Entrevistas|z_Areazero
|
16 de novembro de 2015
|
09:52

Racismo e falta de representação na mídia afetam saúde mental das mulheres negras, avalia pesquisadora

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Simone é psicóloga e coordena a Associação Cultural da Mulher Negra no RS | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Débora Fogliatto

A violência contra as mulheres negras cresceu 54% nos últimos dez anos, segundo o Mapa da Violência divulgado na semana passada, demonstrando que essas mulheres continuam representando um dos setores mais estigmatizados da sociedade, por serem afetadas tanto pelo racismo quanto pelo machismo. Para além desta violência física, elas também sofrem efeitos dos preconceitos, da falta de reconhecimento social, do racismo e da baixa representatividade na televisão e na mídia em geral, o que afeta diretamente sua saúde mental.

Esta é a avaliação da psicóloga Simone Cruz, dirigente da Associação Cultural de Mulheres Negras do Rio Grande do Sul (ACMUN), que atualmente coordena uma pesquisa sobre os efeitos do racismo na saúde mental dessas mulheres. “Às vezes nós somos extremamente desqualificadas nos espaços, então a falta de reconhecimento do racismo é muito ruim para a saúde mental de todas as pessoas negras”, afirma. Simone aponta que, embora a pesquisa ainda não esteja concluída e vá esclarecer mais essas questões, é perceptível que as mulheres negras sofrem com baixa auto-estima, decorrente do fato de serem muitas vezes menosprezadas e estigmatizadas, além de “não se enxergarem” representadas na mídia em geral. “Ainda falta muito avançar, não conseguimos garantir uma visibilidade, papéis positivos que sirvam de referência para crianças. Crianças negras precisam se enxergar e enxergar seus familiares de forma positiva na televisão”, diz ela.

Outra questão que ainda precisa ser desmistificada é a associação do racismo com a questão de classe, que faz com que muitas pessoas acreditem que ele só afeta as pessoas mais pobres. A realidade, porém, tem sido escancarada nos últimos meses pelas redes sociais, que têm deixado visíveis casos de racismo inclusive com artistas negras. “Muitas vezes o argumento é de que ‘não, isso é coisa da tua cabeça, o racismo não existe, apenas a pobreza’. E a gente percebe que se tem demonstrado todo dia pelas redes sociais e pela mídia que pessoas com nível social elevado também são afetadas pelo racismo”, afirma. Nesta quarta-feira (18) Simone embarca para Brasília, com mais 200 mulheres gaúchas, para participar da primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras. Confira a entrevista completa:

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Pesquisa coordenada por Simone é desenvolvida nas cinco regiões do Brasil | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – Você está desenvolvendo a pesquisa sobre saúde mental das mulheres negras. Como surgiu a iniciativa e quais são os principais objetivos?

Simone – Essa pesquisa faz parte de um prêmio que recebemos da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o Prêmio Lélia Gonzales. Fizemos uma parceria com organização de São Paulo que trabalha com racismo e saúde mental, a AMMA Psique e Negritude. O edital era um prêmio que as entidades receberiam para fazer alguma atividade e nós decidimos fazer a pesquisa. O grupo é formado ainda por três pesquisadoras da Universidade Estadual da Bahia — uma é da área da Comunicação e duas das Ciências Sociais — e uma psicanalista que reside em Salvador. Fizemos várias reuniões para pensar formato, metodologia, em como se daria essa pesquisa.

A ideia inicial era dar conta de como as mulheres negras vivenciavam o racismo a partir de sua própria perspectiva. A gente tem pesquisas que confirmam que as mulheres negras morrem mais por complicações do parto, que têm menos acesso à educação, que as condições de habitação são preocupantes, pois muitas vezes estão em condição de vulnerabilidade social. Pensamos como poderíamos fazer uma pesquisa que pudesse responder essas questões, mas a partir das perspectivas das próprias mulheres negras, falando das suas vidas. Isso é um pouco o que já tínhamos trabalhado com a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, fizemos um livro, o Mulheres Negras em Primeira Pessoa, que lançamos em 2008. Fizemos entrevistas com mulheres negras de todas as regiões do Brasil, elas contando suas vidas, é um relato de suas histórias de vida. São mulheres de diferentes estados e diversas formações, níveis de escolaridade, socioeconômicos e faixas etárias, procuramos dar conta dessa diversidade.

“Termos que ficar a todo momento provando que o racismo existe, que sofremos com isso, é um desgaste muito profundo e isso afeta diretamente a saúde mental.”

Sul21 – E em que fase está a pesquisa agora?

