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3 de dezembro de 2014
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20:10

Comissão Estadual da Verdade entrega relatório final nesta quinta-feira

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Documentos sobre o período de repressão no RS coletados pela comissão integrarão o relatório e também ficarão à disposição no Arquivo Estadual para a consulta|Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Documentos sobre o período de repressão no RS coletados pela comissão integrarão o relatório e também ficarão à disposição no Arquivo Estadual para a consulta|Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Jaqueline Silveira

Depois de dois anos de atuação, a Comissão Estadual da Verdade (CEV) concluiu seu trabalho nesta semana e entrega o relatório ao governador Tarso Genro (PT) na tarde desta quinta-feira (4), às 14h30min, no Salão Alberto Pasqualini do Palácio Piratini. Nesse período, a CEV apurou as graves violações aos direitos humanos ocorridas na época da ditadura no Rio Grande do Sul. Também foram apurados episódios envolvendo gaúchos que militavam em outros Estados. Criada para auxiliar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a CEV investigou as violações ocorridas entre de 1º de janeiro de 1961 e 5 de outubro de 1988.

Presidente da comissão gaúcha, Carlos Guazzelli explica que foi analisado um período anterior ao Golpe Militar de 64 porque já ocorriam violações aos direitos humanos na época, principalmente na Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola. “Servidores públicos e brigadianos brizolistas foram perseguidos no governo do Meneghetti (Ildo Meneghetti), em 61”, esclarece Guazzelli. Já o limite de 5 outubro de 1988, segundo ele, foi devido ao momento da consolidação  da redemocratização do país com a promulgação da Constituição Federal.

No relatório final, constam documentos, atas, cópias dos depoimentos e vídeos das audiências públicas. Ao todo, foram realizadas nove audiências públicas e 30 internas, em que as sessões de depoimentos ocorreram na própria sede da Comissão Estadual da Verdade. Além disso, a CEV ouviu cerca de 70 pessoas, somando 81 depoimentos, já que algumas concederam mais de um relato, um em audiência pública e outro, na própria comissão. Desde setembro, conforme Guazzelli, os dados, como nome dos desaparecidos e tipo de violação, estão sendo transmitidos à Comissão Nacional da Verdade, que apresenta seu relatório no dia 10 de dezembro.

Caso das Mãos Amarradas

A Comissão Estadual da Verdade priorizou seu trabalho nas principais violações ocorridas no Estado e dividiu-as em duas fases do período da ditadura. O Caso das Mãos Amarradas, que envolveu a morte do sargento Manoel Raimundo Soares, é a primeira citação. Integrante do Movimento dos Sargentos contra o Regime Militar, ele foi encontrado morto em 24 de agosto de 1966, boiando no Rio Guaíba, com as mãos amarradas às costas. O segundo reconstitui a Repressão aos Grupos de 11, criados para discussão política durante a Campanha da Legalidade por Brizola e se concentraram no noroeste do Estado. “Esses grupos foram tratados de guerrilheiros, mas não eram. Foram barbaramente torturados na primeira fase da ditadura, eram chamados de comunistas”, afirmou Guazzelli. Para fechar a primeira fase, que foi de 1964 a 1966, a CEV trata da Repressão aos Militares, que envolveu representantes da Brigada Militar, Exército, Marinha e Aeronáutica.

Em setembro, a comissão estadual em parceria com a nacional realizou audiência pública no Piratini para ouvir militares| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Em setembro, a comissão estadual, em parceria com a nacional, realizou audiência pública no Piratini para ouvir militares perseguidos| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Repressão aos grupos clandestinos na Capital

A segunda fase da repressão, de 1º de janeiro de 1970 a 5 de outubro de 1988, é aberta por Porto Alegre, Anos de Chumbo, período em que a repressão se voltou para grupos clandestinos, integrado por estudantes, operários, profissionais liberais e funcionários públicos. À época, segundo o presidente da Comissão Estadual da Verdade, foram fechados todos os espaços de manifestação política e os sindicatos funcionavam sob intervenção militar. Também nesse período ocorreu a criação da Arena e do MDB. “Porto Alegre, Anos de Chumbo pegam as prisões massivas”, conta Guazzelli.

