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2 de dezembro de 2014
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10:51

Quatro pessoas que vivem com Aids contam suas histórias

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

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Foto: Filipe Castilhos/Sul21
As dificuldades não tiram o sorriso de Ivanise | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Ana Ávila

Entre as mais de 700 mil pessoas que vivem com HIV/Aids no Brasil, quatro contaram suas histórias ao Sul21 em visita à Casa Fonte Colombo, um centro de promoção da pessoa soropositiva mantido pela Associação Literária São Boaventura, mantenedora dos Freis Capuchinhos no Rio Grande do Sul. Em comum, além do HIV, problemas como a depressão e a sensação de que nunca aconteceria com elas. Especialistas, profissionais da saúde, voluntários, todos concordam que hoje, com diagnóstico precoce e tratamento adequado, é possível levar uma vida saudável, independente da Aids. No entanto, só o relato de quem enfrenta cada dia sabendo que tem a doença é capaz de ilustrar como é se descobrir soropositivo, aos 20, aos 30, aos 40 ou aos 50 e poucos anos.

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Leo tinha 23 anos quando soube que poderia ter HIV. Da cama no hospital, um ex-namorado o chamou para dar a notícia. Isso foi em 1988. Nos últimos 25 anos, ele parou e retomou o tratamento, contraiu novas enfermidades, precisou se aposentar. Jamais deixou a casa da mãe, de quem fala com afeto e admiração. Se em 1990 precisava de seis a oito comprimidos, hoje Leo ingere 48 pílulas diariamente. Mas nem isso tira seu bom humor. O jovem que ao saber que tinha uma doença tão temida por sua geração garantiu: “Eu vou viver. Não é uma coisa microscópica que vai me matar” segue driblando as pedras do caminho.

Ivanise tinha 33 anos e seis filhos quando se descobriu com a doença. A mulher sorridente, que gostava de curtir os fins de semana com as colegas de trabalho perdeu 40 kg e já não saia da cama. Passou oito dias na UTI, quase sem sinais vitais, de onde  lembra da mãe pedindo que ela não desistisse. Humilhada pelo marido, sem saber como havia contraído a doença, Ivanise não queria mais viver. Onze anos depois, ela ainda luta todos os dias contra a depressão, mas voltou a sorrir, um sorriso que ilumina seu rosto, mesmo quando os olhos estão marejados. Os maiores parceiros são os filhos, que chegam a contar um a um os comprimidos para garantir que o tratamento está em dia.

Aos 45 anos, separada e com um filho, Maria* reencontrou o amor de sua juventude, o primeiro namorado. Entregue por completo ao relacionamento, acabaria contraindo o vírus pouco depois. Apesar do choque, o ouviu dizer que enfrentariam tudo juntos e acreditou. Passou mais tempo preocupada com a saúde dele do que com a própria, temendo perdê-lo depois do reencontro feliz. O namorado de fato se foi, mas não levado pela doença. Para a nova companheira, ele também nega ter o vírus. Maria quis matá-lo, articulou sozinha planos mirabolantes, entrou em depressão, temendo o preconceito, contou para a família que sofria de leucemia. Mas Maria é dessas mulheres que recomeçam o tempo todo, são capazes de amar de novo, tanto ou mais. Ajudou um novo companheiro a descobrir que também tinha o vírus, contraído antes de se conhecerem.

Pepsamar, Aldrox, Tagamet, Interferon, Enalapril, Efavirenz, Algafan. Seu Jorge é uma verdadeira enciclopédia de medicamentos. Puxa pela memória e vai listando um atrás do outro. Entre tímido e resignado, conta que foi viciado em analgésicos por anos. Só conseguiu o acompanhamento psicológico que o ajudaria a vencer a dependência depois de se saber soropositivo. Há cerca de uma década, os sintomas de uma tuberculose o levaram a descobrir que também era portador de HIV/Aids. Com paciência tratou a primeira e a segunda, abandonou os cigarros, foi dos 35 kg para os 54 kg. Ainda enfrentaria um AVC, que o fez precisar de muletas por dois anos. Aos 61 anos, dá suas lições com a sabedoria de quem está sempre disposto a aprender.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Leo chegou a abandonar o tratamento por seis anos| Foto: Filipe Castilhos/Sul21

