Entrevistas|z_Areazero
|
8 de fevereiro de 2016
|
10:55

‘Um programa de esquerda tem de pensar em uma agenda de direitos humanos’

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Desde outubro do ano passado, Rogério Sotilli comanda a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que integra o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos |Foto: Mariana Carlesso/Sul21
Desde outubro do ano passado, Rogério Sotilli comanda a Secretaria Especial de Direitos Humanos, que integra o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos |Foto: Mariana Carlesso/Sul21

Jaqueline Silveira

Secretário Especial de Direitos Humanos do governo federal, Rogério Sotilli ocupou o mesmo cargo na prefeitura de São Paulo nos dois primeiros anos – 2013 e 2014 da administração de Fernando Haddad (PT) e ajudou a implantar programas inovadores, como o De Braços Abertos, que trabalha com usuários de drogas, e o Transcidadania, voltado à população LGBT. Mestre em História, Sottili também ocupou a secretaria-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo, deixando a pasta para assumir o cargo no governo federal, no início de outubro de 2015. Em entrevista ao Sul21, ele fala sobre as experiências inovadoras implantadas em São Paulo, as pautas conservadoras do Congresso e a regulação da mídia. Também fala sobre as prioridades da Secretaria Especial de Direitos Humanos, que no ano passou deixou de ter status de ministério e passou a integrar o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Confira os principais trechos.

Sul21 – A Secretaria de Direitos Humanos tinha status de ministério, mas com a reforma administrativa do governo Dilma Rousseff, em 2015, foi integrada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Mesmo assim, as prioridades previstas para a área estão mantidas?

Rogério Sotilli – As prioridade serão mantidas e aprofundadas. Vamos trabalhar com muito mais determinação para que a gente possa avançar naquilo que nos comprometermos. Existe um compromisso da presidenta (Dilma Rousseff) de dar aos direitos humanos uma atenção necessária. A questão da reforma ministerial, que juntou os três ministérios em um, foi uma necessidade política e econômica e não cabe a mim discutir sobre isso. Nós queremos aproveitar essa oportunidade para avançar em algumas questões importantes, que a gente acha que deveria ter avançado antes, como é a integração de três agendas tão importantes, que é a da mulher, a da igualdade racial e a dos direitos humanos. Não será essa nova estrutura que irá nos tirar do foco de perseguir as grandes conquistas de direitos humanos que a gente precisa e deve fazer.

Sul21 – E quais seriam essas conquistas?

Sotilli – Vamos monitorar toda a aplicação do Programa Nacional de Direitos Humanos, PNDH3, que é a maior conquista que nós tivemos em termos de direitos humanos no Brasil, nos últimos 10 anos. É um programa que deu origem à Comissão Nacional da Verdade, às outras comissões estaduais e municipais da Verdade, ao direito à memória e à verdade, lutar para que seja esclarecido tudo que aconteceu na época da ditadura militar. Mas, sobretudo, a efetivação do mecanismo de combate à tortura, que já existe, foi sancionada pela presidenta e está funcionando no âmbito da Secretaria dos Direitos Humanos. Vamos dar ao mecanismo toda a estrutura necessária para que ele possa funcionar efetivamente e inibir todas as práticas de tortura no Brasil, especialmente no sistema penitenciário, como também nos hospitais de tratamento de saúde mental.

Sottilli diz que uma das prioridades é acabar com diatadura no tratamento da saúde mental| Foto: Mariana Carlesso/Sul21
Sotilli diz que uma das prioridades é inibir práticas de tortura no Brasil|Foto: Mariana Carlesso/Sul21

Vamos avançar muito na educação e nos direitos humanos, porque essa agenda, eu identifico como uma das mais importantes para o Brasil. Se eu entendo que o Brasil é um país de violação de direitos humanos, que tem uma cultura de violação de direitos humanos, mas a gente não muda essa cultura se não trabalhar com educação e direitos humanos. E trabalhar com educação e direitos humanos significa trabalhar com a educação formal, mas trabalhar com a educação não-formal também, garantindo que, a partir dessa interlocução com as crianças, com os estudantes, com a educação, nós podemos criar com o tempo uma nova cultura de promoção aos direitos humanos, de respeito aos direitos humanos.

“Vamos avançar muito na educação e nos direitos humanos, porque essa agenda, eu identifico como uma das mais importantes para o Brasil.”