Simone – Recentemente acabamos a parte da metodologia, do trabalho de campo, que foi reunir as mulheres nas cinco regiões. Tanto nós da ACMUN quanto a AMMA fazemos parte de uma rede, a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB). Então contamos com organizações da AMNB para realizar grupos focais em todas as regiões, há pessoas filiadas em todo o Brasil. Pensamos em envolver a Articulação e contar com a parceria dessas organizações para nos apoiar. Em São Paulo contamos com a própria AMMA, aqui no Rio Grande do Sul fizemos em Viamão pela ACMUN; em Luziânia, Goiás, contamos com parceria de Malunga, organização de mulheres negras sediada em Goiânia, e Pretas Candangas, organização de Brasília; em Salvador tivemos Odara, Instituto da Mulher Negra da Bahia; e no Amapá o Instituto de Mulheres Negras do Amapá, em uma cidade chamada Mazagão Novo, que fica a mais ou menos uma hora de Macapá. Também foi interessante, e fazia parte da metodologia, sair dos centros e ir para lugares mais isolados. Dessa forma a gente pode fazer com que as mulheres ficassem naquele lugar e pudessem ter momentos de convivência e descanso também.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
O objetivo da pesquisa foi reunir um grupo de mulheres com a maior diversidade possível, disse Simone | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – E essas mulheres vieram de várias cidades dentro dos estados? Como foram escolhidas?

Simone –A gente escolheu a partir da indicação dessas organizações, apresentamos a proposta da pesquisa e falamos que precisávamos da indicação de mulheres de diversos tipos de perfis. Queríamos compor um grupo o mais diverso possível, com diferentes níveis de escolaridade e socioeconômico, diferentes faixas etárias, orientações sexuais, militantes e não militantes. Até porque uma coisa são as mulheres ativistas, que já têm uma ideia mais pronta em relação à questão racial, e outra são mulheres que não estão envolvidas.

Sul21 – Quais os próximos passos agora?

Simone –Agora vamos fazer a análise desses dados. Eu e a Maria Lúcia da Silva, que é a coordenadora pela AMMA, geralmente vamos para Salvador, já que a maioria da equipe está lá, e juntas trabalhamos na análise da pesquisa. Por um lado, vamos ver os aspectos da saúde mental e, por outro, a questão mais política e social, o que está sendo feito mais pelas pesquisadoras da área das Ciências Sociais. E nós como somos psicólogas vamos dar conta mais da parte de saúde mental, o que é especialidade da instituição da Maria Lúcia. E ainda temos a ajuda de uma psicanalista. A gente vai analisar de forma separada e depois juntar tudo, porque o produto dessa pesquisa vai ser um livro. E nesse livro, que ainda estamos trabalhando o formato, estarão artigos das pesquisadoras envolvidas.

Outro produto vai ser um vídeo, que será basicamente construído na oficina que aconteceu em São Paulo, onde contamos com uma equipe de comunicação para trabalhar com essa questão. E a história da vida dessas mulheres vai ser recortada pela história da Elza Soares, então ainda estamos em fase de trabalhar com a produção desse vídeo.

Sul21 – Já há uma preocupação por alguns grupos feministas que unem a questão do machismo à saúde mental. Há outro trabalho que expanda essa questão para abranger também o racismo?

| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
“O que precisa é a gente ter cada vez mais pesquisas que comprovem isso”| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Simone – Eu desconheço um trabalho assim tão especifico como esse, justamente porque a saúde mental não vemos incluída em tantos trabalhos nos movimentos. Mas por outro lado, ao mesmo tempo eu tenho visto um movimento maior, uma preocupação maior por pensar um pouco essa questão, porque não é possível que tantos problemas que a gente identifique nas pesquisas não tragam efeitos para a saúde mental. Então isso é fato. O que precisa é a gente ter cada vez mais pesquisas que comprovem isso. Como são questões muito delicadas, que envolvem as pessoas falarem, nem sempre isso é tão tranquilo, porque para pesquisar aspectos sociais não precisa estar diretamente envolvida com um sujeito que está sendo afetado, mas se observa o ambiente. Agora, a questão da saúde mental é preciso intervir diretamente, né? A pessoa precisa falar sobre, então eu acho que isso também pode ser, estou inferindo que pode ser por conta disso. A gente está agora indo nesta segunda-feira (16) apresentar os primeiros dados dessa pesquisa, que são mais quantitativos, como quantas mulheres a gente alcançou, quais são as faixas etárias, esses dados bem de perfil mesmo das mulheres que participaram da pesquisa, a gente vai apresentar na Sepir, vamos ter uma reunião de avaliação.