Todos os militantes que se levantaram contra a ditadura, de acordo com ele, eram considerados pelos repressores como integrantes da luta armada, apesar de muitos não pertencerem a esses grupos. “Alguns eram da luta armada, mas outros não”, revela o presidente da CEV. Entre os grupos armados que atuaram no Rio Grande do Sul, estavam a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var Palmares), da qual fizeram parte a hoje presidente Dilma Rousseff (PT) e seu ex-marido Carlos Araújo, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Carlos Lamarca, e o M 3G (Marx, Mao, Marighella e Guevara), comandado por Edmur Péricles de Camargo. Os dois primeiros atuavam pelo país e o último, somente em solo gaúcho.

Coronel Malhães atuou no RS

No período em que ocorreram as principais ações dos grupos de luta armada no Rio Grande do Sul, entre março e abril de 1970, veio para o Estado o coronel do Exército Paulo Malhães para investigar os casos. Além de apurar a atuação dos grupos, ele treinou os agentes locais da repressão a aplicarem a máquina de choque elétrico, introduzida pelo coronel no Estado. “Malhães introduziu uma série de torturas, preparou o DOPS (Departamento de Operações Políticas e Sociais) e liquidou todos os organismos que atuavam na luta armada”, resume Guazzelli, sobre o trabalho repressor do militar em solo gaúcho. Só no Estado, ele pessoalmente teria torturado 12 pessoas. No início deste ano, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Malhães admitiu que perseguiu, torturou e matou militantes que se opuseram à ditadura. Um mês depois, em abril de 2014, ele foi assassinado em sua residência, no Rio de Janeiro. A investigação apontou a hipótese de latrocínio (roubo com morte).

Foco no PCdoB

Depois de desarticulados os grupos de luta armada, relata o presidente da Comissão Estadual da Verdade, os agentes da repressão se voltaram para militantes do PCdoB e da Ação Popular, quando foi o preso, por exemplo, o hoje deputado estadual Raul Carrion (PC do B).  No Estado, 20 lideranças políticas foram presas nessa época. De acordo com Guazzelli, muitos dos depoimentos e documentos reunidos pela Comissão Estadual da Verdade são desse período.

Ao longo do trabalho, comissão coletou muitos documentos entregues por familiares de perseguidos| Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Ao longo do trabalho, CEV coletou muitos documentos entregues por familiares de perseguidos| Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Também constarão do relatório da CEV as dezenas de prisões ocorridas no 2º Regimento de Cavalaria, em São Borja, no segundo semestre de 1969. “Essa história e ninguém conhecia”, afirma Guazzelli, acrescentando que o caso veio à tona graças à documentação relevada por um dos presos, o advogado Dino Lopes, que procurou a comissão. Na época, conforme o presidente da CEV, Lopes foi defendido pelo advogado Adelmo Genro, pai do governador Tarso Genro.

Cerco militar ao acampamento sem-terra

Por último, está citado no documento o cerco militar, em 1981, ao acampamento dos sem-terra na localidade conhecida como Encruzilhada Natalino, próxima aos municípios de Sarandi e Ronda Alta. No local, 1,6 mil famílias exigiam assentamento. “Baixou o Exército lá comandado pelo major Curió, que preparou o certo”, conta Guazzelli, referindo-se ao major do Exército Sebastião de Moura. Ele acrescenta que o depoimento foi dado pelo responsável pela organização dos trabalhadores, no caso o Padre Arnildo Fritzen. “Houve repressão física, mas, principalmente, repressão psicológica”, relata o presidente. Devido à pressão, segundo ele, 600 famílias deixaram o local e foram para o Mato Grosso.  O restante permaneceu em Encruzilhada e conseguiu ser assentado.

