
Para além das danças tradicionais, da chula, da pajada e da trova galponeira, a 37ª edição do Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart), primeira após as enchentes, realizada no Parque da Oktoberfest, em Santa Cruz do Sul (RS), contou com um fator extra. Quem frequentou áreas como o palco A, onde acontece a modalidade mais popular do festival, teve de lidar com o calor intenso e a falta de estrutura necessária para aliviá-lo. No domingo (17), último dia do Enart, alguns municípios rio-grandenses registraram as dez maiores temperaturas do país. A expectativa era de que o evento recebesse 4,5 mil participantes e um público de 60 mil pessoas.
Durante a live de resultados transmitida pelo canal TV Tradição, que acumulou 257 mil visualizações e marcou a entrega das premiações aos participantes, grande parte dos comentários foi de críticas à infraestrutura do festival. Entre os discursos de coordenadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e da Prefeitura de Santa Cruz do Sul, os espectadores expressaram insatisfação com as altas temperaturas nos espaços destinados às apresentações, apontando a falta de ventilação adequada e de medidas para conter o calor.
“Fazem as pessoas passarem um calor de mais de 40⁰ e falam em respeito? Tá de sacanagem. O povo na arquibancada tinha que vaiar essas palhaçadas… Passaram calor desumano o dia todo e tem que ouvir essa bobagens”, comentou Vinícius Bernardes, enquanto a vice-presidente artística do MTG, Madeline Zancanaro, proferia seu discurso de encerramento do encontro, antes do resultado. Acompanhando essa mesma insatisfação, Luciana Marin também manifestou desconforto pelas altas temperaturas no espaço. “Eu sempre ia assistir ao Enart pessoalmente antigamente e não me lembro desse calorão. […] (Precisa mudar) senão ninguém mais vai querer assistir. O clima mudou, tem que se adaptar”, disse.
Na sequência das mensagens, a sugestão de mudar o local do evento foi recorrente. O público também pediu que sejam utilizados climatizadores ou que a data seja alterada para uma época mais amena, evitando o calor excessivo. “Pelo amor de Deus, MTG, uma vez na vida ouça o público e os dançarinos. […] Ou faz final de setembro, quando não tem Oktoberfest, ou enche de climatizadores pra fazer em novembro. Todo ano tá pior. Não vou mais com esses climas aí, não tem como”, relatou um dos espectadores. “O Enart precisa ser transferido para uma cidade que comporte um evento desta magnitude. Santa Cruz não comporta mais. Basta acompanhar a arrecadação que a cidade tem nos três dias do evento, não há desculpas!”, complementou Diego Pmart.
Para Ricardo Costa, ex-dançarino, embora o festival seja “lindo” e uma forma importante de preservar o tradicionalismo gaúcho, “do jeito que tá, não dá”. Este foi o primeiro ano em que ele participou do evento apenas como espectador, e a experiência foi suficiente para fazê-lo desistir de vez. Em entrevista ao Sul21, contou que sua esposa, Carla, grávida, passou mal devido ao calor intenso, chegando a precisar de atendimento médico. Ela ficou pálida, suando frio, o que causou grande preocupação no casal. “Não tinha ventilação decente, sombra, nada. Era um forno. A gente paga caro pra entrar e o que a gente recebe em troca? Descaso. A coordenação do Enart parece que piora a cada ano. Os ingressos ficam mais caros, e o público só diminui. Tá cada vez mais vazio, porque ninguém quer pagar pra passar mal”, denuncia.
Neste ano, as pulseiras de acesso ao evento variaram de acordo com o público. Para idosos, estudantes com carteira estudantil e pessoas solidárias (que doam um brinquedo novo na entrada do parque), o ingresso diário custou R$ 15, enquanto para adultos (acima de 12 anos) o valor foi de R$ 30. Já a pulseira permanente, que garantiu acesso de sexta a domingo, custou R$ 30 para acampados, idosos, estudantes e solidários, e R$ 60 para adultos. Além disso, havia tarifas para o estacionamento externo: R$ 25 para carro, R$ 15 para moto e R$ 50 para van. Para quem optou pelo estacionamento permanente (acesso livre durante o final de semana do festival), os valores ficaram em R$ 70 para carro, R$ 30 para moto e R$ 130 para van.
