Educação
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10 de agosto de 2024
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10:22

Euforia e trauma: volta às aulas é misto de emoções em escola atingida pela enchente na Capital

Por
Luciano Velleda
lucianovelleda@sul21.com.br
Localizada no bairro Navegantes, em Porto Alegre, escola severamente afetada pela enchente voltou a receber os alunos. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Localizada no bairro Navegantes, em Porto Alegre, escola severamente afetada pela enchente voltou a receber os alunos. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Depois de três meses, o Colégio Estadual Cândido José de Godói, localizada no bairro Navegantes, finalmente reabriu as portas na última segunda-feira (5) para receber os alunos. A instituição foi severamente atingida pela enchente histórica que inundou Porto Alegre em maio, tendo ficado um mês com toda a área térrea embaixo d’água e depois mais um mês coberta de lama à espera da limpeza.

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O cenário de destruição fez com que a diretoria do colégio chegasse a temer pelo pior. Em determinado momento, a dúvida se a escola conseguiria se reerguer e voltar às aulas chegou a passar pela cabeça dos membros da direção.

Construída em dois pisos, o andar térreo da escola, onde funcionam o setor administrativo, refeitório e salas de aula, ficou completamente devastado. A água e o longo período de inundação arrasaram tudo: as memórias do museu; as salas de projeções; o laboratório de física; as salas dos professores e da diretoria. Houve perda total de mobiliário, equipamentos e documentos. Quando a água baixou e só restou a lama, a imagem era de devastação. O primeiro andar, no entanto, foi poupado pela água e ficou intacto.

“Estou feliz, aliviada e cansada. Durante todo esse período, tentei me manter firme, não me martirizar, mas agora nas últimas semanas, me senti cansada”, comenta Maria Luiza de Castro, vice-diretora do Colégio Estadual Cândido José de Godói.

Em junho, quando a reportagem do Sul21 visitou a escola ainda coberta de lama, com salas destruídas, ela lembrou do impacto ao entrar na escola pela primeira vez, no dia 29 de maio. Apesar das cenas fortes, ela e os colegas de direção tentaram se manter calmos e fortes para recuperar a escola. A dúvida quanto ao futuro, entretanto, era um sentimento presente.

 

A professora e vice-diretora da escola, Maria Luiza, procurou se manter firme nos momentos mais difíceis da enchente. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Quem também estava feliz em retornar à escola essa semana era Guilherme Lopes dos Santos, de 15 anos, aluno do primeiro ano do ensino médio, em turno integral. Com uma bandana branca na cabeça, o sorriso largo no rosto era a expressão do contentamento. Morador de Eldorado do Sul, uma das cidades mais atingidas pela enchente na região metropolitana, ele chegou a ficar um mês em abrigo junto com a família.

“É bom ver a rapaziada de novo. Desvirtua do tempo em que ficamos meio que de férias indesejadas, fiquei em abrigo, com muita coisa na cabeça…melhor vir pra escola mesmo, desvirtuar um pouco”, afirmou.

Ciente de ter passado por um período bem delicado, o jovem chegou a se mudar para a casa de parentes na Restinga após sair do abrigo, se desligou da escola, ingressou em outra, mas retornou ao colégio do bairro Navegantes assim que voltou para Eldorado do Sul e soube da iminência de reabrir . Conseguiu também voltar à cidade de Eldorado do Sul, cujas marcas da enchente ainda são muito impactantes.

“É horrível, em qualquer lugar que tu vê algum entulho, dá uma coisa… Limparam tudo, mas fica aquele ar, aquele cheiro… dá um flash na cabeça e vem tudo de novo. Lembro de sair de casa e as pessoas pedindo socorro, é um trauma”, diz.

Guilherme conta que o melhor do retorno são as amizades e também os professores. “Os professores daqui são sem palavra, são show de bola. É o Godói!”, comemora.

 

Morador de Eldorado do Sul, Guilherme ficou um mês em abrigo com a família até conseguir voltar para casa. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Também aluno do primeiro ano do ensino médio, em turno integral, Leonardo Tavares Moraes, de 15 anos, foi o responsável por fazer a conexão entre a escola e os colegas durante o tempo em que a instituição ficou fechada. Sua tarefa era ajudar nas informações relacionadas às atividades online, o elo entre os professores e o resto da turma.

Na última quinta-feira (8), ao lado de colegas na hora da saída da aula, o jovem com voz possante de locutor de rádio, morador do Humaitá, celebrou o retorno ao colégio. “Tá sendo interessante, divertido, a gente tá se vendo de novo, até porque a gente tava com vontade de se ver há muito tempo”, destacou, enquanto o amigo ao lado, Juan Gomes, mais conhecido por Ben10, tirava onda do colega dando entrevista.