Sul21- Que atividades serão desenvolvidas nas escolas?

Sotilli – Primeiro, nós construímos uma política de promoção dos direitos humanos, de educação e direitos humanos. Essa política está sendo implementada. Eu fui secretário de Direitos Humanos da cidade de São Paulo e criamos na secretaria um programa maravilhoso que é o ‘’Respeitar é Preciso’’, que é trabalhar com todo o ambiente escolar, com as famílias, com os funcionários de uma escola, com os professores, com os diretores, todo um processo de adequação da educação, fortalecendo aqueles valores de direitos humanos e da solidariedade, do respeito, da valorização da diferença. Isso eu estou pensando em trazer para o governo federal como um programa federal. Já estive reunido com o ministro Mercadante (Ministro da Educação, Aloizio Mercadante), a gente faz isso em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, em São Paulo. Já estamos no processo de tentar implantar isso em mais de 220 municípios do Brasil, com um plano federal de educação e direitos humanos. Esse plano é construído a partir da identificação do inventário sobre os níveis de violência que nós produzimos no ambiente escolar e a partir daí, estabelecer todo um processo de intervenção escolar, seja intervenção física, mas também de qualificação de nossos professores, do nosso corpo docente.

Sottilli foi secretário da área da prefeitura de São Paulo e pretende levar programas implantados na Capital para o governo federal|Foto: Mariana Carlesso/Sul21
Sotilli foi secretário da prefeitura de São Paulo e pretende levar programas implantados na Capital para o governo federal|Foto: Mariana Carlesso/Sul21

Os resultados em São Paulo, onde realizamos em 20 escolas apenas, foram fantásticos. Nós encontramos uma escola hoje muito mais ementada aos valores dos direitos humanos, nós encontramos uma escola muito mais bem preparada, muito mais democrática, os alunos não tinham nenhuma participação e começaram a organizar os grêmios estudantis, começaram a produzir momentos de criação na escola, de produção cultural, intelectual, de debate político.

A escola mudou, a violência diminuiu e começamos a contar com serventes, com a segurança, com a família, com o estudante e com o professor. É isso que precisamos fazer no Brasil. Isso é a importância da educação e dos direitos humanos e esse é um dos grandes desafios que eu quero desenvolver. Mas temos outros desafios. Existe o entendimento, no meu ponto de vista, completamente equivocado ainda do que são os direitos humanos e para fazer o enfrentamento a esse entendimento, eu acredito na grande mobilização nacional entorno do debate dos direitos humanos, pra mostrar que direitos humanos são muito além daquilo que a grande mídia tende a fazer sempre, como se fosse defesa de bandido.

“Direitos humanos são muito além daquilo que a grande mídia tende a fazer sempre, como se fosse defesa de bandido.”

Sul21 – Aliás, em sua participação recentemente no Fórum Social Temático, o senhor afirmou que os direitos humanos são o principal alvo de ataque da mídia tradicional.

Sotilli – Os direitos humanos sofrem um ataque da mídia tradicional, porque como falei: eu, ainda hoje, acho que se você quiser configurar e pensar em uma nova sociedade e imaginar um programa de esquerda, ele precisa fundamentalmente se pautar pela agenda dos direitos humanos. É isso que diferencia hoje um programa de esquerda de um programa conservador, o programa fascista e assim por diante. São disputas de valores que estão em jogo. Como isso está em jogo: a grande mídia, uma parcela importante da grande mídia, tende justamente a focar nos direitos humanos, pra descredenciar e desqualificar o debate. Isso a gente assiste em todos os programas de direitos humanos.

Eu vim de São Paulo, onde os programas que nós realizávamos e realizamos foram fantásticos, extremamente revolucionários. O programa Transcidadania pra população LGBT, que eu também quero levar para nível federal, que dá a cidadania para uma parcela da população extremamente vulnerável, como os travestis, os transexuais, que são tratados como pessoas de direito. Isso revoluciona uma sociedade, e como ele foi tratado pela grande mídia? Foi tratado como ‘bolsa para traveco’, desqualifica o debate.

“Eu vim de São Paulo, onde os programas que nós realizávamos e realizamos foram fantásticos, extremamente revolucionários.”

Sul21 – E que transformação o Transcidadania trouxe para a população LGBT em São Paulo?

