
Luís Eduardo Gomes
Eles começaram a aparecer em Porto Alegre em 2011, mas ganharam força realmente durante a Copa do Mundo. Atualmente, os food trucks são um sucesso entre os porto-alegrenses em parques e eventos – neste domingo, estarão presentes nas proximidades do Beira-Rio para o dia de homenagens ao primeiro aniversário da morte de Fernandão. No entanto, não podem cumprir seu propósito original: circular pelas ruas da cidade.
Para dar um passo adiante em busca da solução do impasse, no dia 28 de maio a Câmara Municipal realizou uma audiência pública para debater uma alteração na Lei 10.605/2008, que dispõe sobre o comércio ambulante.
Com a participação de representantes de órgãos públicos, como as secretarias municipais da Produção, Indústria e Comércio (Smic), Saúde (SMS), Meio Ambiente (Smam), Governança Solidária Local (SMGL), Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), representantes do segmento e outros interessados, como bares, restaurantes e ambulantes, a audiência teve o objetivo de finalizar as mudanças na legislação que visa, enfim, regularizar a situação dos food trucks em Porto Alegre.
O secretário municipal Humberto Goulart, da Smic, reconhece que os food trucks já estão bastante difundidos e vêm dando certo nos Estados Unidos, na Europa e, no Brasil, mais especificamente em São Paulo. Contudo, ele salienta que as tentativas de regulamentar a comida itinerante têm encontrado dificuldades na capital paulista, o que pretende ser evitado em Porto Alegre. “Em São Paulo, eles fizeram uma lei muito longa e está toda hora sendo modificada. Resolvemos fazer uma lei específica para nós e o mais simples possível”, diz Goulart.
O secretário explica que, pela nova regulamentação, serão feitas duas exigências para os proprietários de food trucks obterem licenças para operar seus caminhões. “Uma é o curso de boas práticas em segurança alimentar, no qual eles recebem um documento. O outro é o alvará da vigilância sanitária relativo ao local onde fazem a comida, porque o food truck trabalha com comidas pré-aquecidas”, disse o secretário.
Também serão feitas exigências e impostas limitações para a atuação dos cozinheiros itinerantes. Por exemplo, os food trucks só poderão vender pratos de comida “assinados por chefs”, e não lanches (como cachorro-quente) para não prejudicar os ambulantes já estabelecidos.
“Só podem vender comida e sobremesa que eles mesmos fizeram”, diz Goulart. “Por enquanto, também não podem vender bebida alcoólica, porque são considerados um tipo novo de ambulante e estes não têm permissão para isso”, continua o secretário.
Questionado sobre como então os trucks conseguiram vender cerveja durante a Copa do Mundo no Caminho do Gol, Goulart salientou que isto foi uma exceção porque a “Copa foi patrocinada por uma marca”.
Eles também não poderão vender pilhas, balas, chips de celular, revistas e doces, entre outros itens.
Limitações não devem prejudicar os food trucks
Se aprovada a mudança na legislação, os trucks poderão atuar apenas em áreas pré-definidas – a serem determinadas posteriormente. Deverão, por exemplo, ficar a uma distância de 50 m de outras atividades alimentícias já estabelecidas, como restaurantes, comércios e ambulantes. Além disso, não será permitido aos food trucks parar no Centro Histórico de Porto Alegre, bem como nos bairros Cidade Baixa, Moinhos de Ventos (especialmente nos arredores da Rua Padre Chagas) e em alguns pontos do calçadão de Ipanema.

Goulart, porém, afirma que essas delimitações não prejudicam a atuação dos food trucks. “Eles vão vir para ocupar uma zona nova, para que eles possam trabalhar sem fazer concorrência para outros”, diz.
Segundo ele, a minuta conta com o apoio de todas as partes envolvidas e também da grande maioria dos vereadores. Sem estipular uma data, ele diz que a mudança na legislação deve ser aprovada “em breve”. “Assim que o gabinete do prefeito terminar a preparação dessa minuta, ela vai, a seguir, pela Câmara. Mas é uma coisa que eu acho que é boa, que veio para ficar”, diz Goulart, salientando que a própria associação concorda com as exigências da prefeitura.
