Educação
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5 de julho de 2024
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19:00

PPP da educação: infraestrutura de 99 escolas estaduais ficará a cargo da iniciativa privada

Por
Bettina Gehm
bettinagehm@sul21.com.br
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Prevista inicialmente para esta semana, foi adiada para segunda-feira (8) a abertura da consulta pública para a Parceria Público-Privada (PPP) em Educação, proposta pelo governo do Estado. A população terá até o dia 7 de agosto para fazer contribuições à iniciativa, que vai contratar empresas privadas para atuar na infraestrutura de 99 escolas em 15 municípios.

A PPP da educação prevê que as empresas contratadas atuem na reforma e adequação das escolas aos requisitos de segurança e acessibilidade. Serviços de limpeza, merenda e vigilância também estão incluídos na parceria, que vai abranger os ensinos fundamental e médio. O leilão deve ser realizado em fevereiro do ano que vem. Ou seja: quase tudo vai ser parceirizado, menos a atividade-fim das escolas, que é a pedagogia. A iniciativa é criticada por trabalhadores e especialistas em educação que enxergam a escola como um ecossistema movido por todos os alunos, professores e funcionários que exercem as mais diversas funções no ambiente escolar.

“O segmento que será parceirizado faz parte da vida escolar”, resume o vice-presidente do Cpers-Sindicato, Alex Saratt. “Paulo Freire e outros educadores nos permitiram ver a educação de uma maneira ampla, complexa e articulada. Os funcionários participam do processo educacional, se relacionam com o corpo da escola”.

Julian Diogo, coordenador da área de Políticas e Gestão da Educação na Faculdade de Educação da UFRGS, ressalta que cada colégio tem uma realidade diferente dos outros. “A PPP, do jeito que está, tira da escola o lugar do atendimento às demandas da comunidade. Por mais que o governo tente atacar todas as frentes para arrumar a bagunça, só quem sabe a bagunça é a comunidade escolar. As parcerias estão sendo desenhadas para tirar o poder decisório das comunidades”, detalha.

As 99 escolas incluídas na PPP serão divididas em três lotes de 33. Toda as escolas participantes em Porto Alegre, por exemplo, configuram um mesmo lote. As empresas interessadas poderão oferecer propostas para assumir cada lote em separado ou o conjunto deles.

“A escola é um lugar pedagógico. Quando eu escolho pintar uma parede de amarelo, existe uma pedagogia por trás”, afirma o professor Julian, ao alertar sobre as possíveis implicações da PPP. “Pode se falar até no aumento da qualidade dos serviços – entre muitas aspas –, já que vai ter empresas especializadas, e que os diretores vão ser liberados das atividades administrativas para focar no que interessa, que é o processo pedagógico. Na verdade, não é bem assim. Quando se deixa a escola responsável apenas pelo pedagógico, não se traz um elemento fundamental que é a gestão democrática”, explica.

Para o CPERS, a PPP é uma “mera gestão, pensada em economia, acompanhada de precarização para os trabalhadores e de precariedade pedagógica nas próprias salas de aula”, nas palavras do vice-presidente Saratt. “Pensar o desenvolvimento econômico e tecnológico acompanhado por noções e compromissos no campo democrático tem na educação um elemento chave, e que não podemos abrir mão para que seja conduzido pela iniciativa privada. O segmento é dirigido para a lucratividade, e queremos um modelo que contribua para que o país supere suas mazelas e dividas históricas”, complementa.

Embora o governo esclareça que os professores continuarão sendo servidores de carreira do Estado, o sindicato considera que há risco de a parceirização se estender para a contratação de docentes.

Outro ponto considerado preocupante é o fato de que a PPP da educação prevê contratos de até 25 anos. “Esse período é geralmente a média entre uma geração e outra”, destaca Alex, do Cpers. “É uma geração inteira sob o jugo do capital e do interesse no lucro, deixando de lado o interesse social e a responsabilidade política dos agentes públicos”.

O investimento máximo previsto para todo o pacote é de R$ 203,6 milhões por ano – cerca de R$ 2 milhões por escola. O professor Julian acredita que o valor poderia ser maior. “Não é tão substancial se pensar no estado das escolas que vão ser contempladas pelas adequações. Algumas estão com problemas no telhado há mais de cinco anos. Os serviços demandam um aporte financeiro considerável”, pontua o docente.

