Cultura
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14 de dezembro de 2024
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13:53

Memória preservada: peças do museu de Muçum são devolvidas à cidade recuperadas após enchente

Por
Bettina Gehm
bettinagehm@sul21.com.br
Casa da Cultura e Museu Pe. Lucchino Viero abriga o museu. Foto: Prefeitura de Muçum/Divulgação
Casa da Cultura e Museu Pe. Lucchino Viero abriga o museu. Foto: Prefeitura de Muçum/Divulgação

Mais de 150 peças históricas do Museu Municipal de Muçum voltarão a ser vistas em janeiro por moradores e visitantes da cidade no Vale do Taquari. Elas foram resgatadas após a inundação que atingiu a cidade em setembro de 2023 e, por isso, não passaram pela enchente de maio deste ano. A equipe do Museu de História Julio de Castilhos (MHJC), localizado na capital gaúcha, foi responsável pelo minucioso processo de limpeza dos itens e devolução do acervo na última segunda-feira (9).

Doris Couto, diretora do MHJC e coordenadora do Sistema Estadual de Museus (SEM/RS), conta que a equipe pretendia devolver o acervo à Muçum em maio, quando chegou a nova inundação. “Essas peças foram salvas duas vezes. A primeira pela equipe de conservação, e a segunda, por não estarem em Muçum em maio deste ano”, diz.

“O MHJC foi o único museu do País a adotar outro museu nesse processo das inundações”, destaca Doris. “Em setembro de 2023, o Museu de Muçum era o único atingido. Nesse processo de maio, tivemos 22 instituições atingidas com severidade e com acervos comprometidos. Essa expertise que acabamos adquirindo com o resgate do acervo foram importantes para a ação do Sistema Estadual de Museus”, afirma.

A ação faz parte de uma cooperação técnica firmada entre a Prefeitura Municipal de Muçum e a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), que designou o MHJC como responsável pela conservação do acervo. Já a restauração foi executada por uma ampla rede de cooperação: quatro máquinas de costura de couro, por exemplo, foram encaminhadas à Fundação Ernesto Frederico Scheffel, em Novo Hamburgo, onde receberam tratamento especializado por meio da Associação Brasileira das Indústrias de Máquinas e Equipamentos para os Setores de Couro, Calçados e Afins (ABRAMEQ).

 

Máquina de costura recuperada. Foto: Lucas Wendt

Alunos do curso de Museologia da UFRGS analisaram algumas peças do acervo resgatado e elaboraram um dossiê, em termos de estado de conservação e das patologias que apresentavam.

Trabalhos especializados em marcenaria, relojoaria e arte foram desempenhados, respectivamente, por César Fuhr, Remi Scheffler e Floresta Restauro, devolvendo funcionalidade a um relógio de parede histórico, severamente danificado pela força das águas, plasticidade a uma escultura de Nossa Senhora e nova encadernação aos livros do Padre Lucchino Vieiro, que dá nome ao centro cultural de Muçum.

“Foi a primeira vez que tivemos contato com esse grau de comprometimento”, afirma Doris. Ao tratar da conservação, documentação e exposição de reabertura do museu de Muçum, a equipe do MHJC precisou replanejar o museu. “Agora será apenas uma sala, porque o prédio está inviabilizado no andar térreo”, relata a diretora.

 

Acervo no momento do resgate, em setembro de 2023. Foto: Doris Couto/MHJC

Mas a parte mais difícil foi identificar a história de cada peça. Isso porque, na enchente de setembro passado, os voluntários que passaram pelo museu descartaram todo o acervo em papel achando que não havia como recuperá-lo: fotografias e documentação museológica foram para o lixo. “Isso fez com que toda a história dos objetos se perdesse. Para algumas máquinas de costura, por exemplo, a informação que se tem é do catálogo da fábrica; mas quem foi a mulher costureira que trabalhou naquela máquina é uma história perdida até o momento”, lamenta Doris.

A diretora explica que existem, sim, maneiras de recuperar material em papel. Quando a tinta do documento não é solúvel em água, ele é lavado. Eventuais rasgos ou quebras da fibra são recuperados num processo de implante de papel.

Quanto ao material perdido, Doris acredita que a história pode ser recuperada: “a ideia é que, após a reabertura do museu, a própria comunidade de Muçum possa visitar e identificar doadores do acervo. Recuperar essa informação vai ser um passo muito importante. Um objeto musealizado faz sentido, também, a partir do uso que ele teve. É o uso que empresta alma a esse objeto”, afirma.

O museu de Muçum fica a apenas duas quadras do rio que inundou a cidade. Pensando em futuras enchentes, a equipe do MHJC elaborou um plano de gestão de risco para proteger o acervo. “Nós preparamos peças que não ficarão em exposição, mas em caixas de engradados para que possam ser retiradas rapidamente. Já fizemos a recomendação ao município de que as janelas e portas devem ser gradeadas, porque esse ano a água levou a porta do museu e abriu as janelas. As peças que haviam ficado foram embora”, detalha Doris.

Para a diretora do MHJC, as peças do acervo são mais que simples itens históricos. “Ao devolvê-los para uma cidade que perdeu 21 pessoas na inundação de setembro, pode-se supor que algumas peças possam ter pertencido a essas pessoas. Nós estamos trabalhando na preservação da história local, mas também das memórias dessas famílias”, diz.

 

Equipe do MHJC trabalhou na conservação das peças. Foto: Gaby Silva/acervo MHJC

A lição que fica de tudo isso, segundo Doris, é a necessidade de mais cuidado com acervos musealizados e com espaços significativos do patrimônio. “A orientação é que, ao menor sinal da Defesa Civil de que o rio possa transbordar, as peças sejam removidas do museu. Todos os museus atingidos terão que se preparar para isso”.

Um dos próximos passos do MHJC é desenvolver um plano museológico para o museu de Muçum, a fim de planejar futuras exposições a partir do acervo catalogado. Outro plano é fazer uma exposição virtual com o acervo, mostrando também o processo de trabalho de restauro e conservação.


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