
A Comissão de Educação do Conselho Tutelar contabiliza pelo menos mil crianças fora da escola por falta de vagas na Capital. Cerca de 870 estão em idade obrigatória para estar na escola, a partir dos quatro anos. Do total, 540 aguardam vagas na educação infantil. São famílias que solicitam vagas desde o início do ano e continuam recebendo negativas – ou deixam de receber respostas – até agora, às vésperas da abertura de inscrições para o próximo ano letivo na primeira etapa escolar.
Esse número deve ser ainda mais alto, segundo o conselheiro Thiago Fiorino. Isso porque o Conselho Tutelar funciona como um último recurso, dentro do sistema de proteção da criança, para buscar o direito à escola. A primeira via de acesso para inscrever a criança na escola é a Central de Vagas. “As famílias já cansaram de procurar o Conselho. Elas estão procurando desde que a criança tem quatro meses, quando já tem idade para ir para um berçário”, afirma o conselheiro.
Somente no bairro Restinga, são 97 crianças esperando vaga no primeiro ano do ensino fundamental. Em fevereiro, o Sul21 mostrou a dificuldade enfrentada pelas famílias do bairro para garantir a educação das crianças. Na Lomba do Pinheiro, há 110 requisições de vagas em aberto ou com resposta negativa para a faixa etária em que é obrigatório estar na educação infantil, de 4 a 6 anos.
A Secretaria Municipal de Educação (Smed) trabalha com um déficit de 3 mil crianças fora da etapa creche, de 0 a 3 anos. Nas demais faixas etárias da educação infantil, não registra déficit. O número é bem menor do que o registrado no início do ano, de 7,5 mil crianças fora da educação infantil. Segundo a Smed, houve compra de vagas em escolas parceirizadas (leia a explicação ao final do texto). No entanto, o Conselho denuncia que não recebe a informação de quais são as escolas contratadas pelo município e onde estão sendo matriculadas essas crianças.
Já a demanda reprimida nos ensinos fundamental e médio, de abrangência da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), é imprecisa: “A pasta não tinha o costume de fazer o controle das vagas preenchidas. A pessoa chegava lá, recebia uma negativa, mas não havia um controle disso”, alega o conselheiro Thiago. Procurada, a Seduc disse que estava elaborando o levantamento do déficit de vagas, mas não enviou os dados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.
A situação, de acordo com os conselheiros, se agravou com as enchentes de maio: muitas famílias precisaram mudar de bairro ou vieram de outras cidades para Porto Alegre, aumentando a demanda por vagas. A Smed, por sua vez, diz que não houve aumento de demanda após a enchente.
De acordo com Thiago, o Conselho foi orientado a priorizar as famílias vítimas da catástrofe – que precisassem trocar os filhos de escola ao mudar de casa – na hora de requerer as vagas. “Eles teriam prioridade, mas isso não aconteceu e não acontece até agora”, contesta. “A gente envia o requerimento e a resposta é ‘não temos vaga’, e só”.
Outra denúncia do Conselho é que a Seduc concede vagas em escolas muito distantes de onde as crianças moram. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o estabelecimento de ensino disponibilizado pelo poder público deve estar situado a no máximo dois quilômetros da residência do aluno.
Denise Andreoli, conselheira que atua na microrregião da Restinga, afirma que há casos em que a Seduc propõe contemplar os alunos com vagas na área rural do bairro Lageado, no extremo sul da Capital. “É lá na escola São Caetano. As próprias crianças do Lageado às vezes não conseguem acessar – o ônibus para na avenida e elas precisam subir a pé, um quilômetro e meio”, relata. “Estamos falando de primeira, segunda e terceira série. São crianças de seis a oito anos que pegam ônibus sozinhas no horário de pico”.

A conselheira afirma também que já foi orientada a dizer para as famílias matricularem seus filhos, mesmo em escolas distantes de casa, e depois pedirem transferência para um estabelecimento de ensino mais próximo. “Vendem a falsa ideia de que vai haver vaga para transferência. Se houvesse, por que não contemplar as crianças agora com a vaga?”, indaga. “No momento em que é designada vaga para outro bairro e a Promotoria da Educação aceita isso, estamos transferindo para as famílias a culpa da infrequência escolar. Mas é o Estado violando um direito”.
