
Samir Oliveira
A prefeitura de Eldorado do Sul, município da Região Metropolitana de Porto Alegre, firmou no início deste ano letivo um convênio com a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) para utilização de material pedagógico nas aulas de Ensino Religioso nas escolas da rede pública da cidade. Com isso, os mais de 4,5 mil alunos das 12 escolas municipais receberão, cada um, livros que estudam os textos da Bíblia.
Ao todo, são nove publicações – uma para cada ano letivo –, que abordam, respectivamente, os seguintes aspectos: criação (da vida na Terra), família, pessoas da Bíblia, discípulos, vida de Jesus, ensinamentos de Jesus, povo de Deus, mandamentos e respostas ao amor de Deus.
A iniciativa partiu da própria SBB, que procurou o município após tomar conhecimento de que alunos da escola La Hire Guerra haviam incendiado parte da estrutura do estabelecimento. No dia 20 de novembro de 2013, integrantes da Sociedade Bíblica foram até o colégio e presentearam os alunos com calçados, além de anunciarem a doação de uma “Biblioteca Bíblica” à instituição.

No dia 29 de março deste ano, a prefeitura realizou uma reunião com professores para explicar o projeto de parceria com a SBB. “Informaram que os professores de religião teriam que trabalhar com os livros fornecidos por eles”, relata um servidor da rede municipal de Eldorado.
Ele comenta que alguns professores do município não concordam com o convênio, por considerar que fere a laicidade do Estado – assegurada pela Constituição Federal de 1988 – e centraliza o Ensino Religioso em apenas uma crença. “Alguns professores consideram que isso não é correto, porque o Ensino Religioso precisa ser laico. Os livros falam sobre valores bem conservadores da Bíblia”, afirma.
O professor lamenta, por exemplo, que alunos de seis anos de idade, do 1º ano do Ensino Fundamental, tenham que estudar um livro que ensina a história da criação da vida na terra a partir de preceitos bíblicos. “No sexto ano, os alunos aprendem nas aulas de História o surgimento do planeta Terra e da humanidade. Como iremos trabalhar a ciência na História se desde o primeiro ano estão ensinando o criacionismo para eles?”, questiona.
As publicações seguem um modelo em que apresentam alguma passagem bíblica – traduzida para uma linguagem de fácil compreensão – seguida por citações literais do livro no rodapé das páginas e por exercícios para os alunos, baseados em interpretações das leituras.

Em um trecho do livro destinado aos alunos do 8º ano, a publicação explica como Adão e Eva foram expulsos do paraíso após provarem o fruto proibido e cita uma frase que Deus teria dito à mulher como punição pela desobediência. “Vou aumentar seu sofrimento na gravidez, e com muita dor você dará à luz filhos”.
O mesmo livro traz passagens em que diz que o homem não deve cobiçar “a mulher, os escravos e os gados do outro”. E também conta a história da “mulher de Potifar”, que tentava seduzir o escravo de seu marido. A parábola é utilizada para ensinar aos alunos que “o sexo, quando praticado fora do casamento ou entre solteiros, pode trazer consequências desagradáveis, tais como: um casamento desfeito, uma gravidez não desejada, doenças venéreas, interrupção dos estudos, etc.”. O livro ainda traz um alerta aos estudantes: “Vivamos em paz e fujamos das armadilhas na área da sexualidade”. Em seguida, pede que os jovens pesquisem se existem “casamentos que são desaconselháveis cientificamente” e se “a legislação brasileira proíbe algum tipo de casamento”.
Sociedade Bíblica diz que não promove doutrinação e foca em fortalecimento de vínculos familiares
Para a Sociedade Bíblica do Brasil, o projeto “Estudando com a Bíblia”, desenvolvido em pelo menos 20 municípios do país, não promove doutrinação ou evangelização de estudantes. A entidade frisa que a iniciativa tem o objetivo de fortalecer vínculos dos alunos com suas famílias e estimular reflexões nas comunidades a partir de ensinamentos bíblicos.

