
Samir Oliveira
Quem ganhou, perdeu. Quem perdeu, ganhou. É assim que o jornalista Ayrton Centeno resume a origem de seu novo livro, “Os vencedores”, que resgata a trajetória de pessoas que foram perseguidas pela ditadura militar e que hoje em dia são figuras notórias na sociedade brasileira: políticos, atores e cantores com uma vida pública consolidada.
Jornalista e documentarista com passagem pelos principais veículos de comunicação do país, Ayrton Centeno trabalhou cerca de três anos para finalizar a obra, que começou com uma entrevista de mais de três horas com a presidenta Dilma Rousseff (PT) – então ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula e pré-candidata ao Palácio do Planalto, em 2010. Após conversar com figuras como Gilberto Gil, Marília Pêra, José Dirceu, Alysio Nunes e Tarso Genro, dentre tantos outros, o autor condensou suas vidas e relatos em nada menos do que 856 páginas. “Esse livro pode ser visto até como um livro de aventura, porque tem horror e tem humor. Algumas coisas são engraçadas e outras são monstruosas. O que é tratado aí não são vidas comuns, são vidas extra-ordinárias, no sentido de ‘extra-ordem’”, comenta.
O livro será lançado dia 18 de novembro, às 19h, na Saraiva do Moinhos Shopping. Nesta entrevista ao Sul21, Ayrton Centeno conversa sobre a obra e as histórias que a movem.
“Esse livro é muito geracional, está centrado nas pessoas que nasceram na década de 1940, nas pessoas que enfrentaram a ditadura a partir de 1968”
Sul21 – Como surgiu a ideia de escrever este livro?
Ayrton Centeno – A ideia deste livro, na verdade, é do Luiz Fernando Emediato, que é o editor. Em 2010, eu iria escrever um livro sobre a Dilma, uma biografia, e tinha feito uma entrevista com ela. Mas depois houve uma série de ruídos na campanha e acabou não rolando essa história. Então eu fiquei com essa entrevista que tinha feito em um domingo à tarde.

Sul21 – A entrevista foi feita quando ela já era candidata à presidência?
Ayrton Centeno – Ela era pré-candidata, ainda era ministra da Casa Civil. Em um domingo a gente conversou e ficou marcado com a assessoria mais três conversas, mas não rolou. O Luiz Fernando Emediato, através de um amigo meu, soube que eu tinha esse material e deu a ideia de fazermos, em vez de um livro centrado na Dilma, um livro centrado na geração que levou pau na cabeça, lutou, perdeu e hoje está por cima da carne seca. A Dilma se tornou apenas um personagem dentre muitos. Inicialmente, eu sugeri uma relação de 20 personagens, mas isso acabou sofrendo mudanças, porque muitos não quiseram falar. Chico Buarque, por exemplo, não quis falar. O Caetano Veloso também não se manifestou. O Gabeira foi uma das primeiras pessoas que eu contatei e, a principio, ele se mostrou sensível, depois retirou o time.
Sul21 – Quando começaram as entrevistas?
Ayrton – Houve uma temporada de entrevistas, Porto alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a partir de 2011. Algumas entrevistas, bem poucas, não foram presenciais, acabaram sendo por e-mail ou por telefone. Com o Lula, por exemplo, eu não conversei, mas utilizei o material disponível em pesquisa e ouvi pessoas falando sobre ele, como ex-companheiros de São Bernardo. Esse livro é muito geracional, está centrado nas pessoas que nasceram na década de 1940, nas pessoas que enfrentaram a ditadura a partir de 1968, quando houve o golpe dentro do golpe, o AI-5. Essas pessoas eram muito jovens, eram estudantes que, pelo fechamento político que se deu, rumaram para a luta armada. E também, dentro desse compartimento geracional, o livro enfoca o pessoal da cultura. O Gilberto Gil, falando sobre o Marighella, disse: “Nós estávamos na mesma luta, mas em trincheiras diferentes, nós na luta da cultura e o Marighella na luta armada”. Cerca de 90% das pessoas que eu entrevistei nasceram nos anos 1940 ou no início dos anos 1950. Ou seja, eram adolescentes quando houve o golpe. Aí está a Dilma, que tinha 16 anos em 1964.