Em nota, o Ministério Público (MP) afirmou que, em 20 de agosto de 2024, expediu recomendação aos prefeitos e à Seduc para que seja dada publicidade para as listas de espera da educação infantil dos municípios. “É uma forma de proporcionar a gestão do atendimento da demanda e garantir que o controle social também possa acompanhar a evolução da política pública”.
O MP diz ainda que, nos casos de falta de vagas na Capital, a promotora regional da educação de Porto Alegre, Luciana Moraes Dias, tem ajuizado ações perante o Poder Judiciário.
A judicialização de vagas – quando o MP se envolve no caso e o município precisa pagar para que o aluno estude em uma escola particular – é outra forma encontrada pelo poder público de reduzir a demanda reprimida. No entanto, é uma via lenta: o conselheiro Thiago relata que pode levar de seis a oito meses para uma criança ser matriculada dessa forma. “Muitas escolas privadas não querem dar vaga, porque a prefeitura atrasa o pagamento das mensalidades”, explica. Além disso, o valor de uma vaga judicializada na educação infantil varia de R$ 1,5 mil a R$ 2 mil. Na rede municipal, por outro lado, uma criança “custa” de R$ 800 a R$ 900 mensais.
“O valor da vaga judicializada sai do cofre público do município, por isso que eles vivem fazendo acordo com Defensoria Pública. A gente tem que peneirar a família mais vulnerável para dizer qual criança vai ter ou não a vaga”, desabafa o conselheiro.
O problema da falta de vagas é histórico e o déficit se acumula ano a ano. A própria Smed afirma que o déficit de 7,5 mil vagas na educação infantil, registrado no início de 2024, se assemelha à média de anos anteriores.
Na pandemia, essa demanda reprimida foi temporariamente sanada pelo ensino remoto. “Inflaram as turmas porque não era preciso respeitar a redução de alunos em salas virtuais. Maquiaram a falta de vagas por dois anos. Quando chegou 2022, 2023, não existia espaço físico para comportar os alunos”, ressalta a conselheira Denise.
O problema, segundo o Conselho, resulta em algo ainda mais grave: a criança fica exposta ao trabalho infantil e ao abuso sexual. Denise explica: “Algumas crianças que não conseguem vagas em creches acabam tendo que acompanhar as mães na venda de produtos na sinaleira. Ou os adolescentes acabam saindo da escola porque precisam ficar cuidando do irmão menor, também impacto da falta de vagas na educação infantil”.
A solução encontrada por muitas mães é deixar os filhos em creches clandestinas. “São os chamados ‘cuida-se’”, afirma Thiago. “São pessoas que abrem suas casas, colocam 20 crianças lá dentro sem nenhum trabalho pedagógico, sem nenhum trabalho nutricional, sem nenhum cuidado. As crianças ficam expostas a riscos porque não existe uma equipe técnica para fazer os cuidados dentro desse espaço”.
Leia a explicação da Smed na íntegra:
Em 2024, 12.673 alunos buscaram vagas na rede. Destes, 5.133 foram atendidos por vagas públicas. Com isso, 7.540 não obtiveram matrículas nas escolas públicas (déficit semelhante à média dos anos anteriores).
Deste déficit, 1.806 vagas foram compradas por ordem judicial, 568 foram compradas por acordo com a Defensoria Pública e 289 foram matriculados em vagas contratualizadas com a rede privada. Restando, em março de 2024, o déficit de 4.877.
Foram, então, assinados novos acordos com a defensoria, um primeiro de 300 novas vagas (abril) e um para 530 vagas (junho). Além disso, foram ampliadas, até junho de 24, 1.000 vagas para educação infantil através de Organizações da Sociedade Civil.
Em junho de 2024, foi lançado ainda um novo edital para credenciamento de escolas privadas para compra de vagas. O objetivo inicial era a compra de 1.500 vagas. Até o momento, já foram credenciadas, através do edital, 1.147 vagas, sendo 779 novas vagas. Dessas, 199 já foram contratadas e as demais serão formalizadas em setembro.
Assim, a Smed trabalha atualmente com déficit de 3.077 vagas na etapa creche (0 a 3 anos). Nas demais faixas etárias, a Smed não registra déficit.