seis anos. “Todo o período do meu doutorado foi atravessado pela presença do meu filho”, relembra Ana Paula. Ela se emociona ao dizer que, em muitos momentos, pensou que não fosse conseguir dar conta de tudo. “Como produzir um material de qualidade, que é uma exigência de uma tese de doutorado, com uma criança pedindo atenção a cada cinco minutos? Criar um filho é ter uma dedicação de 24h por dia. Eu tive que pedir prorrogação do prazo, porque era uma situação humanamente impossível”.
Esse adiamento da entrega da tese ou da dissertação, no entanto, tornou-se uma opção segura há pouco tempo. Ana Paula diz que o programa de pós-graduação onde ela concluiu o doutorado estava baseado em uma resolução da UFRGS que permitia a licença maternidade, mas não garantia a prorrogação do prazo.
Somente em julho de 2024, foi sancionada a Lei 14.925, que prevê que os prazos de conclusão de disciplinas, de entrega de trabalhos finais, de realização de sessões de defesa de teses e de publicações exigidas serão prorrogados pelo tempo mínimo de 180 dias em razão do nascimento ou adoção de um filho.
A prorrogação das bolsas de mestrado e doutorado já era instituída por lei desde 2017, mas várias estudantes tinham dificuldade de acessar esse direito porque o tempo que se leva para obter o título de mestre ou doutor era uma das métricas utilizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para avaliar os programas de pós-graduação.
Fundadora do projeto Parent In Science, Fernanda Staniscuaski afirma que diversas coordenações de área da Capes já não consideram o tempo de titulação na hora de avaliar os programas. “Mas esse avanço ainda é uma promessa, porque os novos documentos que regem a avaliação da Capes ainda não foram publicados”, detalha.

O projeto coordenado por Fernanda enviou uma solicitação à plataforma Sucupira, usada pela Capes para coleta de dados, para que seja inserido um campo onde os programas de pós-graduação informem o tempo de licença das discentes e docentes. “No caso das alunas, a licença não seria contabilizada; no caso das professoras, se for escolha do programa de pós-graduação, ele poderia não utilizar as métricas da docente que esteve de licença”, explica Fernanda.
O Parent in Science é um projeto que surgiu em 2016, quando Fernanda já era mãe de dois meninos e também viu a própria carreira dificultada pela escolha de viver a maternidade. “Eu tinha recém sido contratada na universidade, minha carreira vinha em ascensão, mas tive pausas na carreira. Ao me inscrever em alguns editais, li pareceres citando que eu não havia feito publicações científicas por um ou dois anos. Não era justo que eu fosse penalizada a ponto de querer sair do sistema – eu já não cabia no sistema”, relata.
O que era um grupo de sete docentes tornou-se uma equipe de 90 cientistas de todo o Brasil engajados na missão de levantar conhecimento sobre o impacto dos filhos na carreira científica de mulheres e homens.
Uma das conclusões a que o projeto chegou é que a parentalidade impacta mais fortemente a vida acadêmica das mulheres do que a dos homens. “Os dados que temos são sobre docentes e pesquisadores, não sobre estudantes da graduação. Mas eles mostram que as mães são responsáveis pelo cuidado, são elas que pagam o preço profissional da chegada dos filhos. O impacto é muito diferente por uma questão social”, salienta Fernanda.
Cientista e agora com três filhos, Fernanda tenta lidar com o que a sociedade espera de uma “boa mãe”. “Ou ignoro isso – o que é difícil, porque é muito forte o conceito do amor incondicional, no sentido de que nada mais importa na vida da mulher, e isso é um mito – ou não dá para ter a saúde mental em dia. A carreira acadêmica é extremamente demandante. Não tem como ser 100% das duas coisas ao mesmo tempo”, desabafa.
“Sou uma mulher de 44 anos, tenho uma visão diferente de quando tive meu primeiro filho, aos 32. Essas cobranças, que às vezes a gente se auto impõe, são difíceis de lidar. Mas a minha maternidade não é medida por outras pessoas. Existem ritmos distintos e isso não é reflexo de capacidade, comprometimento ou ambição. É reflexo da vida”, conclui Fernanda. “Mas é mais fácil falar do que fazer”, admite.