“Doenças são feitas para serem estudadas, analisadas e curadas”

A década de 80 foi aquela em que se acompanhou dia a dia a luta de figuras públicas infectadas pela aids. Foi nessa mesma época que Leo Ricardo Rodrigues Silveira descobriu que tinha HIV. Por dois anos foi apenas monitorado. Em 1990 começou o tratamento com AZT, que abandonaria logo depois para só retomar em 1996, quando ficou de fato doente. “Eu lembro que pensei ‘puta merda, vou ter que tomar essa medicação para o resto da vida’. Não com aquela coisa que eu ia morrer amanhã, mas que ia ter que tomar a medicação. E agora estou completando 50 anos”.

Embora garanta não se preocupar com isso, Leo foi acumulando uma série de doenças ao longo dos últimos anos: hipertensão, diabete, cardiopatia. “Eu não esquento a cabeça com doença. Doenças são feitas para serem estudadas, analisadas e curadas”, afirma, quase indiferente. Se o HIV e as medicações lhe trouxeram outros problemas de saúde, ele também acha que o vírus o fez mudar, em alguns aspectos, para melhor. “Me dediquei ao trabalho, porque antes eu só queria orgia. Como dizia a minha mãe na época, sexo, drogas e rock’n roll. Aí eu dei mais importância ao meu trabalho”.

Leo era funcionário da Febem (hoje, Fundação Casa) quando descobriu que era soropositivo. Em 2000, aos 35 anos, precisou se aposentar. “Na época, pensei:  aposentado eu, com 35 anos? Eu adorava meu trabalho”.

Leo acha que hoje as pessoas estão mais maduras para falar de Aids e que há mais orientação sobre o assunto. Temeroso quando soube que tinha HIV, foi contando aos poucos para as pessoas mais próximas. “Hoje, eu cheguei a um ponto da minha vida que não me interessa a opinião de ninguém”, diz. Para o futuro, só espera viver com mais qualidade, especialmente para desfrutar da paixão que não o deixa tirar os olhos do celular, onde exibe fotos e declarações de amor do companheiro. “Cura, cura eu não acredito. Eu acredito é em medicações mais eficazes, com menos efeitos colaterais. Eu não espero a cura, estou bem assim, só espero medicações mais confortáveis”.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Mãe de seis filhos, Ivanise é monitorada pelos rebentos | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

“Às vezes, nem com os meus filhos eu quero conversar”

Ivanise Oliveira da Rosa, 46 anos, ainda amamentava a filha caçula quando soube que tinha HIV/Aids. “Eu pensei, o que é que eu vou fazer? Matei minha filha! Eu tentei me matar duas vezes e a minha mãe não deixou. ‘Não, isso aí não é o fim do mundo’, ela disse”. Hoje são justamente os seis filhos seus maiores parceiros para se manter saudável. Além disso, os netos a motivam a querer viver. “Eu pensei em mim, mas mais nos meus netos que estão chegando. Tenho uma netinha que é um amor. Fico com medo de deixá-la. Penso mais neles agora”, diz como toda boa avó coruja.

Ela trocou a medicação depois de uma genotipagem (tipo de teste que determina a resistência do vírus à determinada droga) no início no ano. Ainda sofre com enjoos provocados pelos novos comprimidos, acumula problemas ósseos e os resquícios da depressão que veio com a descoberta do vírus e a incompreensão de pessoas próximas, como o marido. “Meu ex-marido me maltratou horrores quando soube. Queria me matar no quarto do hospital. ‘O que tu fez, desgraçada’, ele dizia pra mim. Só que eu não fiz nada”. Ivanise trabalhava em uma reciclagem que recebia lixo hospitalar quando soube que tinha a doença. “Eu não sei se foi aquilo ali, porque eu nunca usei droga, como é que vai pegar isso? Não dá pra entender. O meu ex-marido não tem e esse companheiro que eu estava agora também não pegou, só eu mesmo”.