“Às vezes, acham que vamos converter as crianças ou fazer cultos nas escolas. Apenas difundimos a Bíblia para fortalecer vínculos e valores familiares. Temos objetivos específicos na proteção de crianças e adolescentes, na complementaridade das ações entre a família e a comunidade, no incentivo a rodas de conversas entre pais e alunos”, explica Emilene Oliveira Araújo, gerente de Projetos Sociais da SBB.
Ela ressalta que a proposta pedagógica dos nove livros distribuídos nas escolas tem o objetivo de trazer as reflexões do texto bíblico para dentro do cotidiano dos alunos. E assegura que a parceria com a SBB não impede que a rede escolar adote ou leve outros materiais didáticos para as aulas. “Antes de implantar o projeto, sempre aconselhamos que o município converse com pais e com líderes religiosos. Deixamos claro que não estamos estudando a Bíblia, mas estudando com a Bíblia. É um livro, assim como poderíamos estudar outros livros. As religiões são muitas e tem cidades que adotam nosso material como base, mas buscam também outras atividades”, pondera.
Emilene recorda, ainda, que a legislação estabelece como facultativo o ensino de Religião nas escolas públicas, estipulando que, caso o aluno não deseje frequentar essas aulas, a escola deve oferecer outras atividades. “Mas é difícil que isso aconteça. Nos nossos projetos, temos geralmente mais do que 99% de aceitação”, informa.
Associação de Ateus diz que irá recorrer ao Ministério Público contra o projeto
Presidente da Associação Brasileira dos Ateus e Agnósticos (ATEA), Daniel Sottomaior afirma que a entidade irá tomar medidas jurídicas contra a iniciativa da SBB, por considerar que fere o princípio da laicidade do Estado. “É um interesse sectário que só beneficia as próprias pessoas dessa religião. Não é um interesse meramente ideológico, é econômico”, critica.
De acordo com a Socidade Bíblica do Brasil, em municípios pequenos, o projeto “Estudando com a Bíblia” é totalmente custeado pela entidade, com a doação integral dos livros – como ocorre em Eldorado do Sul. Porém, em municípios maiores, a entidade realiza a venda do material para os órgãos públicos.
“Esse tipo de iniciativa serve à religião, que enriquece às custas do ensino público e sequestra a máquina do Estado para alimentar seus próprios interesses”, dispara Sottomaior. Ele também critica a conivência das prefeituras, que abrem espaço a esse tipo de convênio.
“Fazem isso, em parte, para responder a interesses de suas bases políticas. Isso não é educação, é doutrinação. O que estão fazendo é doutrinar crianças”, afirma o presidente da ATEA. Para ele, o Ministério Público (MP) deve ser acionado para se posicionar diante de casos como o de Eldorado. “A única maneira de conseguir parar uma iniciativa dessas é com a força do MP”, avalia.
“A Bíblia tem o pilar da formação da nossa cultura”, diz secretário de Educação de Eldorado
O secretário de Educação de Eldorado do Sul, Tadeu Rossato Bisognin, considera que o projeto em parceria com a Sociedade Bíblica do Brasil não fere a laicidade do Estado brasileiro, pois trabalha os textos a partir de uma perspectiva histórica e cultural, sem doutrinação religiosa. “A Bíblia é algo universal. Toda a formação ocidental está baseada no tripé: ética hebraica, pensamento grego e Direito romano. Nessa ética, a Bíblia tem o pilar de formação da nossa cultura. É algo mais cultural do que religioso”, avalia.
Ele ressalta que se trata de um projeto piloto, conveniado por apenas um ano, que está sujeito à avaliação permanente da prefeitura. E informa que, em Eldorado do Sul, não existe nenhum caso em que uma família tenha solicitado que seus filhos não assistam às aulas de Ensino Religioso na rede pública municipal.