

Luís Eduardo Gomes
São 11h da manhã de segunda-feira (19). Um carro se aproxima da entrada do Ginásio Tesourinha, na Av. Érico Veríssimo, em Porto Alegre. Há uma faixa especial, separada por cones, para ele. Há também dois voluntários já esperando no meio na rua. O motorista para em frente ao ginásio, mas nem precisa descer. Só aciona o botão que libera o porta-malas e os voluntários já pegam uma sacola grande, com roupas, e colocam em um carrinho, que já estava aguardando de prontidão na beira da calçada, manuseado por outra pessoa que já o leva para dentro do ginásio. No caminho, ele cruza com outro carrinho que já está voltando para ser abastecido pelos dois voluntários que descarregam outro carro, desta vez os donativos são cestas básicas.
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Desde a semana passada, quando a prefeitura de Porto Alegre montou no Tesourinha um centro municipal de recebimento de doações, o movimento é constante. Das 8h até as 22h, muitas vezes até depois disso, carros chegam em frente ao local, param, entregam as doações. Na maioria dos casos, não precisam parar mais do que por 1 minuto. Entregam e já seguem seu caminho. Logo em seguida vem outro. E assim acontece centenas de vezes por dia, de modo que é praticamente impossível fazer o controle de quantas pessoas estão doando. Há ainda pessoas que vêm de bicicleta e até a pé para entregar donativos.
A Defesa Civil diz que, desde o final de semana dos dias 10 e 11 de outubro, quando as primeiras famílias de desabrigados tiveram que deixar suas casas nas ilhas de Porto Alegre e foram encaminhadas para o ginásio, até a manhã desta segunda, já tinham sido recebidas mais de 20 toneladas de alimentos e 15 mil peças de roupas. Ao menos metade desses produtos já foi doada.

O processamento das doações recebidas também é constante. Todo material que chega é imediatamente levado para uma área de triagem, em que voluntários fazem a primeira seleção do material. Depois, a doação é separada por tipo e encaminhada para que outros voluntários montem kits e encaminhem para áreas específicas do ginásio que os armazenam. Nas arquibancadas, por exemplo, é possível ver milhares de caixas de leite ao lado de galões de água, que por sua vez são vizinhos de materiais de limpeza. Sob as arquibancadas, há grandes áreas de seleção de roupas.
Dependendo da demanda, as doações nem param muito tempo no Tesourinha, já são colocadas em veículos – muitos deles cedidos por órgãos da Prefeitura como ônibus da Carris e caminhões do Demhab – e encaminhadas para atender as necessidades de quem precisa.
A maior parte desse processo de administração das doações, que segue quase um modelo fordista de separação do trabalho, é orquestrado por voluntários, seja por funcionários da Prefeitura que doam seus horários de folga após o turno de trabalho – há muitos que auxílio ainda vestindo uniformes do DMLU, Guarda Municipal, Carris, Fasc, etc. – ou por pessoas que se sensibilizaram com as notícias sobre os estragos causados pelas enchentes e resolveram ajudar.

Doação de tempo
Vera Aguiar, aposentada e integrante do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), é uma dos mais de 100 voluntários que estão trabalhando neste processo há cerca de 10 dias. Por ser “elétrica”, como ela mesma brinca, e por passar cerca de 14 horas por dia no Tesourinha, Vera acabou assumindo o comando do setor de triagem de roupas. Ela diz que, desde a semana passada, deixou de lado suas atividades no MTG, onde atua como avaliadora cultural, para se dedicar exclusivamente a este trabalho. “Avisei para que não contem comigo enquanto aqui estiverem precisando de mim”, disse.
Há mais de 30 anos trabalhando no serviço comunitário, ela diz que nunca tinha visto tanta doação de roupas de crianças. “Pela 1ª vez na vida de voluntário que eu vejo esse povo gaúcho doar tanta roupa de crianças”, afirma, salientando que, em geral, pais e mães vão deixando essas peças para os filhos menores ou para parentes. “E é o que mais falta”, complementa, emocionada. Ela diz que chora todos os dias, muitas vezes de emoção ao ver as ações das pessoas, mas também com o sofrimento das crianças afetadas pelas chuvas.
Isabele Cristina da Silva, funcionária da Secretaria Municipal de Esportes (SME), é outra que se voluntariou em meio à tragédia. Ela trabalhava nesta segunda retirando as doações dos carros. Isabele que diz que, desde quinta-feira, está ajudando no Tesourinha em seu tempo livre. “O tempo que tu tem, tu dedica. Porque poderia ser eu aqui”, diz, em um raro intervalo – que não chegou a um minuto – entre um carro e outro parar para doar produtos. “Mas vale a pena”.
O mesmo sentimento é compartilhado por Vera Aguiar, que comemorou seu aniversário neste domingo, passando o dia no local. “Chego em casa e durmo tranquila. Com o sentimento de missão cumprida”, diz. “Mas daquele dia só”, faz questão de ressaltar.
Segundo a Defesa Civil, cerca de 50% das ligações recebidas pelo gabinete de emergência montado nas antigas cabines de transmissão do Tesourinha são de pessoas interessadas em saber como podem fazer para se tornar voluntários. Apesar da procura ser grande, a demanda também é constante. Além de ajuda no processamento de doações, também é considerada bem-vinda a ajuda de pessoas que desejam realizar atividades com as famílias abrigadas no local. Nesta manhã, professores realizaram uma oficina de contação de histórias para as crianças.