Ana Carolina Nunes tinha tudo programado: teria o primeiro filho depois de concluir o curso de Publicidade e Propaganda na UFRGS, quando já pudesse atuar na área. No entanto, descobriu que estava grávida logo depois de ingressar na graduação, em 2023.
“Até pensei em desistir da faculdade. Consegui fazer todas as disciplinas que eu tinha pego no primeiro semestre, mas depois ele nasceu, veio a enchente, e ficou um pouco mais difícil”, relembra a estudante, hoje com 22 anos.
Ela e o namorado concordaram que o curso superior é a forma de garantir um futuro para o filho, chamado Dante, e Ana Carolina segue cursando a graduação. Mas conciliar estudos e maternidade pode ser ainda mais difícil nessa etapa formativa, em que não há garantia de renda, do que na pós-graduação.
“É desafiador”, resume a estudante. “Semana passada, o Dante teve uma virose e precisei ficar cuidando dele. Acabei perdendo conteúdo, tarefas e atividades. A faculdade já é pesada, tem um monte de coisa para ler, e tem mais a carga da maternidade. Ele ainda mama, gosta muito de contato, e quando está em casa eu não tenho como focar tanto nos estudos. Mas, ao mesmo tempo, ele é o motivo para eu continuar na faculdade”.

Ana Carolina elenca alguns fatores que dificultam ainda mais a experiência universitária tendo um filho. “O acesso ao Restaurante Universitário é complicado. Além dos olhares das pessoas vendo a gente ‘furar a fila’ porque está com uma criança no colo, faltam cadeiras de alimentação para bebês, por exemplo. E tem o auxílio-creche, mas para mães que têm filhos um pouco maiores ele já não adianta”, diz.
É esse tipo de melhoria que demanda o coletivo Mães na UFRGS, no qual Ana Carolina ingressou recentemente. Ana Paula, que também faz parte do grupo, explica que as integrantes lutam para que a maternidade seja reconhecida como um marcador social da diferença. “A mulher que se torna mãe é um indivíduo que vai ter mais dificuldade em desenvolver trabalhos, desenvolver pesquisa, em ingressar no mercado de trabalho”, alega.
Outra demanda do coletivo é que a Casa do Estudante seja uma moradia familiar. Atualmente, as estudantes que utilizam a moradia estudantil e se tornam mães precisam sair da casa, que não comporta crianças. “Bom, a Casa do Estudante, hoje, não é salubre nem para quem não tem filho, então para quem tem filho é pior. Mas a estudante que precisa sair da casa certamente abandona o curso”, pontua Ana Paula.
A exceção é a Casa do Estudante Indígena, que comporta famílias inteiras para abranger questões culturais dos estudantes que utilizam o espaço. No entanto, usuários relatam que o local também apresenta condições insalubres.
Por outro lado, o coletivo já conquistou a ampliação da idade limite para que filhos de estudantes possam acessar o Restaurante Universitário. “A idade máxima era de 5 anos e, a partir de uma requisição nossa, hoje é até 12 anos de idade acompanhada do responsável adulto que tem vínculo de estudante na UFRGS”, comemora Ana Paula. Ela conta que, antes, muitas mães entravam escondidas com o filho e comiam no mesmo prato da criança, ou então mentiam a idade da criança e até mesmo deixavam de comer para que o filho pudesse se alimentar. “Era uma situação muito humilhante”, diz.
Um serviço com o qual as estudantes mães não podem mais contar é a Creche da UFRGS, desativada em 2022. A reitora Márcia Barbosa explica que o espaço deixou de existir – dando lugar à Casa do Estudante Indígena – porque, juridicamente, a Universidade não pode oferecer a etapa formativa da creche. Essa é uma atribuição dos municípios, e não da esfera federal.
O que a reitoria avalia agora é a possibilidade jurídica – e financeira – da criação de espaços de ‘livre-brincar’ e locais para amamentação dentro dos campi. Outra alternativa é institucionalizar espaços criados pelas próprias estudantes, mas que por enquanto não têm como se responsabilizar pelas crianças sem que as mães delas estejam presentes.
Um desses espaços é a Casa Acolhe, uma construção cor-de-rosa no fundo do Campus Olímpico, mas que nem sempre foi dessa cor. Um grupo de pesquisadoras da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) transformaram o local, que era um arquivo morto da Universidade, em um espaço lúdico onde se entra e não dá vontade de sair.

