

Marco Weissheimer
No dia 4 de maio, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, confirmou que o país enfrenta uma epidemia de dengue. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, foram 745.957 casos até o dia 18 de abril e esse número deve aumentar. Segundo Chioro, a epidemia está concentrada em sete estados, que tem mais de 300 casos por 100 mil habitantes: São Paulo, Acre, Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Rio Grande do Norte, Paraná. São Paulo responde hoje por 73% das 229 mortes por dengue confirmadas no País até a semana. Esses números mostram que, ao contrário do que muita gente acreditava até bem pouco tempo, dengue não é uma doença que escolhe classe social para se manifestar.
“O mosquito da dengue é extremamente democrático. Onde houver um lugar que acumule água, ele vai se instalar, seja numa favela, seja num bairro de classe alta”, diz, em entrevista ao Sul21, Carmen Silvia Gomes, bióloga do Programa Estadual de Controle da Dengue, do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), vinculado à Secretaria Estadual da Saúde. Carmen Gomes analisa a evolução da dengue no Rio Grande do Sul nos últimos anos e defende a importância da participação da população para o controle do mosquito Aedes aegypti, vetor da doença.
“Nós não temos mais como erradicar a presença do mosquito da dengue. O que precisamos tentar fazer é manter esse nível de infestação o mais baixo possível para dificultar a transmissão do vírus. Se cada pessoa tiver um olhar para o seu espaço de residência e de trabalho, identificar possíveis focos de criação do mosquito e eliminar esses focos, estaremos dando um grande passo para enfrentar essa doença”, diz a bióloga da Secretaria da Saúde.
Sul21: Qual é a história da dengue no Rio Grande do Sul? Desde quando o Estado entrou no mapa dessa doença?
Carmen Silvia Gomes: A presença do vetor Aedes aegypti no Rio Grande do Sul foi detectada pela primeira vez em 1995 no município de Caxias do Sul. A partir daí, a Secretaria Estadual da Saúde começou o trabalho de vigilância desse vetor. Desde então, observamos que, a partir do momento em que os municípios conseguiram se estruturar e criar equipes de vigilância para fazer o trabalho casa a casa, o número de cidades que detectaram a presença do Aedes aegypti aumentou bastante. Hoje temos 149 municípios do Estado com identificação do mosquito. Esse aumento da quantidade de municípios está relacionado a vários fatores. Um deles é a resistência de parte da população a mudar os seus hábitos. Muita gente insiste, por exemplo, em manter aqueles pratinhos em baixo dos vasos. Nos cemitérios, muitas vezes as pessoas ainda conservam água em vasos e vidros para colocar flores nos túmulos. Temos ainda o aumento do número de garrafas pet que acabam servindo de depósito para alguma coisa. Tudo isso acaba favorecendo o aumento de criadouros de mosquitos.
Outro fator importante está relacionado ao ovo do Aedes aegypti, que costuma ficar viável até um ano. Então, esse ovo pode muitas vezes ser transportado facilmente de um município para outro e de um Estado para outro. Todos esses fatores acabam contribuindo para a dispersão do mosquito.

Sul21: Há questões ambientais, como desmatamento e mudanças climáticas, que influem neste processo de dispersão do mosquito e que explicam sua maior presença em determinadas áreas, como ocorre, por exemplo, na região noroeste do Rio Grande do Sul?
Carmen Silvia Gomes: O clima influencia bastante. A questão da região noroeste tem a ver também com a proximidade com a Argentina, país que também tem a presença do Aedes aegypti e casos de dengue. O verão, as altas temperaturas e as chuvas também propiciam um aumento da população, pois criam as condições ideais para a proliferação do mosquito. Como a fêmea do mosquito costuma depositar seus ovos em recipientes que, na maioria das vezes, estão dentro das residências, temos que relativizar um pouco a questão ambiental. É claro que a questão do desmatamento, por exemplo, pode influenciar outros fatores como o regime de chuvas e a temperatura, mas ela não está tão relacionada com o aumento da população do mosquito.
Sul21: A explosão de casos de dengue em São Paulo este ano tem, na sua avaliação, alguma relação com a crise hídrica pela qual passa o Estado?
Carmen Silvia Gomes: O problema básico da dengue é que essa doença exige uma vigilância constante. O trabalho de vigilância e controle tem que ser feito em cada município o ano inteiro para manter a população de mosquitos em níveis muito baixos, o que dificulta a transmissão do vírus.
Sul21: O que seriam níveis muito baixos? Isso é quantificável?
Carmen Silvia Gomes: Sim. A partir do momento que se faz a visita casa a casa, determina-se um índice de infestação. O nível baixo é quando, a cada cem casas, apenas uma delas apresenta a presença do vetor. Quando o trabalho não é desenvolvido adequadamente ao longo de todo o ano, torna-se muito difícil na época do verão, quando a população do mosquito aumenta, conseguir manter esses níveis muito baixos. Isso sem falar no fato de que nesse período as pessoas se deslocam muito, viajando de um Estado para outro e, muitas vezes, carregando o vírus de um Estado para outro, criando as condições para desencadear uma epidemia. A epidemia de dengue, quando ocorre, tem essa característica explosiva. Quando ela surge são vários casos.
Ao contrário do mosquito comum, que pica à noite, em geral quando a pessoa está dormindo, a fêmea do Aedes aegypti costuma picar durante o dia. Quando ela pousa em alguém para se alimentar, essa pessoa acaba se movimentando e a fêmea vai para outra. Lá, suga mais um pouquinho de sangue, a pessoa se movimenta e o processo se repete. Essa passagem do mesmo mosquito por várias pessoas ajuda a entender o caráter explosivo dessas epidemias de dengue no mundo inteiro.

