Entrevistas|z_Areazero
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18 de janeiro de 2016
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11:17

‘A cultura é a prima pobre em todos os governos’

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Antes de ser conselheiro, Dael Luis foi secretário de Cultura em Camaquã | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Débora Fogliatto

Em tempos de dificuldades econômicos, arrochos e cortes de gastos, os trabalhadores da área da cultura já sabem que seu setor é um dos que mais sofrem. E diante da crise econômica pela qual o Rio Grande do Sul passa atualmente não seria diferente. No fim de 2015, a aprovação do Projeto de Lei 506/15 retirou a obrigação de que os investimentos para a área sejam maiores do que o do ano anterior, o que, na prática, significa uma redução ainda maior dos já escassos recursos.

O Conselho Estadual de Cultura, órgão com 22 membros que tem como função fiscalizar e promover o diálogo entre o Estado e o setor, lançou uma nota repudiando a aprovação do PL, sobre o qual não foi consultado. Em entrevista ao Sul21, o presidente do Conselho, Dael Luis Prestes Rodrigues, destaca a falta de investimentos na área que, segundo ele, independe de partidos e ideologias. “A nossa cultura é revisitada, é respeitada lá fora. Acho que é a nossa grande contribuição. Paradoxalmente, vive de migalhas, né? Os governos não tem essa noção de quão importante é a cultura brasileira”, afirma.

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Presidente do Conselho também é professor da rede estadual | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Mestre em filosofia, Dael também ministra aulas na rede estadual de educação, onde procura abordar questões relacionadas à cultura na sala de aula. Prática que ele lamenta que não seja muito comum nas escolas brasileiras. “A cultura tem que entrar na escola, crianças têm que conhecer o chorinho, a bossa nova, nossos artistas”, avalia. Antes de ser conselheiro, ele foi secretário de Cultura por 12 anos em Camaquã, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Confira a entrevista completa:

Sul21 – Uma das alterações que foram feitas na Cultura nesse ano foi a aprovação do PL 506. Como isso irá afetar a Cultura estadual? O Conselho foi consultado?

Dael Luis Prestes Rodrigues – Parece que a única alteração foi a questão das ações especiais, que embora não tenham sido usadas por todos os governos para o que se propõem, era um investimento importante. O Conselho não foi consultado, isso é uma ação de governo. Não houve consulta e quando tivemos conhecimento, lançamos a nota. Obviamente, como Conselho de Cultura, não nos agrada nem 1 centavo ser cortado, lamentamos essa política. Compreendemos essa crise, entendemos a situação difícil em que está o país, mas lamentamos. Todo o dinheiro para a Cultura é pouco e a Cultura tradicionalmente sempre fica com a fatia menor do bolo. Então qualquer centavo que se corte, já prejudica.

Sul21 – Apesar de não terem sido consultados sobre essa questão, como está sendo a relação do conselho com a secretaria?

Dael – A relação com a secretaria é uma relação republicana, é uma relação respeitosa, de independência total e ao mesmo tempo de colaboração, porque nós precisamos da secretaria, então nós temos uma relação bem tranquila. O secretário Victor Hugo é um homem da cultura, é afeito ao diálogo, o Conselho Estadual da Cultura não tem nenhum problema de relações com a Secretaria da Cultura.

“Os governos não tem essa noção de quão importante é a cultura brasileira”

Sul21 – Vocês sentem que a cultura é, de certa forma, desvalorizada e que não recebe investimentos pelos governos em geral?

Dael – Lamentavelmente, isso independe de partido, de ideologia, a cultura não tem um tratamento adequado, a cultura é a prima pobre em todos os governos, de todos os partidos. E isso eu lamento como presidente do Conselho de Cultura, como militante da cultura, porque uma das coisas verdadeiras pelas quais o Brasil é respeitado lá fora é por sua cultura. Nós temos uma diversidade cultural rica, manifestações culturais lindíssimas, profundas, populares, tradicionais e seculares. A nossa cultura é revisitada, é respeitada lá fora. Acho que é a nossa grande contribuição. Paradoxalmente, vive de migalhas, né? Os governos não têm essa noção de quão importante é a cultura brasileira.

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Na avaliação do presidente, falta de investimentos para cultura independe de partido | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – Até agora se debate, embora não seja no âmbito estadual, que vários municípios estão cortando verbas das festas de Carnaval…

Dael – Sim, isso é lamentável, porque o Carnaval é uma das manifestações mais admiradas e glorificadas lá fora, e os prefeitos, de uma forma equivocada, tiram verbas do Carnaval. Não vejo isso com bons olhos, é um retrocesso. Eu acho que é um desrespeito com a população, com a cultura brasileira e com a cultura popular.

Sul21 – Recentemente foram liberados R$ 2,9 milhões para 38 projetos culturais no Estado. Esses investimentos atingem o valor necessário?

Dael – É como eu te disse, nunca é o suficiente, mas me parece que a Secretaria da Cultura, o secretário, tem essa disposição. Ele é um homem que vem da cultura, da música. Ele é um grande músico. Ele tem essa disposição, mas a gente sabe que o dinheiro para cultura é muito pouco, então tem que fazer uma ginástica, fazer um exercício enorme pra adequar e atender todas as áreas possíveis, mas realmente se faz milagre com o pouco que se tem.

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Verbas da Lei Rouanet se concentram em Rio e São Paulo, lamenta | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – E em termos de relação com o governo federal, as verbas repassadas e de editais são suficientes?

