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17 de janeiro de 2014
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19:00

Professor da USP, ex-detento: “Na prisão, tudo é mediado pela violência”

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Roberto Silva:  "Não se pode esperar que a educação em prisões faça milagres. Não é responsabilidade da educação, por exemplo, melhorar os índices penitenciários, diminuir motins, mortes, rebeliões e violência" | Foto: Rafael Stedile /Brasil de Fato
Roberto Silva: “Não se pode esperar que a educação em prisões faça milagres. Não é responsabilidade da educação, por exemplo, melhorar os índices penitenciários, diminuir motins, mortes, rebeliões e violência” | Foto: Rafael Stedile /Brasil de Fato

Mariana Desidério
Brasil de Fato

As prisões brasileiras são dominadas pela lógica da violência e por valores como o machismo e a lei do mais forte. É o que diz Roberto da Silva, especialista em educação e sistema prisional.

Professor da Faculdade de Educação da USP, Silva fez do mestrado à livre-docência nessa universidade. O tema de suas pesquisas tem tudo a ver com sua trajetória de vida. Ele foi interno da antiga Febem e já esteve na prisão, condenado por crimes diversos.

Nesta entrevista ao Brasil de Fato SP, o professor fala sobre o abandono do sistema prisional brasileiro (o último exemplo são os casos de barbárie no Maranhão) e a política de encarceramento em massa que vigora no país atualmente. Para ele, não educação que vai salvar o sistema prisional. Educação não faz milagres, afirma. Leia a entrevista:

Pergunta – Temos visto situações extremas no Maranhão, como a decapitação de presos. O que isso revela sobre o sistema prisional brasileiro?
Roberto da Silva –
 Esses motins e rebeliões revelam exaustão do sistema. Quando os presos não são ouvidos, não têm canais de comunicação com as autoridades, com a Justiça ou com o sistema penitenciário, quando se esgotam as possibilidades de negociação, o último recurso para o qual eles apelam são essas manifestações extremadas de violência. Temos de aprender a reler isso como um pedido de socorro.

P – Por que a situação chegou a esse ponto por lá?
Roberto da Silva –
Não sei dizer sobre a situação específica de lá. O que se alega é a presença de facções criminosas. Mas mesmo a existência dessas facções mostra o abandono das prisões por parte das autoridades. As medidas que o Estado resolveu adotar agora, após reuniões emergenciais, são as medidas corriqueiras que já deveriam ter sido tomadas há muito tempo. É o abandono do sistema penitenciário que leva a essas manifestações de violência.

P – Um dos principais problemas é a superlotação. Por que o Brasil prende tanto?
Roberto da Silva –
É a lógica do encarceramento em massa de segmentos extremamente específicos. Esse perfil da população prisional no Brasil, de ser majoritariamente jovem, de baixa escolaridade, baixa qualificação profissional, afrodescendente e moradora de periferia mostra a seletividade do sistema de Justiça. Como o poder público não pode alcançar essas populações com as políticas públicas, com os serviços básicos de educação, saúde, moradia e tudo o mais, o que se faz é armar uma grande teia do sistema policial e do sistema de Justiça para pegá-los diante de qualquer infração.

P – Mas são pessoas que cometeram crimes, não?
Roberto da Silva –
De 550 mil presos no sistema penitenciário, se você somar o valor monetário das infrações, isso é insignificante. Não é nada diante de uma falcatrua que se faz na prefeitura, de um desvio de verba do metrô. Eles não estão presos porque roubaram da sociedade e deixaram pessoas mais pobres. São pessoas que, diante da condição de miséria que vivenciam, em algum tipo de infração eles iriam cair.

P – Investir em educação pode evitar casos como esse?
Roberto da Silva –
Não se pode esperar que a educação em prisões faça milagres. Não é responsabilidade da educação, por exemplo, melhorar os índices penitenciários, diminuir motins, mortes, rebeliões e violência. O que se quer da educação dentro da prisão é o que a educação já faz fora. Que ela qualifique as pessoas para competir em condições de igualdade pelas oportunidades que a sociedade oferece, para fazer seu projeto de vida. O que o preso vai fazer dessa educação, se vai deixar de ser criminoso ou não, isso não é papel da educação.

P – O acesso dos presos à educação avançou nos últimos anos?
Roberto da Silva –
Eu considero o sistema penitenciário a última grande fronteira da educação. Ele estava à margem da política educacional. Isso começou a ser construído nos últimos cinco anos e vem caminhando. O próprio entendimento de que educação é um direito do preso, e não um privilégio, já é um avanço. Durante muito tempo, mesmo que o preso quisesse estudar, não havia oportunidade. Hoje, quem quiser estudar tem essa oferta. Nem sempre ela é fácil de ser acessada e, quando é acessada, nem sempre é a mais adequada. Mas querendo estudar, algum meio há. Hoje, os diversos programas federais, como Pronatec, Prouni e Sisu são acessíveis ao preso.