Sotilli – Houve uma primeira formatura do projeto e o prefeito Fernando Haddad dobrou o número de vagas e dobrou o orçamento para essa população. Os resultados são fantásticos. Eu recebi uma das pessoas que participou desse evento do programa Transcidadania e ela me procurou quando eu ainda era secretário em São Paulo e ela disse assim: ‘Rogério, eu vim aqui primeiro para te agradecer pela oportunidade que você me deu e em segundo, porque eu sinto que eu preciso fazer alguma coisa como forma de agradecimento. E essa coisa que eu quero fazer é que eu estou construindo uma ONG chamada Brenda e essa ONG é para lutar para que seja transformado em lei o programa Transcidadania, para que ele nunca mais acabe’.

E ela também disse assim: ‘Eu nunca pensei em cidadania, eu nunca me expressei, nunca me organizei, eu era uma prostituta que acordava de manhã e descia pra fazer um programa para poder tomar um café da manhã. Fazia 30 programas por dia e sobrevivia dessa forma’. A maioria das pessoas travestis e transexuais são assassinadas antes dos 50 anos de idade. O Brasil é o país que mais mata travestis no mundo. O segundo lugar é o México. Nós produzimos uma política pública para tratar essas pessoas.

Sottili disse que hoje o Brasil é o país que mais mata travestis e que é preciso políticas para a população LGBT, como a Transcidadania implantado na capital paulista |Foto: Guilherme Santos/Sul21
Sottili disse que hoje o Brasil é o país que mais mata travestis e que é preciso políticas para a população LGBT, como a Transcidadania implantado na capital paulista |Foto: Guilherme Santos/Sul21

Nós fizemos isso com os usuários de crack, fizemos isso com as populações idosas, com os imigrantes, isso muda a cidade. Hoje, a cidade de São Paulo é muito pautada pelos direitos humanos, porque começa a trabalhar uma nova percepção de cidade, que se traduz na mobilidade urbana, se traduz também nas ciclovias, no fechamento da (avenida) Paulista nos finais de semana, nos corredores de ônibus, que é priorizar o transporte coletivo para as pessoas, em detrimento do transporte privado. Se traduz na redução da velocidade nas nossas marginais, que poupam a vida de 30% das pessoas que morriam antes, diminuiu 30% em menos de um ano. São as pessoas que estão no centro. Isso é um programa de esquerda, isso é um programa revolucionário e é essa agenda dos direitos humanos que diferencia o grande debate público hoje.

Por isso que a grande mídia, que está muito capturada pelos interesses econômicos, por interesses financeiros e ideológicos, hoje ela tem na agenda dos direitos humanos o seu principal foco de ataque, que se expressa na redução da maioridade penal, quando o Datena (apresentador José Luiz Datena) fica o dia inteiro falando de jovens, bandidos, assassinos. Se expressa quando vê uma pessoa negra na periferia, de moto, como bandida, fugitiva, expressa -se contra os usuários de crack, contra as travestis e assim por diante.

“(…) São as pessoas que estão no centro. Isso é um programa de esquerda, isso é um programa revolucionário e é essa agenda dos direitos humanos que diferencia o grande debate público hoje.”

Sul21- Em relação aos usuários de crack, o projeto De Braços Abertos implementou uma nova forma de tratar o problema da Cracolândia. Quais tem sido os resultados?

Sotilli – O projeto já tem dois anos e o resultado é excelente. Já temos 550 pessoas nesse programa. Você pode pensar o seguinte: as 550 pessoas que estão no programa De Braços Abertos, são 550 pessoas a menos que estariam jogadas na sarjeta, como zumbi, fumando pedras de crack, 30 ou 40 pedras de crack por dia. Então esse programa retira essa pessoa da rua, dá pra ela hotel, moradia, dá pra ela trabalho, saúde e cidadania. Essa pessoa ainda não parou de consumir crack, mas agora ela consome dois, três ou quatro pedras de crack. E ela começa a procurar apoio para sair da condição que ela está.  Muitas delas já voltaram pra casa, outras estão trabalhando e o resultado é extremamente positivo. Não existe resultado mais incrível pra usuários de drogas.

Sul21 – Antes, a política tinha foco só na repressão.  