“A ditadura não foi capaz de construir herdeiros de sangue, tanto militares, quanto civis”

Sul21 – Desses 20 personagens iniciais que tu sugeriste, quantos constam no livro?
Ayrton – A proposta do livro não é fazer mini-biografias compartimentadas, fechadas em um volume só. A proposta do livro é fazer com que se conte histórias pessoais e, no pano de fundo, transcorra o panorama daquela época. Assim como falei do Geraldo Vandré, falei do Raul Seixas e do Paulo Coelho, que tem uma história que está contada no livro. Ele foi preso duas vezes e torturado, pouca gente sabe, por causa da Sociedade Alternativa. Em determinado momento, a luta armada estava liquidada, não havia mais ninguém, então começaram a pegar o pessoal do PCB e, por fim, começaram a pegar coisas que eles não entendiam. Para justificar a existência do aparato antisubversão, eles precisavam de um inimigo, então começaram a forjá-lo. Um inimigo forjado foi a Sociedade Alternativa.
Sul21 – Tu disseste que o livro não é de mini-biografias. Seriam mini-perfis?
Ayrton – Não são bem perfis. É uma reportagem, do ponto de vista dos resistentes, sobre o que aconteceu com eles de 1964 até o final da ditadura e sobre como eles estão hoje em dia. O livro é centrado no mote: “Quem venceu, perdeu; quem perdeu, venceu”. A ditadura não deixou herdeiros. Quem poderia ser o herdeiro da ditadura é o Paulo Maluf, mas ele fez várias tentativas frustradas de chegar ao poder central e não conseguiu. A ditadura não foi capaz de construir herdeiros de sangue, tanto militares, quanto civis.
Sul21 – E José Sarney?
Ayrton – Eu não encaro o Sarney como um filho da ditadura, porque em 1954, dez anos antes do golpe, ele já era deputado federal. Ele já era um político em atuação no Maranhão, pertencia à UDN, que foi uma das articuladoras do golpe. Então não pode-se dizer que o Sarney foi feito pela ditadura, não foi uma figura que ascendeu por causa da ditadura, como foram Maluf e Collor, que hoje não representam nada.
“Em 2010, os quatro principais candidatos à presidência da República – Dilma Rousseff, José Serra, Marina Silva e Plínio de Arruda Sampaio – tiveram militância em organizações que eram perseguidas pela ditadura”
Sul21 – A maioria dos personagens que o livro entrevistou eram de esquerda na época e ainda continuam, em alguma medida. Mas há casos com o do senador Aloysio Nunes (PSDB), que foi candidato a vice-presidente ao lado de Aécio Neves.
Ayrton – Hoje ele rejeita a luta armada. Ele diz que, em última instância, seria enfrentar os Estados Unidos, que jamais permitiriam que um governo de esquerda tomasse o poder na América do Sul. Aloysio Nunes pertenceu ao Partido Comunista e depois passou para a Aliança Libertadora Nacional (ALN), onde se tornou uma espécie de Ministro de Relações Exteriores, porque estava exilado em Paris e fazia contatos com o mundo da cultura para apoiar a organização. O Aloysio Nunes era uma das figuras centrais da ALN, conversou duas vezes com o Sartre e tinha contatos com o Antonioni e o Visconti, com o Godard e o Miró. Depois ele acabou saindo da ALN, foi para o Partido Comunista Francês, voltou ao Brasil no período do estilhaçamento do PCB e foi para o PMDB e, depois, para o PSDB. Ele fez uma trajetória da esquerda para a direita. É curioso observar isso. Esse livro já estava pronto quando ocorreram as eleições deste ano. Mas, em 2010, todos os quatro principais candidatos à presidência da República – Dilma Rousseff, José Serra, Marina Silva e Plínio de Arruda Sampaio – que, juntos, fizeram 99,5% dos votos válidos, tiveram militância em organizações que eram perseguidas pela ditadura.