Filipe Gamba da Costa, presidente da Associação Portoalegrense dos Food Trucks (Apoaft), apoia a minuta e acredita que, com a mudança na legislação, o mercado de comida itinerante de Porto Alegre passará por um grande crescimento.
“O otimismo é muito grande para que essa lei saia logo e o pessoal possa operar na rua”, diz Costa. “A gente já percebe uma procura muito grande, até maior do que a cidade consegue comportar. De um ano para cá, mais de 10 caminhões ficarão prontos e, em mais um ano, a expectativa é que mais do que dobre essa quantidade”.
O próprio Costa é proprietário de um food truck, o Ligeirin Temaki Móvel. Inclusive, foi pelo fato de o Ligeirin ser um dos dois únicos caminhões a atualmente contar com permissão para parar em uma rua de Porto Alegre – a Sarmento Leite -, que ele assumiu a Apoaft e passou a ajudar a condução da nova legislação sobre food trucks da cidade.
O secretário Goulart estima que, depois de regulamentada a comida itinerante, o número de caminhões, que hoje está entre 10 e 12 (segundo a Smic), passe para entre 36 e 42. “Tem bastante espaço para todo mundo. Vão levar para a Zona Norte, onde não há muitas opções”, exemplifica Goulart.

Falta de comunicação
Enquanto a legislação não sai, os food trucks de Porto Alegre vivem mesmo da participação em eventos. Mas, nem isso é garantido. Na última quarta-feira, quatro caminhões participavam do evento Food Stop, embaixo do viaduto Dom Pedro I, na Avenida Borges de Medeiros.
Segundo os participantes, a ideia para a realização do evento partiu da Smic, que deseja fazer parcerias com os empreendedores do ramo para revitalizar algumas áreas da cidade, como o próprio viaduto. Marcado para as 11h, o evento transcorria normalmente – inclusive, entrevistas para esta reportagem foram feitas no local.
Porém, por volta das 14h, fiscais da EPTC chegaram ao local. Segundo oficiais presentes no momento, houve uma falha de comunicação e o evento não tinha sido formalizado corretamente entre a Smic e a EPTC, mas foi dito que a fiscalização de trânsito apoiava a iniciativa.
“Nos próximos, queremos melhorar a área para eles, colocar embaixo do viaduto para não pegarem chuva, isolar com fitas”, disse Boaventura, chefe da fiscalização da EPTC para a região do Menino Deus. “Por parte da EPTC, o apoio é total para a comida de rua”.
Logo depois, porém, os trucks precisaram se retirar do local.
Oficialmente, a EPTC diz que a licença para que a área fosse utilizada valia apenas para depois das 18h. Como os caminhões se encontravam no local desde as 11h – o evento estava agendado para ir até as 22h -, a fiscalização pediu para que eles se retirassem no meio da tarde. Segundo a Smic, a responsabilidade pela organização do evento era da Apoaft.
Por parte dos trucks, ficou o lamento da falta de comunicação entre os órgãos públicos e as perdas de um dia de trabalho jogado fora. Mais um na vida de quem aguarda liberação para realizar o próprio trabalho.

Casal larga tudo para apostar no food truck
Quando se conheceram, em 2010, Rafael Dutra e Guadalupe Dias ainda estavam muito longe do sonho de ter um food truck próprio. Ele trabalhava em TI. Ela trabalhava na cozinha de restaurantes, onde se sentia pouco valorizada e mal remunerada. Aos poucos, foram cultivando a ideia de investirem em um projeto próprio até que, após uma viagem de carro pelo Brasil, começaram a se informar sobre como podiam vender comida de na rua. “A gente não tinha ideia de que a coisa iria estourar, que ia ter um monte de carros na rua”, explica Dutra.
De lá para cá surgiu o Olívia e Palito, que vende sanduíches. “Quando a gente se atirou nisso, enxugamos todos os custos excedentes. A gente não tem filho, então podemos correr riscos”, diz Dutra.
Ele conta que foi necessário investir cerca de R$ 50 mil no caminhão. Como não existia nenhum especialista em modificar food trucks, pediram para um “senhor que modificava trailers” fazer o trabalho, de forma artesanal.
