

Luciano Velleda
Criado na periferia da zona sul da cidade de São Paulo, Sérgio Vaz conta que, quando criança, achava que o planeta se chamava Terra porque as ruas na região em que vivia não tinham asfalto. A realidade da região da Chácara Santana e do Jardim Ângela, áreas que já foram consideradas uma das mais violentas do mundo, moldaram a mente e a personalidade do menino que viria a ser um aclamado poeta.
Cofundador do Sarau da Cooperifa, poderoso movimento cultural que transformou um bar, na periferia da capital paulista, em centro cultural e ajudou a deflagrar a literatura periférica, Sérgio Vaz é um dos homenageados da 13ª edição da FestiPoa Literária, que começa nesta quinta-feira (13), em formato 100% virtual, com cinco dias de literatura, poesia e debates com a participação de cerca de 50 artistas, como Jeferson Tenório, Antônio Pitanga, Itamar Vieira Júnior, Teresa Cristina, Conceição Evaristo, Criolo, Letrux, Ricardo Aleixo, Luedji Luna, Paulo Lins, entre outros. O poeta define como uma “ousadia” do tradicional evento homenageá-lo, ao lado da escritora Ana Maria Gonçalves.
“Fiquei muito emocionado porque escrevo para a periferia, com a periferia, e muita gente acha que a gente não faz nem literatura”, comenta o premiado poeta, autor de oito livros, como Subindo a ladeira mora a noite (1988), A margem do vento (1991), A poesia dos deuses inferiores (2005), Cooperifa Antropofagia Periférica (2008), entre outros.
Nesta entrevista ao Sul21, Sérgio Vaz fala como tem enfrentado a pandemia do coronavírus e de que forma a tragédia brasileira impacta ou afetará sua poesia. O poeta diz cuidar da alma e do corpo para estar bem preparado quando a crise sanitária acabar. Uma crise que evidenciou ainda mais as desigualdades sociais que ele tão bem conhece.
“Como escrevo com a periferia, meu trabalho sempre foi de engajamento social, falar das mazelas do povo brasileiro, do racismo, a fome, a violência, o amor. Acredito que já vinha falando sobre essas coisas que estão acontecendo hoje, e que talvez pra muitas pessoas seja a primeira vez que vão encontrar um país tão perverso, que negros e pobres já conhecem há muito tempo. E agora na pandemia só aumentou o fluxo da nossa escrita. É um momento que vai precisar do artista como nunca precisou, do artista se posicionar não só como artista, mas como ser humano, como cidadão. Sua arte agora deve ser voltada pra cidadania”, afirma.
Autor do projeto “Poesia Contra Violência”, que percorre escolas públicas da periferia de São Paulo para promover recitais e conversar com alunos sobre poesia e incentivo à leitura, Sérgio Vaz defende com veemência a necessidade da sociedade abraçar as escolas e os educadores para tentar recuperar os impactos da pandemia sobre os estudantes da rede pública de educação.
“Acho que o grande esforço agora é juntar toda a sociedade em prol da escola. Não só respeitar professores e professoras, mas protegê-los, porque o que vejo na escola são sonhos interrompidos. Não é só uma criança analfabeta, são pessoas que sem acesso ao conhecimento não vão ter a oportunidade de sonhar, realizar sonhos que o conhecimento proporciona, o pensamento crítico, saber porque ela está naquele lugar, porque sofre. O conhecimento liberta.”
Leia a entrevista completa:
Sul21: Como foi receber o convite e ser um dos homenageados do FestiPoa Literária?
Sérgio Vaz: Foi um presente que, dentro da literatura, jamais pensei que ia conseguir ganhar essa homanagem, ainda mais ao lado de uma escritora como a Ana Maria Gonçalves. Achei de uma ousadia da FestiPoa muito grande. Fiquei muito emocionado porque escrevo para a periferia, com a periferia, e muita gente acha que a gente não faz nem literatura. Um festival tão importante como a FestiPoa…eu não caibo em mim.