“Essas parcerias se vinculam ao movimento de uma nova governança, que é a superação de um modelo de gestão mais burocrático e rígido”, explica o professor da UFRGS. “A nova governança vem com uma ideia de flexibilidade, de participação, mas também com um elemento problemático: decisões orientadas apenas por resultados. Na educação, o resultado dificilmente é a curto prazo”.

Outro desafio apontado por Julian é a falta de transparência nos contratos da PPP. “São bastante complexos, o que dificulta o controle social e a prestação de contas”, destaca. “Também há o risco de o setor privado capturar o setor público, acabar influenciando as decisões em benefício próprio. De acordo com as experiências que já temos, as empresas acabam utilizando o lucro em detrimento ao interesse público”, afirma o docente. 

Conforme o vice-presidente do Cpers, a experiência com a terceirização dos serviços prestados nas escolas não é positiva. “Há trabalhadores submetidos a regimes de trabalho muito extensos e exigentes, alto nível de rotatividade, sonegação de salários e de direitos trabalhistas”, elenca.

O Sul21 mostrou, em setembro do ano passado, que o governo chegou a contratar empresas denunciadas por atrasar salários para fornecer a merenda escolar em escolas estaduais.

“Vemos [a PPP] como um risco real às condições de trabalho, de salário e até de saúde dos trabalhadores que atuam nas suas respectivas áreas. É uma demonstração da tendência à precarização do trabalho, praticamente um impeditivo para que as novas gerações se interessem pela carreira educacional”, pontua Alex. O sindicato, que vem reivindicando o piso salarial para funcionários de escola, teme que essa vire uma batalha perdida.

A reportagem contatou a Secretaria de Estado da Educação (Seduc) para falar sobre o tema, mas a pasta redirecionou a pauta à Secretaria de Reconstrução (antiga Secretaria de Parcerias), que informou que só irá se posicionar após o lançamento da consulta pública.

O estado de São Paulo tem um projeto parecido com o do governo gaúcho, mas que já passou pela consulta pública e teve o edital publicado em junho. O projeto Novas Escolas prevê a construção e a manutenção de 33 escolas estaduais em 29 cidades.

Da mesma forma, o Paraná discute implementar uma PPP para construir 40 novas unidades escolares em 24 municípios. Este projeto ainda está na fase de estudos preliminares. 

Mas a primeira PPP no setor educacional surgiu em Belo Horizonte (MG), onde foi implantada há dez anos, na gestão de Márcio Lacerda (PSB). A Inova BH foi a concessionária vencedora, que ficou responsável por construir e administrar 55 Escolas ao longo de 20 anos.

O Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública Municipal de Belo Horizonte (Sind-Rede/BH) foi contra a iniciativa desde o início. Assim como o Cpers, a entidade entendia que a educação deveria ser tarefa exclusiva do poder público. A secretária de Educação da época, professora Macaé Maria Evaristo, também era contrária à PPP – mas se auto convenceu de executá-la diante da falta de vagas em educação infantil na capital mineira. As informações são de um estudo de caso publicado no livro “Políticas Educacionais no Brasil: o que podemos aprender com casos reais de implementação?”, organizado por Danilo Leite Dalmon, Caetano Siqueira e Felipe Michel Braga.

A primeira unidade entregue pela Inova BH, a Emei Belmonte, começou a funcionar em outubro de 2013. A 51ª unidade entrou em operação em dezembro de 2015, três meses antes do prazo estipulado em contrato, conforme o site da concessionária.

Ao jornal Brasil de Fato, o professor Fábio Garrido, mestre em educação pela UFMG e integrante da direção do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE/MG), falou em 2019 sobre essa rapidez das obras executadas em PPPs: “Em um primeiro momento, eles conseguem construir muito rapidamente as unidades, mesmo porque há uma grande movimentação da máquina pública com financiamento e garantias. E é interessante para o setor privado construir rápido porque, quanto mais rápido ele construir, mais rápido ele vai obter o que realmente lhe interessa, que é a remuneração pelos serviços”, disse ao veículo.

Garrido considera que há uma “privatização de um fundo público”: “A população acha uma maravilha a construção de tantas creches tão rápido, mas esse modelo impede depois a expansão com qualidade da educação infantil e compromete o fundo público durante 35 anos. Então, a criança que entra agora na educação infantil não terá vaga para seu próprio filho, pois no futuro a Prefeitura ainda estará pagando a PPP”, ressaltou em entrevista ao Brasil de Fato.


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