Sul21: Como é o cotidiano do trabalho de vocês aqui no Centro de Vigilância em relação ao controle da dengue?
Carmen Silvia Gomes: O Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS) coordena o Programa Estadual de Controle do Aedes aegypti e da dengue. O Estado possui 19 coordenadorias regionais de saúde e em cada uma delas existe um núcleo de vigilância ambiental que coordena as ações relacionadas à dengue em seus municípios. O CEVS tem como atribuição supervisionar esse trabalho que os municípios desenvolvem, dar o suporte necessário quando é solicitado, suprir com insumos (inseticidas, maquinário e equipamentos de proteção individual), treinamento e capacitações dos agentes de saúde envolvidos nestas ações.
Sul21: O crescimento nos últimos anos do número de municípios com casos de dengue indica, além de problemas comportamentais da população, a existência de problemas no trabalho de fiscalização e controle por parte do poder público?
Carmen Silvia Gomes: É um conjunto de coisas que deve ser analisado aí. Além da questão comportamental, há o problema de se manter essas equipes de agentes atuando nos municípios. Muitas vezes, o município tem dificuldades na forma de contratar, na forma de fazer o pagamento desses agentes. Às vezes essas contratações são por períodos determinados de quatro ou seis meses. Quando acontece isso, o trabalho muitas vezes é interrompido. Além disso, na medida em que os municípios vão se estruturando, os casos começam a aparecer. Se não se procura, não se acha a presença de vetores da dengue. A partir do momento em que há uma equipe que vai a campo, que faz a visita casa a casa, coleta as larvas e identifica a presença do vetor temos um indicativo de que o município está trabalhando. A partir dessa descoberta, seguem-se ações de controle, por meio de inseticida ou controle mecânico.
O Ministério da Saúde repassa anualmente recursos para a área de vigilância em saúde que o município pode utilizar para determinadas ações. O Estado também faz alguns repasses em épocas onde se avalia que há uma maior vulnerabilidade, como ocorre no verão. Quando ocorre uma epidemia em alguma região, é montada uma força tarefa com a presença de agentes do Estado que dão suporte ao trabalho de controle dos municípios.
Sul21: Quais são os índices para se definir um quadro de epidemia?
Carmen Silvia Gomes: Isso varia muito. Podemos ter, por exemplo, o caso de um município que nunca teve uma epidemia e, e repente, registra 5, 10, 15 casos. Essa situação pode configurar uma epidemia. Mas isso não é o mais importante. O importante é definir se o município tem ou não a presença do Aedes aegypti. Se ele tem, apresenta o risco de ter uma epidemia de dengue. Outro fator importante é saber se tem o vírus circulando. Caso sim, a partir do primeiro caso as ações que são desencadeadas são as mesmas independentemente de serem 2, 3 ou quatro casos. Isso do ponto de vista do controle ambiental. Obviamente, do ponto de vista do tratamento das pessoas infectadas é diferente para o município ter 3 ou 100 casos.

Sul21: Até hoje, já há dois casos de óbito por dengue registrados no Rio Grande do Sul. Quais são os fatores que podem causar vítimas fatais no caso da dengue? O atraso no diagnóstico é um deles?
Carmen Silvia Gomes: Sim. Como a dengue é uma doença que tem uma sintomatologia muito semelhante a uma gripe, muitas vezes a pessoa tem uma melhora no quadro e acha que está bem. Quando uma pessoa é diagnosticada com dengue, ela tem que ter retornos ao posto de saúde para ser avaliada. Em algumas situações, não estou dizendo que sejam estas as dos dois casos de morte no Estado, as pessoas acabam, por sentirem bem, não retornando ao posto de saúde. Aí acabam evoluindo para um quadro hemorrágico que pode levar à morte.
Sul21: Até bem pouco tempo, havia um certo senso comum que dizia que dengue era uma coisa de pobre, de morador de periferia e de regiões pobres. A realidade parece ter desmentido essa ideia, não? A região Sudeste lidera hoje o ranking da dengue no Brasil.
Carmen Silvia Gomes: Certamente. O mosquito da dengue é extremamente democrático. Onde houver um lugar que acumule água, ele vai se instalar, seja numa favela, seja num bairro de classe alta. Se a pessoa mantiver em seu pátio algum recipiente contendo água, ela vai estar produzindo o mosquito e correndo o risco de ser infectada.
Sul21: Há vários relatos de resistência, em alguns setores da população, na hora de receber a visita dos agentes de saúde encarregados da fiscalização, prevenção e controle. Isso está acontecendo?
Carmen Silvia Gomes: Sim, isso é um reflexo da violência. As pessoas têm medo de receber na sua casa alguém que não conhecem. Esse também é um dos entraves enfrentados pelo trabalho de vigilância. Isso precisa ser muito bem trabalhado com a população, que precisa ser bem informada sobre essas ações. A Prefeitura de Porto Alegre disponibilizou há certo tempo um número de telefone por meio do qual as pessoas podiam conferir o número de identificação do agente de saúde. Mas há muita resistência, sim. Há pessoas que não abrem as portas de sua casa e não deixem o agente entrar.
As pessoas já sabem que a dengue é transmitida por um mosquito. E a maioria já sabe também o que deve fazer para evitar a presença desse mosquito. A presença dos agentes de saúde nas casas é mais para comprovar a existência de possíveis depósitos de água criadores de mosquito. A população muitas vezes espera que o agente vá até sua casa para que ele tome uma atitude que deveria ser tomada por cada um de nós. Se cada um de nós cuidar do próprio espaço e não permitir esse tipo de criadouro, não precisaremos ter a presença do agente de saúde em nossas casas.