O preconceito veio dos amigos, da família, de todos os lados. “Ninguém mais me ligou, me convidou para nada. Um dos meus irmãos vivia me chamando de aidética”. Ela conta que a relação com o irmão já melhorou. Depois que o restante dos parentes demonstrou que continuava amando-a e a queria por perto, foi ele quem se sentiu excluído e lhe pediu perdão. Ainda assim, o assunto segue tabu. O golpe mais recente veio com a separação do segundo companheiro, com que já estava há oito anos. Nessas horas, a depressão mostra que segue à espreita. “Não quero ver ninguém, não converso com ninguém. Às vezes, nem com os meus filhos eu quero conversar. Me tranco no meu quarto e fico lá, no escuro”.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Maria* vive com Aids desde 2005 | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

“Foi justamente com uma pessoa que eu sempre amei”

Apesar de tudo e todos, Ivanise sorria quando nos despedimos. Ela viajaria para o Rio de Janeiro no dia seguinte para representar a Fonte Colombo no 17º Vivendo Nacional, evento que reúne pessoas vivendo e convivendo com HIV e Aids. Ao contrário da amiga, ansiosa com os preparativos para o voo, Maria, que a acompanharia, tinha o semblante tranquilo quando começou a narrar sua história, que tinha tudo para ser mais um bonito reencontro de jovens namorados. Em 2000, aos 45 anos, separada, ela reencontrou o primeiro amor. Estava radiante quando uma gripe persistente a abalou. Na médica, se negou a fazer o teste de HIV. “Eu rasguei na frente dela e disse: eu jamais vou fazer este exame. Não tem porque eu fazer”.

Três meses depois, ela mudaria de ideia ao se deparar com nódulos na região do pescoço e axilas. Quando foi buscar o resultado, já sabia que a notícia podia não ser boa. Tinha recebido uma ligação que indicava isso. “Eu sabia que se me ligassem era porque tinha dado alguma coisa errada e tinha que repetir. Eu já fui para lá chorando, já sabia que não era boa coisa. Na hora eu pensei, vou morrer e o meu filho vai ficar”. Maria pediu que o companheiro também fizesse o teste, ele concordou, mas garantiu que o resultado tinha sido negativo. Pressionado, acabou abrindo o jogo. Apesar da decepção, ela estava disposta a perdoar, ainda que pelos exames o médico houvesse garantido que ele já tinha o vírus há mais de quatro anos, ou seja, antes do início da relação.

Como as células CD4 (células de defesa do organismo) dele estavam muito abaixo das dela, a maior preocupação de Maria passou a ser perdê-lo para a Aids. “Eu chorava muito porque achava que ele ia morrer”, diz ela, que acabou traída e abandonada. A mágoa virou ódio e Maria passou a desejar que o ex morresse. O sentimento não impediu que ela procurasse sua rival e a alertasse, mesmo sendo ameaçada. “Ela não entendeu, me disse um monte de coisas por telefone, eu entrei em desespero porque não queria que ela passasse pelo que eu passei”. Maria foi mais uma a mergulhar na depressão. Além dos remédios para lidar com o abalo emocional, a artrite e a artrose que já tinha se agravaram com a medicação contra o HIV.

Hoje, a carga viral de Maria está zerada, ela já ajudou outro companheiro a descobrir que tinha a doença após incentivá-lo a fazer o teste e vive um novo romance. O atual parceiro, que não tem HIV, chegou a achar que não conseguiria lidar com o fato quando ela contou, na segunda semana de relacionamento, mas segue ao seu lado após sete meses. Mesmo assim, Maria tem medo do preconceito. Para a maior parte da família e amigos diz que tem leucemia, temendo a reação deles caso saibam que é soropositiva. Justo ela, que muito antes de ser infectada foi o amparo de uma família de portadores de HIV, que conheceu por acaso. Um casal e três filhos, dos quais só sobreviveram dois. “Primeiro morreu ela, grávida, depois a menina. Eu fiz amizade com a vó dela, quando podia eu dava uma cesta básica para eles ou dividia a minha”. A traição, a Aids, o medo do preconceito, nada disso parece ter embrutecido Maria. “Eu fico pensando como a vida da gente é. Eu nunca fui drogada, nunca usei nada. Foi justamente com uma pessoa que eu sempre amei, mas é a vida”.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Jorge descobriu a Aids em função de uma tuberculose | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