Costa, que participa do encontro há mais de 10 anos, afirma que em conversas recentes com amigos dançarinos, notou um desânimo generalizado em relação à inscrição em qualquer categoria do evento. “O calor, a falta de estrutura… tudo isso tira o brilho do festival. Eu já estive lá no palco, sei como é difícil manter a energia e a vontade nessas condições. […] A gente quer um Enart pra se orgulhar, não pra sair frustrado”, conclui.
Os frequentadores do festival, que ocorre desde 1986, vêm precisando lidar com o aumento contínuo do calor. Em 2017, as temperaturas no final de semana do 32º Enart em Santa Cruz do Sul variaram entre 17°C e 27°C. Em 2024, a máxima era 35°C, isso fora dos pavilhões e sem aglomerações.
Segundo Marcelo Daher, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, em entrevista à Agência Brasil, temperaturas extremamente altas podem prejudicar nossa saúde. “O ser humano sofre muito, porque dificulta a respiração e as pessoas começam a sentir mais fraqueza, mais astenia… Então o corpo fica mole, aquela moleza toda no corpo. E os extremos de idade sofrem muito mais, crianças muito pequenas e idosos”, explica, pontuando o risco de haver casos de desidratação. Conforme o especialista, o ideal nestes contextos é aumentar a ingestão de água e utilizar roupas leves e frescas, recomendação que entra em desacordo com o regulamento do evento para os dançarinos, por exemplo, que, no geral, precisam usar trajes típicos mais pesados.
Em novembro do ano passado, o Ministério da Saúde lançou um guia online com orientações sobre como lidar com o calor excessivo e minimizar seus efeitos. Além do tradicional alerta para o uso do protetor solar e sua importância na prevenção do câncer de pele, o documento (publicado na época em que ocorre o Enart) sugere medidas como “facilitar a circulação de ar e manter os ambientes úmidos, por meio de umidificadores, toalhas molhadas ou baldes de água”. Segundo o órgão, essas condições climáticas podem afetar a saúde de toda a população, especialmente os grupos mais vulneráveis, como idosos, crianças, gestantes, pessoas com problemas renais, cardíacos, respiratórios ou de circulação, diabéticos e pessoas em situação de rua.
Procurado, o MTG se posicionou sobre as questões levantadas pelos espectadores e as dificuldades enfrentadas em relação à infraestrutura do evento. Rogério Bastos, assessor de comunicação da entidade, explicou que, embora o Enart seja um dos principais festivais realizados no parque, ele não é o único. “Existem eventos entre setembro e março que acontecem dentro do ginásio também, então tem uma série de coisas que têm que ver com a Prefeitura Municipal”, afirma.
Bastos também destacou a recente mudança na gestão da Prefeitura de Santa Cruz do Sul, com a entrada de Sergio Moraes (PL) para os próximos quatro anos. De acordo com ele, Moraes tem uma grande afinidade com o Enart, e a expectativa é de que haja diálogo entre as partes para melhorar as condições do evento. “Isso depende da vontade política”, ressalta. Em relação às soluções para amenizar o calor, o assessor sugeriu que, em vez de utilizar ventiladores para apenas deslocar o ar quente, seria mais eficaz instalar um telhado solar fotovoltaico – que não só protegeria o local do impacto direto do sol, mas também geraria energia para refrigerar todo o espaço. “Isso é o ideal”, pontua.
A entidade, no entanto, reconhece que há diversas alternativas e afirma que está disposta a avaliar os planos da Prefeitura para melhorar as condições do ginásio. “Fora isso, não tem muito o que o evento fazer. Então, podemos refrigerar o ginásio para o Enart, que dura dois dias e meio”, diz, reiterando que o local recebe outros eventos em diferentes épocas do ano.
Membros da Prefeitura e coordenadores do MTG foram vaiados ao abordar as condições de calor extremo durante o evento, tanto por pessoas presentes no ginásio quanto por espectadores das lives transmitidas. Conforme as reclamações, desde 1997, quando o Enart passou a ser realizado no Parque da Oktoberfest, não houve a implementação de melhorias significativas na infraestrutura do local, o que tem alimentado reclamações recorrentes ao longo dos anos.
“Tem que exigir do município de Santa Cruz que melhore a infraestrutura para que o público tenha mais conforto! […] Não tem que mudar a data, tem que melhorar a infraestrutura”, protestou Gilvan Lazzaretti. Em complemento, outra pessoa (sem nome identificado), acusou os organizadores do festival: “Todos de bolsos cheios, e a estrutura precária”.
*Até o fechamento desta reportagem, a Prefeitura de Santa Cruz do Sul, apesar de ter sido procurada, não retornou o Sul21.