Cultura
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25 de julho de 2024
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19:37

‘É o nosso lugar e nós vamos tomar’: documentário explora história não contada das mulheres no rap gaúcho

Por
Bettina Gehm
bettinagehm@sul21.com.br
Maria Viegas e Nathy MC são produtoras da série documental Hip Hop de Gaúcha. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Maria Viegas e Nathy MC são produtoras da série documental Hip Hop de Gaúcha. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A trajetória das rappers Negra Jaque, Carla Zhammp e Tia Crazy é explorada no curta-metragem Hip Hop de Gaúcha – Episódio 1: Elemento Rap, lançado pela Alvo Cultural. Gravado e apresentado pela primeira vez no Museu da Cultura Hip Hop RS para marcar o Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, comemorado nesta quinta-feira (25), o curta é o primeiro de uma série documental sobre a contribuição das mulheres gaúchas ao hip hop. 

Assista ao documentário clicando aqui.

Quem visita o museu, localizado na Vila Ipiranga, zona norte de Porto Alegre, aprende que a cultura hip hop tem cinco elementos: conhecimento, breakdance, DJ, MC (rap) e grafite. Todos esses pilares sempre tiveram participação feminina, como evidenciam diversas obras expostas no espaço. Um dos grafites representa a paulistana Sharylaine, pioneira no rap feminino: antes mesmo da criação do Racionais MCs, ela montava o primeiro grupo de rap só de mulheres.

A presença feminina, no entanto, é muitas vezes ofuscada. E o Rio Grande do Sul, fora do eixo Rio-São Paulo, pode ser um espaço ainda mais desafiador para a ascensão das artistas mulheres. Por isso, a série documental vai tratar dos cinco elementos do hip hop a partir da perspectiva delas. 

“A cultura do hip hop até hoje é extremamente misógina, ainda mais no Rio Grande do Sul, que está totalmente fora do centro das perspectivas comerciais do hip hop. Por isso, sentimos a necessidade de nos auto representar”, afirma uma das produtoras do curta, Maria Viegas. “Se ninguém está falando sobre, a gente vai falar”.

Antes da exibição do curta-metragem, que lotou a biblioteca do museu para a estreia, o Sul21 conversou com as produtoras Maria Viegas e Nathy MC. Confira a entrevista na íntegra:

Sul21: Quando começou a produção do documentário?

Maria: Em novembro do ano passado, a gente começou a ter as primeiras reuniões. Saímos com a ideia de que em 2024, esse ia ser o nosso foco. Em março, começamos a roteirização e pesquisa – é muito difícil achar material das mulheres daqui, porque muitas fizeram história mas não foram noticiadas, não se tem arquivo disso. Ter a Nathy e a Carla Zhammp foi essencial nesse processo. 

Nathy: Para gravar, para fazer todo o material e colocar nossa música na rua, é um pouco mais difícil por ser mulher. A gente sofre com a sexualização, porque a gente vem de uma cultura de que o rap é um homem com cara de mau e a mulher ou rebolando ou como backing vocal, fazendo o reforço dos homens. Quando a gente toma isso pra nós e diz que é a nossa vez, a gente é podada nesses espaços e sofre também com a falta de visibilidade, porque é podada dos shows, dos eventos, dos estúdios. Então é mais difícil ter um material que comprove o quanto essas mulheres fizeram pelo rap, pelo hip hop.

Sul21: Como as mulheres entrevistadas no documentário pavimentaram os caminhos para as que chegam agora?

Nathy: A partir de muita resistência. E pé na porta mesmo – brigando, lutando pelo espaço. Chega até a ser cansativo, mas a gente resiste porque é isso: é o nosso lugar e nós vamos tomar.

Maria: Todas as entrevistadas tinham em comum [a fala] de que nunca foi um movimento sozinho. De fazer virar a partir da música – a gente fala muito isso no rap: virar é realmente estourar, sair do underground, ter ouvintes mensais. Nunca é apenas isso. Todas as entrevistadas formam comunidades. A Negra Jaque tem uma comunidade muito forte dentro do movimento negro, do movimento social. A Tia Crazy faz um movimento muito legal com as mulheres a partir do slam. A Carla Zhammp pavimentou todos os caminhos para que tivesse mulheres dentro dos espaços do rap nos anos 90, onde o machismo era “legalizado” totalmente. Todas têm a criação de comunidade como uma bandeira de sobrevivência dentro da cultura, e acho que isso diz muito sobre a história que a gente tá contando. A gente nunca vai vir só cantar um rap: a gente tem filho, a gente tem conta para pagar, a gente tem subalternação nos salários que são pagos na mesma apresentação. No estúdio, ou tu vai ser sexualizada ou o cara vai dizer que a voz é muito fina, tu não é levada a sério como profissional. Então precisa criar comunidades para além do profissionalismo, sabe? Criar uma comunidade social para você se manter dentro da cultura.