Hoje, o Olivia e Palito é um dos dois food trucks que conta com alvará para operarem na rua. No caso deles, na rua Henrique Dias, no bairro Bom Fim. Porém, Dutra conta que só foi possível obter o alvará de acordo com a lei das towners, que exige que os empreendedores tenham autorização dos proprietários dos prédios próximos e permite que eles ocupem um lugar específico, sem circular pela cidade.
“Se tu tens uma Towner de cachorro-quente, tu tiras um alvará na SMIC, paga as taxas e sai trabalhando”, diz Dutra, lembrando ainda que, mesmo com a nova legislação, a exigência para os food trucks será maior. “Já o food truck tem que entrar com alvará na SMIC, passar pela vistoria da vigilância sanitária, informar para eles qual é o cardápio, onde fica a cozinha e daí estar apto a participar do rodízio”, salienta.
Mesmo assim, ele acredita que, a partir da entrada em vigor da nova legislação, ocorrerá uma abertura para que mais caminhões possam trabalhar, o que resultará em benefícios para a cidade. Por exemplo, levar movimento para outros lugares que não sejam polos de circulação noturna atualmente, como a Cidade Baixa e a Padre Chagas.
“A gente não precisa ir para a Cidade Baixa. A gente tem condições de formar outros lugares, que hoje não são pólos porque não tem nada”, diz. “Tem lugares públicos que a gente passa de noite e estão vazios, porque o pessoal não tem coragem de ficar ali, não tem iluminação. A gente quer melhorar isso”, afirma.
Ele lembra ainda que, na verdade, o objetivo dos trucks não está necessariamente ligado à vida noturna da cidade. “Não é um movimento que puxa para a boemia. É uma coisa bacana, o público é de todas as idades. A nossa expectativa é que a cidade ganhe com algo diferente para comer, porque a gente no truck pode arriscar mais”, diz. “Essa é a grande vantagem do truck, a gente pode criar um menu diferente porque não estamos vinculados a restaurantes e aquela coisa de sempre ter o mesmo produto. O movimento tem muita criatividade, gente inspirada em fazer a rua ser um lugar melhor”, salienta.

“Queremos empregar”
Munir Zambrano já não nutre tanta expectativa em relação à aprovação da lei e prefere esperar para ver. Formado originalmente em Publicidade, ele migrou para a cozinha em 2008. Após experiências principalmente em restaurantes, começou a correr atrás das licenças para operar seu food truck a partir de 2012. Nessa época, recebeu o primeiro dos muitos “nãos” que ouviria da prefeitura.
Sua Trattoria Sobre Rodas, especializada em pratos italianos, só foi para a rua em 15 de agosto de 2014, data do primeiro jogo da Copa do Mundo em Porto Alegre, a convite da própria prefeitura, interessada em oferecer mais alternativas de alimentação para os turistas que visitavam a cidade durante o evento.
Durante o mundial, Zambrano chegou a levar seu truck para Rua da República, na Cidade Baixa. Durante cinco dias, vendeu bastante. Mas logo a EPTC bateu a sua porta, o multou e o tirou de circulação.
Desde então, ele vive de eventos. “A gente até consegue viver de eventos, mas não é a proposta. A gente faz eventos nos finais de semana e alguma coisa em dias da semana”, diz Zambrano. “Meu caminhão foi montando para trabalhar na rua, não para fazer evento”, salienta.
Sem ter a previsibilidade de quanto pode faturar por dia, ele conta que, quando chove muito, como ocorreu em maio, é complicado pagar as contas. “Tem custos de montar uma cozinha de produção, de embalagem, custos básico de água e luz. Só para manter duas geladeiras, eu gasto R$ 600 por mês. Eu parto de quase R$ 3 mil só de custos mensais”, diz. “E aí o cara acha que a gente está ganhando muito dinheiro, enquanto estamos apenas trabalhando para pagar as contas e reinvestir na empresa”.
Apesar de demonstrar ceticismo, a partir da nova legislação, especialmente pela possibilidade de operar com regularidade nas ruas da cidade, ele acredita que o negócio terá mais estabilidade. “A primeira coisa que eu pretendo fazer é contratar dois funcionários, que eu preciso”, diz, salientando, porém, que hoje é impossível contratar alguém. “A gente quer dar emprego, mas não tem como dar emprego sem saber o retorno disso”.