Sul21: O mosquito da dengue é muito diferente do pernilongo tradicional que temos aqui no Rio Grande do Sul?
Carmen Silvia Gomes: Ele tem algumas características diferentes das do mosquito comum que podem ser facilmente identificáveis. Ele tem as patas rajadas de branco, que é uma característica dessa espécie. Isso, por si só, não significa que seja o Aedes aegypti, mas é um indicativo de que pode ser. Para uma identificação precisa, só indo para o laboratório. A pessoa que não é treinada não tem condições de fazer essa identificação a olho nú.
Sul21: Qual sua avaliação sobre a evolução da dengue no Rio Grande do Sul nos últimos anos? Esse problema vem se agravando ou não é possível dizer isso?
Carmen Silvia Gomes: O Estado do Rio Grande do Sul teve a primeira epidemia de dengue em 2007. Antes disso, o país já vivia esse problema. A situação geral do país sempre vai acabar se refletindo nos estados. Se temos explosões epidêmicas em determinados estados, a chance de termos uma epidemia aqui aumenta também. Temos a questão dos deslocamentos que eu já referi. É importante assinalar ainda que a dengue é causada por quatro sorotipos diferentes, ou seja, a pessoa pode ter dengue quatro vezes. Existe a dengue um, a dengue dois, a dengue três e a dengue quatro. Essa numeração não é uma escala de gravidade, só uma identificação dos diferentes tipos mesmo. Quando uma pessoa é infectada por um tipo, ela acaba desenvolvendo anticorpos para esse tipo determinado, mas ainda fica vulnerável aos outros três. E quando ela é infectada sucessivamente por dois sorotipos diferentes, a chance dela desenvolver a forma hemorrágica na segunda vez é bem grande.
Ao longo desses anos, o trabalho melhorou no sentido de que os municípios começaram a se estruturar para fazer a vigilância. A partir do momento em que temos esse sistema de vigilância estruturado e que o mosquito já está distribuído pelo território, estaremos encontrando-o constantemente. Nós não temos mais como erradicar a presença do mosquito da dengue. O que precisamos tentar fazer é manter esse nível de infestação o mais baixo possível para dificultar a transmissão do vírus.
Sul21: Existe algum tipo de controle biológico que possa ser utilizado para reduzir a população do mosquito?
Carmen Silvia Gomes: O controle biológico é uma das alternativas de controle para várias espécies de praga, mas, no caso do Aedes aegypti, é um produto que se torna muito caro. Hoje, ele é utilizado quando é detectada a resistência o mosquito ao produto químico. É uma bactéria que é colocada na água e ingerida pela larva do mosquito, causando a paralisia do trato digestivo da mesma. Em alguns estados, o Ministério da Saúde repassa o biológico em função de que já houve resistência ao químico. Aqui no Rio Grande do Sul ele não é utilizado.
Sul21: Na semana passada, o ministro da Saúde admitiu a existência de um quadro de epidemia em sete estados do país. O Rio Grande do Sul pode entrar neste mapa?
Carmen Silvia Gomes: Sim. A partir do momento em que temos a presença do vetor, o risco existe. Agora, estamos começando uma estação fria e, automaticamente, os casos já começam a baixar. Todas as epidemias que tivemos aqui no Estado ocorreram neste período de abril e maio, que coincide com o final das férias. A tendência é de diminuição dos casos, mas sempre que há a presença do vetor temos o risco da circulação viral. No inverno, temos a falsa ideia de que os mosquitos desaparecem, mas o frio não acaba com eles. Há uma baixa natural da população, mas ele não desaparece.
Por fim, gostaria de chamar a atenção para a importância que a população tem neste processo de vigilância e de controle. Se cada pessoa tiver um olhar para o seu espaço de residência e de trabalho, identificar possíveis focos de criação do mosquito e eliminar esses focos, estaremos dando um grande passo para enfrentar essa doença. A participação da população neste trabalho é extremamente importante.