Sul21 – Sendo psicóloga, tu já tinhas trabalhado com essa questão da saúde mental?

Simone – Não. Interessante né? A ACMUN tem mais um trabalho focado na prevenção do HIV/aids, que é mais um trabalho comunitário. A gente sempre desenvolveu trabalhos mais comunitários com mulheres, elaborando cartilhas, informando sobre o uso de preservativo, sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mas especificamente sobre saúde mental não. Então está sendo bastante interessante pra gente, com certeza a gente continuará nessa área.

“A gente percebe que se tem demonstrado todo dia pelas redes sociais e pela mídia que pessoas com nível social elevado também são afetadas pelo racismo.”

Sul21 – As mulheres negras muitas vezes têm a auto-estima mais baixa e são, comprovadamente, mais frequentemente vítimas de violência. Isso inclusive foi provado no Mapa da Violência divulgado na semana passada. 

Simone  É, essa pesquisa foi bastante importante para a gente. Porque é isso: se a gente não tem um dado concreto, dificilmente a gente consegue argumentar, subsidiar o nosso trabalho, então sabemos das coisas, mas se não temos como provar, é muito complicado. É muito triste, mas é importante a gente ter pesquisas que comprovem que estamos nessa condição, porque o sofrimento relacionado à questão racial é muito difícil, por conta de que a gente vive ainda. Apesar do movimento negro há anos atrás ter acabado com o mito da democracia racial, a gente ainda vive a questão de que as pessoas dizem “existe racismo, mas eu não sou racista”.

Termos que ficar a todo momento provando que o racismo existe, que sofremos com isso, é um desgaste muito profundo e isso afeta diretamente a saúde mental. Até porque, às vezes, somos extremamente desqualificadas nos espaços por conta dessas posturas, então a falta de reconhecimento do racismo é muito ruim para a saúde mental de todas as pessoas negras. Aqui, a gente está falando especificamente da questão da mulher, e sabemos que ainda por cima as mulheres passam por um desgaste diário em relação a toda a questão familiar, com filhos, preocupação com família, com trabalho e mais esse fator [do racismo], que não é pouca coisa, então é complicado. Muitas mulheres que não estão no ambiente de militância, e mesmo aquelas que estão, estão adoecendo, literalmente adoecendo, porque isso faz sofrer e mata. Não é à toa que as mulheres negras têm uma hipertensão maior, a gente começa a ser diagnosticadas com hipertensão muito cedo, entra na medicação muito cedo, então essas questões são bem complicadas.

 | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
“As mulheres passam por um desgaste diário em relação a toda a questão familiar, com filhos, preocupação com família”| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – Recentemente, chamaram a atenção casos de racismo expostos pelas redes sociais, como no caso da atriz Taís Araujo. Tu achas que essa questão das redes, ao mesmo tempo que acarreta sofrimento, mostra o que está acontecendo, prova que isso existe?

Simone – Com certeza. Eu acho que é muito bom. Eu acho que atitudes, como das próprias artistas, de responderem, são importantes, até para incentivar outras mulheres que passam por isso e não têm reação nenhuma, porque não conseguem reagir. Artista já tem um reconhecimento, agora para uma mulher negra comum é muito difícil. Eu acho isso de fundamental importância, principalmente porque existe aquele imaginário de que os artistas são intocáveis, nada acontece com eles. E aquela ideia também de que o problema não é o racismo, o problema é a questão social. Mas a Taís Araujo não tem esse problema, não é uma pessoa pobre. Ela não é uma mulher negra de periferia, ela é uma mulher de classe média-alta, e o racismo também a afeta. Isso é importante, porque muitas vezes o argumento é de que “não, isso é coisa da tua cabeça, o racismo não existe, apenas a pobreza”. E a gente percebe que se tem demonstrado todo dia pelas redes sociais e pela mídia que pessoas com nível social elevado também são afetadas pelo racismo.

“Aumentou o número de papéis de mulheres e homens negros sim, até porque aumentou também o foco nas favelas. E mesmo assim, se for analisar, ainda não são os protagonistas.”

Sul21 – Inclusive esse era um argumento contra as cotas raciais, de que apenas as cotas sociais seriam necessárias.

| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Apesar de melhora na representação das mulheres negras, ainda há muito para avançar, avalia | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Simone – Exatamente. E sempre quando ouço esse argumento, eu questiono: então por que tem que ter cota racial nas universidades na Bahia, se lá a maioria da população é negra? Não tem justificativa, se a maioria da população lá é negra não tem outro motivo para ter cota racial lá. Eu percebi o racismo de forma mais escancarada da primeira vez que fui para Salvador, há alguns anos, porque lá fica evidente em um lugar onde a maioria da população é negra que não estão em posição de igualdade. Ou seja, mesmo lá nas universidades a maioria das pessoas são brancas.
Sul21 – Em geral tu percebes que essa representação das mulheres negras tem melhorado?