Pioneiro já pensa no pós-food truck
Em agosto de 2011, o termo food truck só era conhecido pelos porto-alegrenses que estavam antenados às tendências do que ocorria no exterior. Foi nessa época que começou a operar, em frente ao bar Ocidente, na Rua Gen. João Telles, o Sim Sala Bim, primeiro food truck da cidade – na verdade, uma kombi preta – e especializado em comida árabe.

“Não tinha nem food truck, nem kebab em Porto Alegre. E ainda na frente do Ocidente, que é um lugar com muita gente legal. O Sim Sala Bim ficou muito conhecido com muito pouco dinheiro”, diz Marcelo Libel, um dos sócios da empresa.
Além do sucesso de público inicial, Libel conta que os sócios foram procurados por vários investidores, inclusive para franquear a Sim Sala Bin, o que foi descartado por considerarem que não possuíam a experiência e estrutura necessária para isso.
Contudo, apesar do sucesso, eles não possuíam liberação da prefeitura para operar na rua – não possuem até hoje. Libel explica que, desde o início, tentou junto à Smic obter os alvarás necessários, buscou autorizações juntos aos prédios ao redor e, enquanto isso, conseguia prazo para continuar operando sem ser “despejado” pela EPTC.
“Eu não estava ilegal. Eu ia pegando prazo, prazo e prazo. Mas, como não tinham uma lei, eles iam empurrando. Ninguém queria assinar a liberação, mas também não sabiam o que fazer comigo. Então me deixavam”, diz Marcelo.
E é justamente essa falta de legislação que impede o mercado de prosperar, segundo Libel. “No momento em que ele não é legislado, enquanto tu não tens um ponto fixo, tu não tens como ter uma sustentabilidade real”, explica. “Espero que se torne atrativo a partir do ponto fixo novo e que fique assim por 10, 20 e 30 anos, porque é assim que se constrói um negócio”, complementa.
No final de 2013, o food truck da Sim Sala Bim teve de sair do espaço que ocupava quando a prefeitura estabeleceu que uma ciclovia deveria passar por ali. Os sócios resolveram, então, abrir uma loja, no mesmo local.
Além disso, a Kombi preta da Sim Sala Bim foi roubada em 2014, quando estava estacionada em frente à casa de Pablo Fronza, outro sócio da empresa. Felizmente, foi encontrada no dia seguinte no bairro Restinga. Atualmente, segundo Libel, ela está passando por uma transformação para se adaptar às novas exigências e dar mais conforto aos operadores.
Quando reabrir, Libel diz que o truck vai dar um impulso financeiro na empresa, mas ele já pensa além. Enxerga sua já famosa Kombi preta como um instrumento de marketing, para divulgar a marca e chegar a pessoas que não atinge no ponto fixo, que é onde ele coloca as fichas para a expansão de seu negócio.
“Agora, o truck vai representar metade do nosso faturamento. Mas, para dez anos, planejamos ter dez lojas e um food truck. Então, no longo prazo, não vai representar tanta coisa”, afirma.
Confira os principais itens da minuta da mudança na Lei 10.605/2008:
Segurança alimentar – É necessário fazer o curso de Boas Práticas e, também, seguir as normas da Equipe de Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) em relação ao local (cozinha) onde se prepara o alimento que é vendido no food truck.
Distância – O food truck deve ficar pelo menos a 50 metros de estabelecimentos de comércio localizados e de ambulantes.
Limites para atuação – Algumas áreas não poderão receber esta modalidade por serem locais de intenso comércio gastronômico consagrado na cidade, como o quadrilátero do Centro Histórico (já definido legalmente) e parte dos bairros Moinhos de Vento, Cidade Baixa e Ipanema (perímetros sugeridos pela proposta).
Gastronomia itinerante – Os food trucks ficarão em locais pré-estabelecidos, obedecendo a rodízios e respeitando dias e horários definidos.
Garantia para pequenos ambulantes – Os food trucks não poderão vender cachorro-quente, pipoca ou churros para não prejudicar quem já atua nessas atividades.
Segurança – Os locais escolhidos para sua instalação devem ter espaço para, no mínimo, três veículos. O objetivo é evitar problemas relacionados à segurança.
Eventos privados – O Executivo poderá autorizar o comércio ambulante de refeições na modalidade gastronomia itinerante -evento privado.