Sotilli – Na repressão, no tratamento, na internação compulsória. Hoje, você tem um programa de redução de danos que olha para essas pessoas e começa a trabalhar com ela perspectivas de vida. A pessoa que vai para uma internação compulsória, que é forçada, essa pessoa sai de lá e vai ter recaídas, com certeza. Eu não conheço ninguém que saiu de uma internação compulsória e não voltou para a rua, não voltou pro crack. Então já tá provado que aquele velho sistema, sabe o que é aquele velho sistema?  É higienista. É olhar para uma cidade e ela ter que estar limpa, como é higienista você ter uma praça cercada, como é higienista você ter um banco de praça, quando tem uma praça, individualizado daqueles cones para ninguém deitar, ninguém namorar, porque é a cultura da ditadura militar.

Sotilli diz que o uusário que for submetido a internação compulsória tender a sofrer recaídas|Foto: Mariana Carlesso/Sul21
Sotilli diz que o Brasil vive ainda a cultura da ditadura militar com um sistema higienista|Foto: Mariana Carlesso/Sul21

Você não pode ver ninguém concentrado que você começa a achar problema, então você começa a criar formas de isolamento, formas par que as pessoas não se concentrem. Não conviver e não se concentrar impede aquele espírito de construção de vizinhança, de solidariedade. E esse espírito de solidariedade, de vizinhança, de liberdade e de construção, é a troca de ideias, troca de informação e isso é importante, porque constrói um ânimo novo, uma pessoa com novos valores. É tirar as pessoas do celular, da internet, pra torná-las cada vez mais sociável e com mais relacionamento humano.  Isso que uma sociedade quer e isso faz as pessoas mais felizes.

“Eu não conheço ninguém que saiu de uma internação compulsória e não voltou para a rua, não voltou pro crack.”

Sul21 – O Congresso atualmente é muito conservador e tem priorizado igualmente pautas conservadoras. Muitas delas, inclusive, devem ser retomadas em 2016. O senhor acredita que só a mobilização social é que pode barrar essas pautas, como já aconteceu em alguns casos no ano passado?

Sotilli – Bom, em primeiro lugar, é muita mobilização social, muita formação política, porque o Congresso que está aí é eleito pelo povo e o povo votou em pessoas que pensam como Eduardo Cunha (Presidente da Câmara dos Deputados), que promove ameaças importantes aos direitos já conquistados. Nenhum direito, ao que me consta, foi derrubado, tem apenas ameaça. E foi ameaçado por artimanha do presidente da Câmara, que criou comissões especiais, que tinham hegemonia, o que levou à promoção dessas comissões. Algumas, ele (Cunha) aprovou no plenário da Câmara, mas estão paradas no Senado. Vai voltar, então não teve nenhuma mudança, mas tem ameaças. O Estatuto da Família é uma ameaça, a redução da maioridade penal, o Estatuto do Desarmamento, mas que não está consolidada. Agora, a população tem que consolidar. Nós temos um problema muito grave que está pra acontecer, que é esse Projeto de Lei Antiterrorismo, que, se for aprovado, ele criminaliza os movimentos sociais. Isso não pode acontecer, mas nenhum foi aprovado. Eu acredito na mobilização social como forma de poder, sensibilizar os parlamentares em não avançarem na redução dos direitos já conquistados.

“Nós temos um problema muito grave que está pra acontecer, que é esse projeto de lei Antiterrorismo, que, se for aprovado, ele criminaliza os movimentos sociais.”

 

Secretário diz que a regulação da mídia e uma necessidade|Foto: Guilherme Santos/Sul21
Secretário diz que a regulação da mídia é necessária e que a Consituição assegura que não pode haver monopólio dos meios de comunicação|Foto: Guilherme Santos/Sul21

Su 21 – O senhor tem feito críticas à mídia tradicional, especialmente à forma de cobertura dada aos programas que beneficiam as minorias. O senhor acha que o governo federal tem de enfrentar o tema da regulação da mídia?

Sotilli – Eu acho que a regulação da mídia é necessária. A Constituição garante que não pode haver monopólio nos meios de comunicação. A regulação da mídia é uma necessidade, a constituição garante, então ela tem que ser regulamentada. Eu não sou do núcleo do governo, então não sei o que o governo acha em relação a isso, mas eu acho que o direito à informação, à comunicação é um direito humano essencial e para que esse direito humano essencial seja garantido, ele precisa garantir a qualidade da informação e não vai ter qualidade de informação se não houver regulamentação da mídia, se houver monopólio da mídia.


Leia também