Sul21:’Literatura, pão e poesia’ é o título do seu debate com o cantor e compositor Criolo. O que dá pra adiantar sobre como será essa conversa?
Sérgio Vaz: Nesse título só faltou vacina, né…pra ficar completa a mesa. É um encontro que me deixa muito honrado. O Criolo é um artista o qual considero muito, já foi na Cooperifa algumas vezes, já fez show pra nós aqui na periferia. Encontrá-lo numa mesa, poder falar sobre literatura, sobre pão, sobre as coisas que estão afligindo esse país, além de livros, poesia e literatura. É um encontro muito importante porque, nesse momento, o que a gente mais precisa é trocar ideias. Acho que o país troca muito meme e pouca ideia. E nós trocamos algumas ideias e estou muito feliz em estar nessa mesa com ele.
Sul21: E como tu tens ‘trocado ideia’ e passado esse período tão difícil da pandemia?
Sérgio Vaz: Primeiramente, muito triste. Mais de 420 mil mortos é uma coisa muito difícil. Em 2020, ainda tava refletindo sobre o que tava acontecendo, porque aconteceu tudo muito rápido e não tava entendendo direito. Aí aproveitei a quarentena pra colocar a literatura em dia, o cinema e as informações em dia, refletindo, assistindo algumas lives, me inteirando sobre os assuntos, sobretudo o que tava acontecendo no Brasil e no mundo. Tentando me cuidar por dentro e me preparar pra quando a gente sair, quando tudo isso acabar. Então tava mais preocupado em cuidar da alma, porque a gente sabe que vai precisar desse corpo quando tudo isso acabar. Então, muita aflição, muita reflexão, pensando muito no que tava acontecendo.
O Sarau da Cooperifa é um movimento que acontece num bar, presencial, e nós demoramos muito pra entender…então fizemos algumas ações. Eu fiz algumas lives sobre poesia, sobre sarau, trocar ideia com escritores e escritoras. Tentando se reinventar. Acho que a palavra da moda é ‘novo normal’, eu gosto de ‘novos dias’ ou ‘reinventar’. Eu tô procurando me reinventar todos os dias. Apesar dos pesares, as redes sociais ainda são uma grande fuga para o meu trabalho. Tenho aprendido muito. Eu que sou ‘analfabyte’, tive que me rejuvenescer nas ideias.
Sul21: Qual impacto a pandemia e essa tragédia no Brasil já tem ou vai ter na tua poesia?
Sérgio Vaz: Como escrevo com a periferia, meu trabalho sempre foi de engajamento social, falar das mazelas do povo brasileiro, do racismo, a fome, a violência, o amor. Acredito que já vinha falando sobre essas coisas que estão acontecendo hoje, e que talvez pra muitas pessoas seja a primeira vez que vão encontrar um país tão perverso, que negros e pobres já conhecem há muito tempo. E agora na pandemia só aumentou o fluxo da nossa escrita. É um momento que vai precisar do artista como nunca precisou, do artista se posicionar não só como artista, mas como ser humano, como cidadão. Sua arte agora deve ser voltada pra cidadania.
Vou continuar fazendo o que sempre fiz, uma literatura de resistência. Imagine ter sonhos de literatura morando na periferia de São Paulo, no extremo sul, região da Chácara Santana e Jardim Ângela, que já foi eleita como a mais violenta do mundo. Imagina pra um cara ousar sonhar e escrever um livro… Pra ter uma ideia, quando era criança achava que o planeta se chamava Terra porque as ruas não tinham asfalto. Então essa realidade eu conheço, só vou ter que lutar mais, deixar a caneta um pouco mais raivosa, porque é um momento que pede posicionamento da arte.
Sul21: Existem muitas diferenças entre a periferia de São Paulo e a de outras cidades grandes, como Porto Alegre?
