Maria Ângela Bulhões
Em casa de psicanalista é natural que entre os membros da família existam conversas sobre os sonhos que tivemos durante o sono, que falemos sobre nossos atos falhos e que consideremos amplamente nossas manifestações inconscientes. Não é o caso da psicanalista em questão sair analisando seus filhos ou marido, aliás, ali, todos se acham psicanalistas. Lembro quando meu filho nos trouxe a notícia de que uma amiga não acreditava em inconsciente. Ele estava incrédulo sobre a amiga. Considerei interessante pensarmos juntos se acreditar no inconsciente era uma questão de fé. Se você desacredita do inconsciente, você não sofre seus efeitos?
Quando Freud falou sobre o inconsciente, afirmando que estamos muito menos conscientes de nossos atos e sentimentos do que pensamos, ele sabia que propunha ideias que poderiam encontrar resistências. Afinal, reconhecer-se alguém desconhecedor de si mesmo pode gerar mal estar. O método psicanalítico propunha o deitar-se no divã como uma aventura na direção do descobrir-se. Desvendar-se.
O tempo passou e o mundo sofreu mudanças sociais e comportamentais de grande magnitude. O sofrimento do homem do século XIX não é o mesmo do homem do século XXI. Será que as verdades freudianas ainda podem ser consideradas relevantes para pensarmos o sujeito moderno? É claro que os psicanalistas pós-freudianos trabalharam para a renovação da psicanálise, a partir das suas experiências clínicas, para não deixá-la transformada em peça de museu. Lacan foi um desses psicanalistas: a partir da releitura de Freud, criou conceitos inovadores no campo da psicanálise, produzindo a possibilidade de uma nova clínica e também debates sobre a contemporaneidade.
E o inconsciente? Ainda permanece no centro da teoria?
Sim. Não podemos abrir mão desse conceito básico de nossa prática. Cada um que, corajosamente, parar para ouvir de si sobre si encontrará essa dimensão de desconhecimento.
Nossos sonhos são moedas de ouro produzidas por nosso inconsciente, possibilitando descobertas de nós mesmos. Podemos considerá-los apenas como uma série de sinapses que acontecem aleatoriamente durante o sono ou podemos nos abrir a esse mundo de representações oriundas de nosso inconsciente.
Freud escreveu um trabalho que nomeou de Psicopatologia da Vida Cotidiana e ali analisou uma série de comportamentos que apresentavam a dimensão inconsciente. Quando fazemos coisas que parecem estar na contramão de nossa vontade, podemos estar produzindo o que ele chamou de atos falhos. Por exemplo, quando fazemos alguma troca de palavra que nos “despe”, ao evidenciar o que realmente pensávamos mesmo que não tivéssemos a menor intenção de falar. Por vezes, nem sabíamos que pensávamos aquilo! Situações de esquecimento justamente no momento em que aquilo que foi esquecido representava algo escondido em nós! Ficamos expostos em nossas verdades. Nessa obra, Freud apresenta situações corriqueiras do dia a dia em que nos encontramos com nossas formações inconscientes.
Ao longo de sua produção teórica, o criador da psicanálise também tratou amplamente do caso das repetições. Elas acontecem quando o sujeito repete comportamentos, produzindo sempre as mesmas consequências. O indivíduo desconhece completamente as causas desse sintoma que gera sofrimento. Nós, psicanalistas, acabamos ouvindo frases do tipo: não tenho sorte no amor, estou sempre atrasado, me dou mal com todos os chefes, etc…
Freud simplesmente nos lembra de que nosso desejo está presente tanto quando fazemos algo acontecer como quando fazemos algo não acontecer. Isso não significa desconsiderar outras variáveis externas, mas introduz o sujeito como personagem principal nos acontecimentos de sua vida, podendo se perceber mais produtor do que produto de uma história.
O autor nos fez entender como nossa psiquê e nosso corpo estão entrelaçados. Ao escutar mulheres que, sem saber como nem porque, padeciam, Freud foi tecendo o fio das fantasias produtoras das dores físicas. Além disso, ele identificou que as transformações do corpo ao longo de uma vida (puberdade, adolescência, envelhecimento, etc.) precisam ser elaboradas, incorporadas psiquicamente. Com base nessa abordagem, a divisão corpo/mente não se sustenta.
A psicanálise faz o tratamento através da fala. Podemos indagar o quanto adianta falar. Isso muda alguma coisa?Muda o passado? Aqueles acontecimentos que preferíamos nunca mais lembrar poderão ser esquecidos? Essa é uma prática que busca produzir resignificações, o psicanalista faz testemunho de uma dor psíquica.
Os discursos da ciência e do capitalismo prometem resultados rápidos para cada mal estar que espreita o ser. Todavia, o ato de existir vai além do saber científico ou do consumo de produtos ideais que garantam uma vida melhor.
Nos tempos atuais, onde o individuo parece buscar soluções a partir de urgências, todo tempo, o processo de uma análise pode ser considerado muito longo. Afinal, a psicanálise é um processo que demanda falar e escutar a si mesmo, nas tramas da linguagem inconsciente. Será sempre uma aventura que se baseia nessa escolha.
Freud legou suas descobertas aos psicanalistas, e cabe a cada um de nós manter a psicanálise viva, ao produzir as novas leituras que o inconsciente de nossos pacientes convoca.
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Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.