Leonardo recorda que as aulas online, durante o período em que a escola esteve fechada pela enchente, tiveram bastante problemas com links que não funcionavam e alunos com dificuldade de acesso à internet. Durante esse tempo, houve ainda o medo de não poder voltar à escola. “A gente temia que a água abalasse a estrutura (da escola) e não desse pra voltar”, afirmou.

Por sua vez, Juan Gomes, o Ben10, disse que não temia a possibilidade de não voltar mais ao colégio, mas não imaginou que demoraria tanto tempo. “Pensei que voltaria no começo de julho, quando contrataram a equipe de limpeza, mas também não sabia que estava tão destruída assim”, ponderou.

O jovem levanta a questão da dificuldade de socialização no retorno às aulas, citando a timidez extrema e “ficar dentro da bolha” como um problema a ser superado. “É ficar mais no mundo das ideias do que na realidade. Quando a gente pensa demais, fica mais no nosso pensamento e não na realidade, pensa que alguém não gosta da gente, sendo que a gente é uma pessoa ‘de boa’.”

Juan Gomes comenta ainda sobre o medo que cada chuva desperta, como a ocorrida nos últimos dias. Embora seja morador do Sarandi, ele conta viver numa parte do bairro que não foi tão afetada, ainda assim, o temor ronda os pensamentos.

A limpeza referida por Juan foi mais um momento de tensão para a direção do Colégio Estadual Cândido José de Godói. No final de junho, a relação com a Secretaria Estadual de Educação chegou a ser tensa devido a um desacerto entre quem arcaria com os custos da limpeza. Três vistorias foram feitas sem que houvesse definição para começar o serviço. Naquela ocasião, a água já fazia um mês que havia baixado.

Alunos falam com alegria por voltar à escola, embora o trauma ainda seja presente. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Professor de história e geografia, Mário Antônio da Silva, também vice-diretor do colégio, diz que o sentimento nesta volta às aulas é de euforia misturado com tristeza. “Euforia pelo retorno em si, tristeza porque a gente não está conseguindo entregar a escola aos alunos como ela era antes”, explica.

Ele se refere a todas as salas do andar térreo que foram destruídas e ainda estão fechadas, incluíndo salas de projeção, laboratórios e parte administrativa. Os locais agora estão limpos, mas precisam passar por reformas para voltarem a ser ocupados. No espaço onde se localizam as salas da direção e dos professores, a reforma já começou; nas outras dependências, ainda não há previsão certa. Enquanto isso, direção e professores estão improvisados numa sala do primeiro andar.

“Ainda vai demorar, é um processo mais lento até a escola voltar a ser o que era antes da enchente, então isso dá uma certa angústia. Tem muita coisa a ser feita ainda, mas tem a alegria de estar com a escola movimentada de novo, com os alunos de volta, mas é um sentimento meio ambíguo”, avalia o vice-diretor.    

Em concordância com a percepção do aluno Juan Gomes, o Ben10, ele também nota um sentimento confuso entre os estudantes. Há igualmente euforia pelo retorno, porém, misturada com uma certa apatia, o olhar perdido, distante, a falta de vibração.

“Às vezes, reparo que eles estão meio ausentes. Isso tem me chamado a atenção nestes primeiros dias. Eles estão de corpo presente, enxergo eles ali, mas é como se não estivessem. É uma coisa estranha”, comenta, com a experiência de quem atua na direção e na sala de aula.

 

Mário Antônio da Silva, vice-diretor e professor de História e Geografia. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Pessoalmente, o professor e vice-diretor também percebe a dificuldade dos primeiros dias de aula após três meses. Ao propor a análise da histórica enchente e tentar estimular o senso crítico sobre o fenômeno climática extremo, observa os alunos travados para acompanhar o raciocínio. “Parece que é um bloqueio que eles criaram, como se não quisessem falar disso.”

No final de junho, quando a limpeza sequer havia começado, uma das preocupações da direção do colégio era a reforma da cantina. Por ter turmas em período integral, recuperar o local era tido como vital para a reabertura. Agora, na semana em que as aulas finalmente retornaram, a cantina brilha de tão limpa, com fogão industrial, geladeira, micro-ondas e mobiliário novos. Um freezer ainda é aguardado para os próximos dias. De alguma forma, a nova cantina simboliza a retomada da escola após a devastação causada pela enchente.

“Espero que antes do final do ano esteja tudo pronto. Estamos indo, aos poucos, está caminhando”, projeta o vice-diretor, hoje não mais temeroso com o futuro da escola como há poucos meses.

 

A nova cantina da escola não lembra o ambiente de destruição de junho. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
O refeitório do Colégio em junho. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
O novo refeitório em agosto. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
O reencontro de colegas após três meses da escola fechada. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Os alunos voltaram a frequentar os corredores do colégio no bairro Navegantes. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Leonardo, de boné, foi o encarregado de fazer a interlocução entre a escola e os colegas durante o tempo em que as aulas presenciais estiveram suspensas. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
As salas do andar térreo que foram destruídas pela enchente ainda precisam passar por reformas. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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