Simone – Não tem como negar que houve melhora, mas ainda temos muito o que avançar. Acho que precisa o reconhecimento de que as mulheres negras não estão todas na mesma condição. Esses dias eu assisti uma entrevista com três atrizes negras feita pelo Lázaro Ramos naquele programa Espelho, a Roberta Rodrigues, a Juliana Alves e a Sheron Menezes. E a Roberta Rodrigues disse que tem a impressão de que o cadastro dela lá na Globo deve ser “negra, pobre, favelada, barraqueira”, porque são os papéis que dão para ela. A Sheron Menezes e a Taís Araújo, que fizeram papéis mais variados, são exceção. Duas mulheres negras de destaque? As pessoas negras são 52% da população, as mulheres negras são 25% da população.

Então tem melhorado, mas ainda falta muito avançar, não conseguimos garantir uma visibilidade, papéis positivos que sirvam de referência para crianças. Crianças negras precisam se enxergar e enxergar seus familiares de forma positiva na televisão. Aumentou o número de papéis de mulheres e homens negros sim, até porque aumentou também o foco nas favelas. E mesmo assim, se for analisar, ainda não são os protagonistas.

Sul21 – Agora tem uma série com a Taís Araújo e o Lázaro Ramos como protagonistas, e eles são de classe alta e o programa os mostra sendo vítimas de racismo. Esse tipo de programa pode trazer uma mudança nessa consciência social que se tem sobre as pessoas negras?

Simone – Eu acredito que sim, acho super importante e adoro esse programa, é engraçado também. E é importante para a população negra poder também perceber que não é a questão social. Porque muitas vezes o racismo é tão forte que a própria população negra quando ascende não quer falar de racismo, pensa ‘chega de sofrimento’. Então é importante ver que no programa eles têm um nível socioeconômico alto mas continuam sofrendo racismo, mesmo sendo mostrado em formato de comédia. E tem também o aspecto cultural, a casa é decorada com objetos da cultura afro, ela usa turbante. Isso é importante para a auto-estima e tem tido uma boa repercussão.

 | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
A ACMUN agora participa da organização da Marcha de Mulheres Negras, que acontece em Brasília | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – E tu achas que essa falta de representação é um dos fatores que afeta a questão da saúde mental das mulheres negras?

Simone – Com certeza. A gente é pautado pela mídia, os jovens assistem televisão e as crianças também. Mas eles não se enxergam. E não vão nunca enxergar a si mesmos de forma positiva se forem colocados de forma negativa na televisão. Tem um vídeo antigo muito famoso de um psicólogo norte-americano que coloca bonecas negras e bonecas brancas e as crianças para dizer qual acham mais bonita. Esse vídeo é bem interessante porque demonstra bem isso que estamos falando: quem é a boa e quem é a má? Se uma criança só se vê representado de forma negativa, tem um choque quando se dá conta que aquela representação má e feia é igual a ela, como isso não irá afetar a saúde mental?

“Se uma criança só se vê representado de forma negativa, tem um choque quando se dá conta que aquela representação má e feia é igual a ela, como isso não irá afetar a saúde mental?”

Sul21 – E nesta semana acontece a Marcha das Mulheres Negras. Quais questões serão abordadas?

Simone – A nossa pauta pra marcha é geral, o tema é “contra o racismo, a violência e pelo bem-viver”. Vai ser dia 18, quarta-feira. Foi construída em todo o Brasil por várias mulheres negras, foram criados comitês impulsores nos estados, aqui temos o Fórum Livre de Mulheres Negras, estamos indo daqui no mínimo 200 mulheres para Brasília. Essa é a primeira marcha, foi uma ideia de uma integrante da Articulação de Mulheres Negras em um evento em Salvador, em 2011, que foi muito informal. Ela sugeriu durante um café da manhã que fizéssemos uma marcha, e eu mesma nem acreditei que ia realmente sair. Mas nos últimos dois anos estamos apostando todas as fichas e vamos realizar a marcha, vai acontecer a partir das 9h a concentração no ginásio Nilson Nelson, e depois ato político no Museu da República. A gente tem expectativa de 20 mil mulheres de todo o país, vamos ver se conseguimos.


Leia também