Sul21: E no Rio Grande do Sul, isso acontece de forma diferente dos outros estados?

Nathy: Essa cultura do machismo – que não é o hip hop, mas as pessoas – é em todo lugar. 

Maria: Machismo tem em todo lugar, mas ser do Rio Grande do Sul em comparação ao sudeste, as portas são muito mais fechadas. Por exemplo: existe um movimento das minas do rap, principalmente de São Paulo, que é um estouro no mainstream. Tem a Duquesa, tem Tasha & Tracie, tem Ebony… a gente tem um estouro aqui no RS, que é a Cristal, que não consegue sair e assumir totalmente o mainstream porque ela ocupa o espaço no sul do país.

Nathy: Porque é isso. Mainstream é o que vem agora. Antes do mainstream vêm outras mulheres, né? Agora elas estão em alta, mas porque tudo começa no eixo Rio-São Paulo. O que a gente passa aqui elas passam lá também, mas vai “virar” primeiro lá e depois aqui. Se a gente for ver o quanto as mulheres já vêm brigando no rap pra ter essa ascensão e essa visibilidade, é igual.

 

Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Sul21: Quais as conquistas, até agora, das mulheres no hip hop gaúcho – e quais obstáculos ainda precisam ser enfrentados?

Nathy: A gente conseguir estar aqui, realizando este evento – e que não foi uma tarefa fácil, passar por todo esse sistema que sempre puxa o protagonismo para o lado do homem. Isso aqui para mim já é uma vitória. Poder entrar num estúdio, conseguir gravar e lançar o nosso som, um processo que é difícil por ser mulher e por ser mãe – eu sou mãe – e por ter outras tarefas, é uma vitória. Mas a gente precisa de uma ascensão. Assim como em São Paulo está acontecendo, a gente precisa aqui também. É necessário que os olhos se voltem para cá, principalmente nesse momento de crise do nosso estado.

Maria: Eu acredito que a gente teve um avanço muito embalado pelos movimentos sociais de forma geral, que se refletem no hip hop. O movimento feminista, principalmente o movimento feminista negro faz parte disso – porque o hip hop é, em sua essência, negro. Hoje, nesse Dia da Mulher Negra, esse evento também é simbólico para pontuar: as mulheres estão fazendo isso há cinquenta anos. Conseguir catalogar a história é uma vitória, porque tudo é disputa de narrativas. Mas o caminho ainda é muito longo, principalmente para o hip hop gaúcho e para as mulheres, porque aqui a gente precisa de investimento. A gente precisa de produção, mas sem cair na conversa do neoliberalismo. Tem exemplos aí que são a venda da cultura negra a R$ 300 o ingresso, não é isso que a gente quer. A gente quer a profissionalização, mas também quer continuar dando acesso aos nossos, a quem realmente consome a cultura. A gente tem que continuar com o nosso pé no barro, mas botando o pé na porta – como a Nathy sempre fala–, para que essas conquistas sejam também fruto de um movimento social. E que a gente ande sempre junto com o movimento negro, porque a gente tem que dar essas conquistas através da política: o hip hop é político em sua essência.

Nathy: O hip hop completou 50 anos ano passado, dia 11 de agosto. E tinha uma mulher lá, que era a Cindy Campbell, irmã de um dos precursores do hip hop. Ela foi uma figura importante para esse primeiro evento, que ela produziu. Acredito que, sem a mão dela, o evento não teria acontecido de fato. São 50 anos dentro desse espaço e, ainda assim, poucas pessoas lembram de Cindy Campbell. É um dos exemplos do desafio que a gente tem dentro da nossa cultura.

Sul21: Como está a produção dos demais episódios da série documental?

Maria: A grande ideia era fazer esse primeiro e já ir gravando os outros. Mas nós, como milhares de gaúchos, fomos afetadas pela crise climática. Então, o nosso processo de gravação e produção foi interrompido por isso. Hoje a gente busca a perspectiva de capitalização para conseguir dar o passo adiante e ter qualidade de gravação, de profissionalizar esse projeto.


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