Sul21 – Mas a avaliação de que a luta armada teria sido um equívoco é feita também por pessoas que ainda se identificam como sendo de esquerda.
Ayrton – É fácil dizer isso 50 anos depois. Havia no imaginário da esquerda brasileira o exemplo muito recente de Cuba, que também era um punhado de caras fazendo a guerrilha.
Sul21 – E tu chegaste a falar com o José Dirceu e o José Genuíno? Eles já estavam envolvidos com o processo do Mensalão?
Ayrton – Sim, já estavam. Com o Genuíno eu falei no final de 2012 e com o Dirceu eu falei três vezes, espaçadamente, ao longo do verão de 2013, alguns meses antes da sua prisão.
Sul21 – E é quase uma ironia histórica, num livro sobre a atuação deles na época da ditadura, tu realizares as entrevistas pouco tempo antes de eles serem presos.
Ayrton – Exatamente. O Dirceu fala isso, que é uma grande ironia o cara que lutou contra a ditadura ser preso agora em plena democracia.
“As pessoas que foram torturadas, que foram para o exílio, que foram presas, que foram perseguidas, e se reconstituíram das cinzas, são vidas extraordinárias, são sobreviventes”
Sul21 – E quanto tempo mais ou menos durou cada entrevista?
Ayrton – Foram entrevistas longas, mas algumas nem tanto. Falei três vezes com o Dirceu e duas vezes com o Tarso Genro – com os outros fiz apenas uma entrevista. A entrevista do Genuíno durou duas horas intensas, porque ele é bem objetivo. A entrevista com a Dilma foi mais longa, numa tarde de domingo, das 14h às 17h30min.

Sul21 – Fazendo o trabalho para esse livro, tu achas que essas pessoas têm essa percepção de que são as vencedoras?
Ayrton – Eu perguntei isso. Algumas pessoas se sentem constrangidas com essa definição. O Gabeira foi um dos que não quis falar, talvez por isso. Já o Aloysio Nunes Ferreira disse “nós ganhamos, não tem nenhuma dúvida disso”.
Sul21 – Existem cada vez mais livros que abordam diversos aspectos da ditadura miliar. Qual a contribuição que tu esperas que a tua obra dê nesse conjunto?
Ayrton – A literatura sobre a ditadura tem, principalmente, duas vertentes. Primeiro, os livros testemunhais. E tem também as reportagens e os livros acadêmicos. Esse livro obviamente é uma reportagem, porque é um livro jornalístico. Quem já sabe bastante sobre assunto vai ler e vai ouvir coisas que nunca tinha ouvido falar. E quem não conhece essas histórias vai encontrar uma grande reportagem. Esse livro pode ser visto até como um livro de aventura, porque tem horror e tem humor. Algumas coisas são engraçadas e outras são monstruosas. O que é tratado aí não são vidas comuns, são vidas extra-ordinárias, no sentido de” extra-ordem”. As nossas vidas são vidas ordinárias. Agora, as pessoas que foram torturadas, que foram para o exílio, que foram presas, que foram perseguidas, que foram baleadas, que perderam o emprego, que foram execradas sob diversas maneiras, foram humilhadas, e se reconstituíram das cinzas, são vidas extraordinárias, são sobreviventes. É um livro de 850 páginas, mas é um livro que tem um bom fluxo. Como é uma reportagem, ele tende a seduzir mais que um livro acadêmico.
Sul21 – E ele demorou três anos pra ser concluído?
Ayrton – Isso, três anos, entre entrevistas, pesquisas, leituras, e redação. O que eu acho interessante é que o livro traz egressos da luta armada e egressos da resistência cultural. Nessa época havia uma sintonia muito grande entre o embate nas ruas e a cultura brasileira. Havia uma afinidade entre a cultura, literatura, jornalismo, teatro, musica popular, e a resistência, seja nas passeatas dos estudantes, seja depois na luta armada. Essa afinidade entre cultura e resistência armada é um negócio muito especial na história do Brasil. A Marília Pêra conta uma coisa interessante. Ela participou de um psicodrama, um simulacro, para saber o que faria caso fosse presa.