“Eu quero ajudar o próximo”

Jorge Eloir Nunes Cardoso, o seu Jorge, tem 61 anos – ou vai fazer 62 no ano que vem, como ele prefere dizer quando é perguntado. Descobriu o HIV há cerca de dez anos, ao procurar o hospital por causa de uma tosse incessante. “O médico olhou para mim e disse: vamos fazer uns exames. Fiz três exames de sangue. No terceiro, o doutor me perguntou: está acompanhado? Vou te encaminhar para o Postão da Cruzeiro para fazer o encaminhamento porque tu és soropositivo”. Por seis meses, ele combateu a tuberculose antes de iniciar o tratamento direcionado à Aids. “Um mês antes do fim do tratamento, eu fiz um propósito para mim: eu vou parar de fumar. Em vez de estar me matando, agora eu vou procurar viver, e se eu receber essa graça e me curar da tuberculose, eu vou fazer uma doação para uma entidade”.

Mas seu Jorge não sabia que ainda haveria mais doenças a enfrentar. A primeira seria a depressão. Só saia de casa para ir ao posto de saúde buscar os medicamentos. Pesando 35 kg, não raro precisava da ajuda de um vizinho para se locomover. Há quatro anos, um Acidente Vascular Cerebral testaria sua resistência outra vez. “Do meu leito, eu às vezes ligava para cá (Fonte Colombo) e pedia que rezassem por mim e que Deus fosse pai e me desse aquela força para eu vencer, que eu tinha algo a fazer. Assim como fui ajudado, eu quero ajudar o próximo”. Foram meses de fisioterapia e auxílio de muletas para caminhar. Hoje, além dos comprimidos contra o HIV, ele precisa ser medicado para colesterol e psoríase e de acompanhamento para evitar um novo AVC.

Dependente de medicamentos, especialmente analgésicos, ao longo de boa parte da vida, seu Jorge não sabe como contraiu o vírus. Uma seringa contaminada usada para injetar um remédio ou uma relação sexual sem preservativo são apenas hipóteses. Os anos lutando para se manter vivo – mesmo nos momentos de depressão, quando as forças já eram escassas – o fizeram um conhecedor de doenças e medicações. “Eu não tenho estudo, mas eu acho que quem é médico, quem está se formando agora, requer também que o próprio infectado converse. Nem tudo que ele está passando aquela infecto(logista) conhece. Eu não escondo nada. Eu sou um livro aberto”, diz ele, com a humildade de quem de fato sabe do que fala.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Espaço de convivência na Casa Fonte Colombo |Foto: Filipe Castilhos/Sul21

A Casa Fonte Colombo reúne 56 voluntários, quatro freis e quatro funcionários que auxiliam pessoas vivendo com HIV/Aids. Os atendimentos acontecem diariamente, entre 13h30 e 17h30 na rua Hoffmann, 499, no bairro Floresta. Lá, além de apoio psicológico, grupos de atividades diversas e uma refeição diária, aqueles que necessitam recebem orientações para fazer documentação, procurar atendimento médico ou simplesmente usufruem de um espaço de convivência com outros soropositivos. Em 15 anos de funcionamento, mais de 1.800 pessoas já foram atendidas pela Casa. Doações de roupas, calçados, alimentos, livros e pequenos eletrodomésticos são bem-vindas, assim como novos voluntários.

*Maria é um nome fictício. A entrevistada teve o nome alterado para preservar sua identidade.


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