Mais de uma semana morando no Tesourinha
As doações recebidas no ginásio são distribuídas para todas as famílias atingidas pelas enchentes na cidade. Além das abrigadas no próprio Tesourinha, são encaminhadas para dois abrigos na Ilha da Pintada, outros dois na Ilha do Pavão e outro na Ilha das Flores. Dado o volume de doações, as sobras ainda estão sendo enviadas para outras cidades da Região Metropolitana que também sofreram com enchentes, como Eldorado do Sul.
Para os que estão abrigados no Tesourinha, o processo de entrega de alimentos, roupas e materiais de higiene e limpeza também é bem estruturado. Todos os dias pela manhã, técnicos da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) passam entre os colchões das mais de 230 pessoas que estão abrigadas no local e perguntam sobre suas necessidades. Os desabrigados então recebem uma listinha de produtos e passam nos setores de triagem de cada item específico. Eles também recebem ao menos cinco refeições por dia e tem atendimento de saúde – um posto foi montado em uma das áreas do ginásio.

Jofrei Derunges, 66 anos, morador da Ilha Grande dos Marinheiros – de onde vem a maioria das famílias que estão abrigadas no Tesourinha -, conta que está há nove dias no ginásio. “Aqui está uma beleza. Estamos sendo bem tratados, bem alimentados”, afirma.
Contudo, sua preocupação vem à tona quando começa a falar da situação de sua casa. Dono de uma mecânica na ilha, ele diz que há pelo menos 12 carros de clientes e duas motos sob a água. “A gente não dorme de noite, porque se preocupa”, diz, salientando que ouviu rumores de que pessoas estariam indo de barco saquear casas alagadas. “A minha casa está 2 m embaixo d’água. Por isso a Defesa Civil não me deixa ir lá ver como está a situação. Dizem que estão saqueando, mas eu não tenho como olhar”.
Por outro lado, José Luís, 53 anos, que mora na entrada da ilha, diz que, como a água nesse ponto está batendo na cintura, ao menos conseguiu ir até sua casa para ver o estrago. Vigilante e trabalhador autônomo, ele diz que todos os seus materiais de trabalho ficaram debaixo d’água. “Está tudo parado. Os objetos dentro de casa, está tudo perdido”, diz.
Ele também diz que está sendo bem tratado e recebendo muitas doações de roupas, mas afirma que também seria necessária a doação de móveis e eletrodomésticos para repor o que foi perdido na enchente. “Não adianta nada ganhar um mundaréu de roupas e não ter guarda-roupa”.
Para quem deseja doar materiais de construção, móveis, eletrodomésticos e lonas para ajudar na reconstrução das casas, a Prefeitura solicita que estes produtos sejam entregues na sede do Demhab (av. Princesa Isabel, 1115). De acordo com a Defesa Civil, quando o nível do Guaíba baixar, um grupo de trabalho da Prefeitura irá fazer a gestão dessas doações e do auxílio para a recuperação de moradias.
Quem também perdeu tudo por causa das enchentes das últimas semanas foi Cássia Andreia de Oliveira. Ela está desde o dia 10 de outubro no Tesourinha com os quatro filhos, incluindo uma menina de apenas seis meses. Essa é a segunda vez em menos de quatro meses que ela é obrigada a deixar sua casa por causa da cheia do Guaíba. Em julho, a moradia também tinha sido atingida.
“Da outra vez deu para recuperar, mas dessa a gente perdeu tudo”, disse, salientando que apenas foi possível salvar duas máquinas novas – “um tanquinho e uma centrífuga” -, das quais ainda estava pagando as prestações porque o marido de uma vizinha conseguiu pendurá-los, com uma corda, no teto. O que ficou no chão foi perdido. “A vizinha foi lá olhar e disse: ‘teu assoalho já era’. O que eu salvei na outra, perdi nessa”, diz.
As chuvas das últimas semanas fizeram com que o nível do Guaíba subisse há quase dois metros acima do normal. No Cais Mauá, atingiu o pico de 2,94 m neste domingo, o maior já medido desde a enchente de 1941. Segundo o Centro Integrado de Comando de Porto Alegre (CEIC), a média histórica para o mês de outubro é de 0,97 m. Já na ilha da Pintada, o maior nível foi registrado no dia 12, quando atingiu 2,45 m – ontem foi a 2,40 m -, também quase dois metros acima da média, 0,47.
Moradora há nove anos da ilha dos Marinheiros, Cássia conta que nunca tinha visto enchentes parecidas. “O importante é que meus filhos estão bem”.