P – A educação nas prisões é igual à educação regular?
Roberto da Silva –
Nas prisões, a abordagem mais adequada é, em vez de educação escolar, uma educação social. Ou seja, habilitar essas pessoas para voltar a viver de acordo com as regras que a sociedade aceita. São pessoas que só acreditam no poder da arma, da ameaça e da violência. Não tem conversa, a única coisa que sabem fazer é enfiar uma arma na cara dos outros. Se ele for para uma situação de escola, de fábrica, de escritório, de convivência social, ele se sente deslocado.

P – Quais dificuldades um egresso encontra para fazer seu projeto de vida fora da prisão?
Roberto da Silva –
Primeiro, é o longo tempo de permanência do sujeito no cárcere. No Brasil se fica em média oito anos na prisão. Também pesam os antecedentes criminais, a baixa escolaridade e a falta de qualificação profissional. Além disso, a maioria dos presos tem dificuldade, por exemplo, com moradia. E é um problema que não é abordado no âmbito das políticas de atendimento a presos, egressos, ou às famílias deles.

P – Existe uma resistência da sociedade quando se fala em política de auxílio a presos ou egressos?
Roberto da Silva –
As próprias autoridades não informam corretamente a população sobre o que significa ser preso no Brasil. Por exemplo, mais de 90% dos presos são desempregados ou ex-empregados. Ou seja, pessoas que saíram da sua terra natal, vieram para os grandes centros e aqui não conseguiram organizar sua vida. Para esses mais de 90%, moradia e emprego resolveriam o problema. No caso dos presos que trabalhavam, eles adquiriram direitos como qualquer trabalhador. Eles têm o auxílio desemprego, têm direito a fundo de garantia. Os formadores de opinião tratam muito mal essa questão, como se isso fosse um benefício, uma regalia dada ao preso. Não é. É direito dele.

P – Como você avalia a política prisional do estado de São Paulo?
Roberto da Silva –
Aqui, a lógica do PSDB nos últimos 16 anos tem sido o aparelhamento das polícias e da inteligência policial, o que fez com que o sistema penitenciário passasse de 43 prisões, há 15 anos, para 150 hoje. Constroem-se mais prisões no estado de São Paulo do que escolas e hospitais. Agora o estado já não está dando conta de construir prisões. Diante dessa dificuldade, vem o apelo muito pernicioso do mercado. Ou seja, prisão acaba virando um negócio. Além de ser um instrumento de controle da segurança pública por parte do estado.

P – Como assim?
Roberto da Silva –
A gente não tem dúvida de que o Estado, falando aí de poder executivo, legislativo e judiciário, eles usam deliberadamente o sistema de internação de adolescentes e o sistema de execução penal para aprimorar os próprios mecanismos de controle da sociedade. Diante de situações políticas desfavoráveis, nada melhor do que fomentar uns motins, umas rebeliões por aí, para o Estado aumentar o controle policial e mostrar a sua força.

P – Você acha que isso é deliberado?
Roberto da Silva –
Sim. É deliberado. Não é ocasional.

P – Você passou um período preso na década de 1980. O sistema prisional mudou de lá para cá?
Roberto da Silva –
A cultura penitenciária continua a mesma. Essa cultura possui um tripé de sustentação, que é composto em primeiro lugar pela excessiva tolerância ao uso da violência. A violência é utilizada para mediar todas as relações: entre presos e presos, presos e funcionários, funcionários e sistema, e assim por diante. Depois vem a excessiva tolerância à corrupção. E não estou falando da corrupção monetária, é a corrupção dos costumes e dos valores. O machismo, o uso da força, a hombridade, a prevalência do mais forte, esses valores ainda são predominantes dentro da prisão. Isso está na base da dificuldade que o egresso tem de depois voltar a se adaptar em sociedade.

P – E o terceiro ponto?
Roberto da Silva –
O terceiro é a prevalência da regra do prêmio e do castigo. Em vez de prevalecer a lógica do direito, dentro da prisão os direitos são negociados. Ou seja, se permite aos presos dominar outros presos, se permite dominar espaços e territórios dentro da prisão. Sempre em troca de algo. Isso faz com que, dentro da prisão, certos presos se sintam muito importantes, quando em liberdade eles não tinham importância nenhuma.

P – Você estudou direito na prisão e, depois de sair, tornou-se professor da USP. Como foi esse caminho?
Roberto da Silva –
O estudo veio pela necessidade de entender a circunstância de vida que se está no momento, entender a lógica de organização da sociedade, a estrutura e o funcionamento das leis e do sistema de justiça, para ver como lidar com esse emaranhado de complicações. Não é o estudo do direito, é o estudo da sociedade e da estrutura social para aprender a lidar com ela.

P – E como você procurou entender a sociedade?
Roberto da Silva –
Para isso não precisa ser um estudo escolar. A leitura ajuda, as conversas ajudam, tentar entender como as pessoas pensam, como elas fundamentam suas decisões. Foi assim que eu fiz o meu caminho, mais fora da escola do que dentro. Eu só busquei a escola para ela certificar o aprendizado que eu tive ao longo da vida. E depois, quando me senti capacitado e qualificado para competir em condições de igualdade, eu resolvi disputar com as pessoas que não tinham antecedentes criminais.


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