Documentos sobre Rubens Paiva

Já os documentos sobre o caso do deputado Rubens Paiva, encontrados no Rio Grande do Sul durante a investigação do assassinato do coronel reformado do Exército Júlio Miguel Molinas Dias constarão do material elaborado pela Comissão Nacional da Verdade. Responsável pelo Departamento de Operações Internas do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) no Regime Militar, Molinas foi morto a tiros em novembro de 2012. Na residência dele, a Polícia Civil encontrou documentos que comprovam a prisão de Paiva, que até então era negada pelo Exercito. Depois de concluída a investigação sobre o assassinato de Molinas durante um assalto, os documentos foram entregues pela Secretaria de Segurança Pública à Comissão Estadual da Verdade, que os repassou à nacional. O material encontrado na capital gaúcha permitiu que a CNV encontrasse no Arquivo Nacional novos documentos que comprovam a morte de Rubens Pais e também os autores do crime.  “A Comissão Estadual da Verdade foi importante para garantir a autenticidade e a originalidade do documento”, explica Guazzelli, sobre a contribuição da CEV nesse caso.

Presidente da comissão, Guazzelli diz que será pedido a permanência da CEV para continuar as apurações das violações| Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Presidente da comissão, Guazzelli diz que é importante a permanência da CEV para continuar as apurações sobre as violações| Foto: Filipe Castilhos/Sul21

CEV pedirá continuidade do trabalho

Além de reconstituir os principais episódios de violações dos direitos humanos no Estado na época da ditadura, a CEV fará recomendações no relatório final. Entre elas, a reinstitucionalização da Comissão Estadual da Verdade, que foi criado por decreto pelo governo do Estado para funcionar com prazo determinado. Os cinco integrantes da CEV sugerem sua criação por lei e com caráter permanente. “Nós entendemos que o trabalho tem de continuar para apurar graves violações da ditadura, como o genocídio dos índios recente e o tratamento criminoso contra os homossexuais”, justificou Guazzelli.

Também fazem parte das recomendações a revisão da Lei de Anistia, a desmilitarização das polícias, a inclusão nos currículos de História do tema “Memória e Verdade” e a implantação de uma política de comunicação de Justiça de transição nos órgãos públicos para dar tratamento adequado ao assunto. Ainda será recomendada a responsabilização de torturadores ao Ministério Público Federal (MPF), órgão encarregado de mover essas ações. Cópia do relatório será encaminhada, além do governo do Estado, à Comissão Nacional da Verdade, ao MPF, entrou outros órgãos. O material também será enviado aos arquivos nacional e estadual e poderá ser consultado pela população.

 

As principais violações no Estado e que estarão no relatório

 Caso das Mãos Amarradas – Integrante do Movimento dos Sargentos contra o Regime Militar, Manoel Raimundo Soares foi encontrado morto em 24 de agosto de 1966, boiando no Rio Guaíba, com as mãos amarradas às costas

Repressão aos Grupos de 11 – Grupos criados para discussão política durante a Campanha da Legalidade por Leonel Brizola e se concentraram no noroeste do Estado

Repressão aos Militares – Perseguição aos militares da Aeronáutica, Marinha, Exército e Brigada Militar

Porto Alegre, Anos de Chumbo – Repressão aos grupos clandestinos formados por estudantes, operários, profissionais liberais e servidores públicos

Prisões em São Borja – Dezenas de prisões ocorreram no 2º Regimento da Cavalaria do município

Cerco Militar ao Acampamento Sem-Terra – Major Curió comandou o cercao ao acampamento na localidade de Encruzilhada Natalino, próxima a Sarandi e Ronda Alta, onde 1,6 mil famílias cobravam assentamento

 

As recomendações do relatório

-Reinstitucionalização da Comissão Estadual da Verdade para funcionar em caráter permanente. A CEV que foi criada por decreto pelo governo do Estado para funcionar com prazo determinado

– Revisão da Lei de Anistia

– Desmilitarização das polícias

– Implantação de uma política de comunicação de Justiça de transição nos órgãos públicos para dar tratamento adequado ao assunto

– Inclusão nos currículos de História do tema Memória e Verdade

– Responsabilização de torturadores ao Ministério Público Federal (MPF), órgão encarregado de mover essas ações

 

Números da ditadura no país e no Estado

– No Brasil, cerca de 60 mil torturados e 500 mortos

– No Rio Grande do Sul, estima-se 50 mortos e desaparecidos

 

Membros da Comissão Estadual da Verdade

Carlos Frederico Guazzelli – Defensor público

Aramis Nassif – Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado

Celi Pinto – Professora do curso de História e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Jacques Alfonsin – Procurador aposentado do Estado e advogado

Oneide Bobsin – Professor de Ciências da Religião


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