Dael – Há convênios a partir do Ministério da Cultura, projetos específicos, como restauração de prédios públicos, verbas que são fruto desse relacionamento institucional. Mas dentro desses objetivos de projetos. O que é bom salientar também — e isso é uma coisa equivocada a nível de país — é que a grande concentração de verbas da Lei Rouanet está em Rio-São Paulo, 80% das verbas se concentra lá, e os 20% restantes para o resto do Brasil. Isso é uma coisa que os conselhos estaduais e municipais de cultura, os produtores, artistas têm que começar a se mobilizar. O Brasil é muito mais do que isso culturalmente.

Sul21 – E apesar de todas as dificuldades, têm surgido trabalhos brasileiros de destaque, como no cinema.

Dael – Sim. Eu sempre digo, apesar da crise, a cultura continua andando, os artistas são maravilhosos, somos um povo que tem essa capacidade enorme de criação, de criatividade, e a arte é um exemplo disso. Acho que os artistas são heróis, continuam produzindo.

Sul21 – Sobre a questão dos grupos cênicos, que o Estado acabou voltando atrás e ficou com a Cultura, como o Conselho viu esse embate todo?

Dael – Ficamos muito preocupados com isso, porque consideramos que eles fazem um trabalho maravilhoso. O Conselho está muito satisfeito, o secretário mostrou uma versão republicana e bem equilibrada para resolver essa questão. Estamos prontos para mediar e colaborar para ampliar espaços de cultura, porque com isso, quem ganha é o estado, a cultura e toda a sociedade. O diálogo provou ser importantíssimo e resolver muita coisa.

“O teatro é resistência, é tudo na cultura. Seja em uma democracia ou ditadura, o teatro é resistência”.

Sul21 – O senhor diria que o espaço para o teatro em geral tem diminuído no Estado?

Dael – A gente não tem números relacionados a isso, mas eu sei que o teatro já foi um pouco mais forte, acho que hoje passa por uma retração. Mas o teatro é resistência, é tudo na cultura. Seja em uma democracia ou ditadura, o teatro é resistência. Um país que não respeita seu teatro é complicado. Acho que tem que ser mais valorizado, mais financiado. O governo tem que investir em cultura, porque vem do povo, que é quem paga impostos. Nada mais justo do que o povo receber de volta esse investimento.

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Dael defende que toda a sociedade precisa se conscientizar sobre a importância da cultura | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – Os grupos do Hospital São Pedro sempre destacam que cultura também é saúde, que também produz saúde mental.

Dael – Sim, isso vem desde o teatro grego, era comum o vetor de trabalho mental, saúde mental e felicidade. Arte produzia e produz felicidade. Claro que produz estranhamento e crítica, mas também felicidade e, portanto, também é importante na saúde mental e psicológica.

Sul21 – Houve ainda alguns eventos mais tradicionais da cidade que acabaram tendo verbas reduzidas em razão da crise, como a Bienal e a Feira do Livro. De que forma eles podem continuar existindo diante das dificuldades econômicas?

Dael – Eu acho que a Bienal, Feira do Livro, Festival de Gramado e outros são eventos importantes e tradicionais. É claro que, como tudo, tem que se adaptar. Os eventos ocorreram, não houve um claro prejuízo, mas tem que achar políticas de investimento e também ter criatividade para que os eventos possam se adaptar sem perder a qualidade. Mas eles têm feito movimentos nesse sentido, de achar alternativas de financiamento que não só a lei de incentivo à cultura. Acho que isso é fundamental para eventos que são o referencial do Estado.

“A cultura tem que entrar na escola, crianças têm que conhecer o chorinho, a bossa nova, nossos artistas”.

Sul21 – Como parcerias privadas?

Dael – Isso. Eu acho que temos que criar mentalidade cultural, da importância da cultura nesse país. Isso envolve governos e iniciativa privada. Os empresários precisam criar consciência de que a nossa cultura nos destaca no mundo. Em todo lugar que tu vais tem uma manifestação cultural brasileira, um chorinho, samba, bossa nova, Carnaval. Toda a sociedade tem que perceber a importância e que é preciso ter investimento nisso.

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“Todo o investimento não é só bem-vindo, como é pouco”| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – Artes e cultura em geral nunca são ensinadas de forma prioritária nas escolas. Uma mudança nesse quesito poderia vir a valorizar mais a cultura?

Dael – Eu acho que isso passa por uma mudança no currículo. O Ensino Fundamental já melhorou um pouco, mas o Ensino Médio, no qual eu atuo, ainda precisa avançar muito. Acho que a escola tem que ensinar mais cultura brasileira, os artistas e história musical, de teatro e de artes plásticas. A nossa escola deixa muito a desejar em relação a isso. É feito em outros países e aqui ainda carece. A cultura tem que entrar na escola, crianças têm que conhecer o chorinho, a bossa nova, nossos artistas. Eu mesmo fiz ano passado um trabalho sobre o chorinho e dois ou três alunos conheciam, mas a maioria absoluta nunca tinha ouvido falar. E que é uma coisa nossa, brasileira. Isso é uma falha do currículo, que não permite essa aproximação intrínseca que deve acontecer entre cultura e educação.

Sul21 – Como os artistas e grupos culturais estão se mantendo?

Dael – O povo brasileiro é criativo, se vira, “vai levando”, como diz Chico Buarque. Claro que o setor sente as dificuldades, mas até nesse momento consegue manter uma certa normalidade. Vamos torcer para que a crise não se aprofunde.

Sul21 – Mesmo com todas essas dificuldades, o senhor ainda acredita que pode haver mais investimentos na área?

Dael – Sim, todo o investimento em cultura é pouco. Se tem alguma coisa que o Brasil faz de bom, é cultura. Então todo o investimento não é só bem-vindo, como é pouco, cada vez tem que ter mais. E governos e a sociedade vão ter que criar essa consciência. É algo primordial para o país. O país é riquíssimo de norte a sul, tem a batida, o samba, todo mundo sabe disso.


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