Tudo começou quando elas foram a um evento do Parent in Science onde havia um espaço para crianças. Elas perceberam que a falta de espaços como esse muitas vezes inviabiliza a presença das mães. A Casa começou a tomar forma em 2022, e hoje acolhe tanto filhos de alunas e servidoras quanto da comunidade externa à UFRGS.
“Temos uma ludoteca, uma biblioteca, tem essa área externa, uma sala de apoio à amamentação, banheiro e cozinha”, mostra Ana Paula, que ajudou a formar o espaço. “A Casa também é utilizada por projetos de extensão aqui da Esefid”.
Com a impossibilidade de haver uma creche, as responsáveis pela Casa Acolhe demandam da Reitoria que o espaço possa oferecer um serviço de contraturno. “Temos exemplos em outras universidades, como a Universidade Federal do Norte do Tocantins. Eles têm um projeto de contraturno que funciona de manhã, de tarde e de noite. Tem uma servidora técnica-administrativa que fica lá, e eles atendem com bolsistas também, que ficam com a criança. O responsável pode deixar a criança lá e ir para a aula”, exemplifica.
Maria Terra, 24 anos, descobriu a gestação na mesma semana em que seu nome apareceu no listão da UFRGS pela segunda vez. Ela havia decidido trocar de curso e saiu das Ciências Sociais para ingressar em Artes Visuais. A filha estava com dois meses quando as aulas presenciais voltaram após a pandemia, no primeiro semestre de 2022. A saída encontrada por Maria para frequentar o Instituto de Artes foi levar a pequena junto consigo, pelo menos até conseguir vaga em uma creche.
“A maternidade está sempre muito presente no que eu gosto de pesquisar dentro do meu curso. Acho que justamente porque as experimentações artísticas estavam sendo geradas no meio daquele caos do puerpério. Então, de certa forma, eu também uso muito a maternidade como uma força para criar”, relata Maria.
Embora muitas outras mães também tenham que levar os filhos para a faculdade, a presença das crianças nem sempre é bem vista pela comunidade acadêmica. Ana Paula afirma, através de relatos do coletivo de mães, que algumas mulheres já foram impedidas de entrar em sala de aula com o filho ou então tiveram que deixar a criança do lado de fora. “São coisas que a gente considera desumanas. Uma estudante mãe só traz o filho junto quando não tem outra opção, porque é um grande desafio”, descreve.

A dura realidade enfrentada pelas universitárias que têm filhos se deve, em parte, pela percepção social de que cabe a elas, sozinhas, lidar com as consequências da escolha de gerar uma vida. Um provérbio africano diz que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. No entanto, as mães se veem muitas vezes sozinhas na missão de criar os membros da geração futura.
Fernanda reforça que o contexto da academia não é diferente de outros espaços no que diz respeito a como as mães são tratadas. “Eu ouvi muito: ‘tu resolveu ter filhos’. As pessoas justificam que haja qualquer penalização porque foi uma escolha. No meu caso, foi escolha, mas no Brasil 52% das gestações não foram planejadas. Falar de escolha é um absurdo num lugar com tantos problemas de saúde pública”, afirma. “A gente está falando de criar a sociedade do futuro, que deveria, sim, ser uma tarefa coletiva. O país está envelhecendo por causa dessa penalização”.
A exclusão se reflete também na dificuldade para implementar políticas como as que são demandadas pelas Mães da UFRGS. “É sempre como se fosse uma escolha da mulher e a sociedade, então, lava as suas mãos com relação a isso. Acaba se tornando um problema privado. O espaço que cabe para as mulheres que são mães e para os seus filhos são os espaços privados”, coloca Ana Paula. “Queremos dar visibilidade para as mães, dizer que nós estamos aqui e nós vamos permanecer aqui. Por isso nosso matra: tem mães na UFRGS, sim”.

Para Maria, não tem sido fácil permanecer, tanto que ela pensou várias vezes em largar a faculdade: “eu já quis poder trabalhar oito horas, voltar para casa e ficar com a minha filha; não ter que ficar lendo até às três da manhã porque o período em que eu poderia estar lendo eu estou fazendo jantar, dando banho, preparando a mochila”, revela. “Dentro da graduação, eu não tenho nem como ganhar um salário mínimo, porque o tempo que a gente dispõe para trabalhar é muito curto. Tem muita gente na UFRGS que tem que estudar e trabalhar. Só que estudar, trabalhar e ter um filho é uma conta que não fecha. Nunca vai fechar”.