Sérgio Vaz: Na periferia estão os negros e pobres, então não vejo muita diferença. Imagino que São Paulo, como a periferia de uma grande metrópole, talvez as mazelas apareçam mais no noticiário do que de outras regiões. Mas acredito que o sofrimento é o mesmo. Estamos vendo agora o aumento do racismo, da violência e da fome, afeta de maneira geral. Acho que cada região tem um tipo de cultura periférica. O Rio de Janeiro tem o funk e o samba, São Paulo tem o hip hop e samba também, agora os saraus e slams. Acho que de alguma forma, nos últimos anos, por conta da internet, as periferias têm se conectado. A juventude que tá chegando agora, braba e inteligente, está se conectando mais pra discutir coisas que são comuns a todos. Não vejo muita diferença não.
Sul21: Na programação da FestiPoa haverá um encontro teu com professores no próximo sábado. Como vai ser essa conversa?
Sérgio Vaz: Tenho um projeto em São Paulo que se chama ‘Poesia contra a violência’, em que a ideia é ir nas escolas e bater um papo com os jovens pra falar de literatura e poesia, sou um colaborador da educação. Acho que nesse momento de ataque à educação, tem que se estar junto da escola. Hoje a gente faz uma campanha contra a evasão escolar. Então vou falar um pouco sobre esse meu trabalho e como a literatura e a poesia é importante nas escolas, porque a cultura tem que estar aliada à educação. Conhecimento e cultura faz com que a gente imagine um mundo melhor. Vou contar um pouco da minha experiência. Sempre aprendo com os professores e professoras, e vou falar sobre o que aprendo com eles e com os jovens, essa coisa do incentivo à literatura, ler para as crianças e os jovens. E incentivar os adultos a gostarem de poesia e literatura, porque todo mundo gosta de poesia, só não sabe que gosta.
Sul21: A pandemia aprofundou o fosso entre a escola pública e privada. Como será o trabalho pra tentar recuperar esse impacto na rede pública?
Sérgio Vaz: Isso é muito triste e ficou evidente tudo aquilo que a gente sempre falou nas nossas poesias, essa distância do Brasil, dessa ‘Beríndia’, o Brasil da Bélgica e da Índia em que nós vivemos. Acho que o grande esforço agora é estar ao lado da escola pública, dos professores e professoras. Quem está sendo atacada é a educação e quem vai perder com isso é o país, que vai perder em ciência, em cultura, em arte, vai perder em tudo. É uma geração que a gente precisa abraçar. Acho que o grande esforço agora é juntar toda a sociedade em prol da escola. Não só respeitar professores e professoras, mas protegê-los, porque o que vejo na escola são sonhos interrompidos. Não é só uma criança analfabeta, são pessoas que sem acesso ao conhecimento não vão ter a oportunidade de sonhar, realizar sonhos que o conhecimento proporciona, o pensamento crítico, saber porque ela está naquele lugar, porque sofre. O conhecimento liberta.
A gente precisa fazer um grande esforço na sociedade, com os artistas, a mídia, todas as pessoas que falam que a educação é uma coisa muito importante. E a gente precisa saber, é importante pra quem? Se falar de democracia sem falar de educação pública, de racismo, de meio ambiente, fica uma coisa muito difícil, distante. A gente não quer mais escrever sobre isso, a gente quer escrever sobre outras coisas, mas pra escrever sobre dias melhores, a gente tem que lutar por esses dias. Então vamos ter que lutar, se aproximar um do outro, como já fizemos anteriormente, e fazer um grande mutirão por uma educação pública de qualidade.
Eu estudei muito pouco, fiz o colegial, naquela época tinha que trabalhar e tal…a gente tem que se juntar. Não vejo outra palavra agora que não seja ‘resistência’, ‘empatia’ e se ‘reconectar’.
Sul21: Como a gente faz pra sonhar nesse Brasil de mais de 420 mil mortos pela covid?
Sérgio Vaz: Vamos ter que sonhar sem ter medo. Acho que a fase do medo já foi. A gente precisa ter coragem pra mudar tudo o que está a nossa volta. Nesse país hoje, pra mim, sonhar é ter coragem.