Algumas universidades, segundo Ana Paula, têm regimes de flexibilidade para alunas e pesquisadoras que se tornam mães, até pelo menos os quatro anos de idade da criança. “A mulher teria direito, por exemplo, ao horário de aula flexibilizado ou atendimento remoto. Isso é considerar o filho como um ser social, e não como uma questão somente interna da família”, detalha.
Ana Paula ressalta, no entanto, que o pedido das mães não é para que elas tenham uma jornada acadêmica facilitada: “A gente não entende como uma facilitação, mas sim como um apoio, pensando nas questões de equidade. Não é que as mães ‘passem na frente’ ou que elas não sejam cobradas tanto quanto os outros estudantes, mas que elas tenham acolhimento. Esse apoio é justamente para que elas consigam se formar com excelência. Nas condições que nós temos hoje, a grande maioria das mulheres que são mães não conseguem terminar uma graduação como elas desejariam terminar. Muitas vezes saem com as notas mínimas para passar, não conseguem se inserir em espaços de pesquisa e muito menos de extensão”.
A reitoria parece ter entendido o recado. “O que não vamos fazer é facilitar a graduação. Estamos aqui para tomar medidas compensatórias para que essas estudantes possam sair da universidade com a mesma formação dos demais alunos. Por isso vamos mobilizar recursos e esforços. Não podemos abrir mão de que cada estudante tenha a qualificação necessária para ter uma grande carreira”, destaca a reitora Márcia.
Não há dados oficiais sobre quantas mães estudam na UFRGS, e sem essas informações é impossível criar políticas mais efetivas para garantir a permanência delas na universidade. Esse problema, no entanto, não se restringe à Federal do Rio Grande do Sul.
“O censo da educação superior, feito pelo Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], em nenhum momento coleta informação sobre parentalidade. A maioria das nossas instituições de ensino não coletam esses dados também. Se a gente não sabe quem são as mães, a gente não sabe se elas permanecem ou não”, afirma Fernanda, do Parent in Science.
O coletivo Mães na UFRGS fez alguns levantamentos. Na Esefid, por exemplo, 101 pessoas responderam uma pesquisa sobre parentalidade em 2023. “A gente precisa saber quem são essas pessoas, quantas são, quantos filhos têm, quais as idades deles”, elenca Ana Paula. Um desses levantamentos foi enviado ao Ministério da Educação, que em 2023 publicou uma portaria para a criação de grupos de trabalho a fim de formular políticas nacionais de permanência materna nas instituições de ensino.

Coletar esses dados dentro da UFRGS é uma das prerrogativas da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (Proafe), que a nova gestão da Universidade ainda quer implementar. Promessa de campanha da chapa de Márcia Barbosa, a instância terá a missão de olhar para os números. “Essa nova pró-reitoria vai trabalhar transversalmente às que já existem para observar a evasão, as questões de gênero, raça e diversidade. E, dentro desses estudos, ver o que precisa ser feito para melhorar”, explica a reitora.
Aprovar essa medida no Conselho da Universidade, no entanto, tem sido uma tarefa árdua. “Quando a gente cria pedaços novos na universidade, significa mover pessoas dos postos delas, porque o dinheiro é um só. Há um tensionamento sobre onde vai se mexer para criar essa Pró-Reitoria. Tenho esperança de ganhar alguns cargos do Governo Federal para distensionar essa questão”, compartilha Márcia. “Esperamos que, na reunião do Consun em final de abril, este assunto seja pautado”, acrescenta.
Para as Mães da UFRGS, o importante é garantir que elas de fato serão ouvidas. “A pauta da maternidade, quando colocada junto a outras, acaba ficando por último. O que nos perpassa é o quanto teremos espaço dentro dessa Pró-Reitoria para falar sobre as maternidades”, afirma Ana Paula. “A reitora nos garantiu que teríamos pelo menos uma secretaria, alguma coisa que a gente pudesse manter a nossa visibilidade dentro desse espaço”.