Luís Eduardo Gomes
Na primeira sessão de votação da Assembleia Legislativa, em 6 de fevereiro, a Assembleia Legislativa do Rio Grande Sul, aprovou o PLC 249, autorizando o Estado a aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) da União. Para o governo Sartori, esta é a “última alternativa” para solucionar a crise do Rio Grande do Sul. Mas será mesmo? Para tentar entender os efeitos iniciais que o RRF terá no Estado, o Sul21 conversou com a professora Mirelli Malaguti, doutora em Economia e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro especializada em orçamento público, a respeito do acordo firmado entre o governo fluminense, o primeiro a aderir ao RRF, e a União em setembro de 2017.
A expectativa é que, com o acordo, o déficit nas contas do Rio, que havia sido previsto em R$ 20,3 bilhões, seja de cerca de R$ 10 bilhões, uma vez que o estado não precisará pagar pelos próximos três anos – prorrogáveis por mais três – a parcela da dívida com a União, despesa que deveria alcançar R$ 9 bilhões em 2018.
Por outro lado, ela destaca que o governo do Rio de Janeiro não apresentou um plano sobre como irá fazer para pagar a dívida com a União quando a suspensão do pagamento das parcelas acabar. “Não existe nenhum plano, não existe nenhum planejamento, não existe nenhuma expectativa, é só a tentativa de você resolver o de anteontem”, diz a professora.
Na conversa, Malaguti faz um resgate histórico da crise nas contas públicas do Rio de Janeiro e fala das alternativas que foram apresentadas ao RRF, mas, na maioria dos casos, não foram adotados pelo governo fluminense. Confira a íntegra a seguir.
Sul21 – Como a senhora avalia os efeitos do regime de recuperação fiscal nesses primeiros meses?
Mirelli Malaguti: Olha, de uma forma positiva, o estado conseguiu quase acabar com os atrasos no pagamento dos salários e aposentadorias. Colocou mais ou menos tudo em dia, porque você tinha servidor que estava recebendo com quatro meses de atraso. Aposentado recebendo com quatro meses de atraso. Então, o que o estado do Rio de Janeiro conseguiu com o empréstimo e com o acordo em geral foi colocar em dia ou diminuir o atraso, vamos dizer assim. Os servidores ainda não receberam o décimo terceiro de 2017 nem os salários de janeiro [o salário de janeiro dos servidores foi quitado no dia 16 de fevereiro, a entrevista havia sido realizada no dia 15], mas há uma expectativa de que você não vai voltar a ter aqueles atrasos de ficar até quase quatro meses sem receber o salário. Esse é o único impacto positivo que a gente pode pensar. Porque o Rio de Janeiro, por conta da crise que se instalou nas contas públicas estaduais, acumulou um déficit anual de R$ 20 bilhões nos últimos três anos e vai demorar muito para as contas se recuperarem. Não só as contas, como também colocar em dia todos os serviços públicos que eram prestados. Assim como o estado não consegue pagar a folha de servidores, não consegue pagar contratos importantes de segurança, de limpeza, de fornecimento de mão de obra para hospitais e tudo isso está paralisado.
Sul21 – Como parte do acordo, o Estado tinha uma série de contrapartidas para colocar em vigor. Quais medidas de ajuste fiscal já foram aplicadas?
MM: O estado vai ter que fazer uma política de ajuste fiscal muito grande, está limitado com contratação de pessoal, contração de dívidas, tem que cortar, cortar e cortar. O Rio de Janeiro teve uma política de renúncias fiscais muito grande de 2010 para cá. E isso não foi feito dentro de uma política de estímulo à economia fluminense. Eram literalmente renúncias de receitas. No momento que o estado estava crescendo, a gente estava recebendo muitos recursos do governo federal, isso não fazia falta. Mas quando vem a crise econômica, o Rio de Janeiro foi muito afetado especialmente pela questão da Petrobras e teve uma perda de receita muito grande. Agora o estado não pode dar mais nenhum tipo de benefício fiscal. Isso por um lado é bom, mas por outro é ruim, porque você não tem mais essa política em um momento que ela poderia ser oportuna. Como você estava dando para todo mundo, agora não pode dar mais para ninguém.
Sul21 – O governo do RJ chegou a rever as isenções fiscais já concedidas?
MM: Não, não foram revistas. Você tem muitas renúncias fiscais, muitas empresas que nós perdemos receita gratuitamente. Muita isenção fiscal que foi dada sem nenhuma contrapartida, sem prazo de validade. Em 2010, o governador [Sérgio Cabral, MDB] fez o que o pessoal chamou de “Decreto da bondade”. Quando você dá o benefício fiscal, teoricamente a empresa tem que dar uma série de contrapartidas. Em qualquer estado do Brasil, se você não cumpre essas contrapartidas, você é pego burlando algumas das cláusulas, você perde 100% dos benefícios concedidos. O RJ fez um decreto da bondade que diz que, se você for pego burlando, você não perde o benefício, só precisa passar a cumprir. Então, não tinha nenhum controle. Existem vários números, mas ninguém sabe ao certo de quanto se abre mão. O Tribunal de Contas chegou a um valor de R$ 185 bilhões entre 2008 e 2015 [estudo de 2017 aponta que foram R$ 218 bilhões entre 2007 e 2016]. Já a Fazenda, que tem uma estimativa e um controle muito menor, coloca em R$ 10 bilhões ano, o que também é muito preocupante. Se não tivesse esse valor, não teria com o salário atrasado quatro meses.

Sul21 – Uma das discussões no RS é sobre como a dívida será paga depois do encerramento do acordo, uma vez que a dívida tem sempre crescido, mesmo quando paga, muito além da capacidade do estado em amortizá-la. O Rio de Janeiro tem um plano para isso?
MM: Não existe nenhum plano, não existe nenhum planejamento, não existe nenhuma expectativa, é só a tentativa de você resolver o de anteontem. O que acontece, no caso do Rio, é que a gente tem algumas coisas que vencem junto quando tiver que voltar a pagar a dívida com a União, o que vai contrabalancear. Por exemplo, um dos problemas que aconteceu aqui foi uma operação muito malfadada de adiantamento dos royalties do petróleo.
Em 99, quando o Marcelo Alencar (PSDB) sai e o Garotinho entra (PDT), o Garotinho fez uma renegociação de dívida com a União. Durante o governo FHC, a taxa de juros nominal chegou a 45%, então a gente não podia continuar com aquilo e, se continuasse, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estava entrando em vigor em 2000, não poderia ser cumprida. Então, o que a União fez? Ela comprou a dívida de todo mundo e colocou uma taxa de juros fixa a 6% ao ano. Só que nessa negociação, todo mundo tinha que fazer um abatimento de 20% do que você devia para amortizar a dívida e os 80% restantes seriam negociados com a União, que compraria os títulos da dívida. Como era feito? Você dava um ativo do estado para a União privatizar dentro do plano de desestatização nacional. O que aconteceu? O RJ já tinha dado tudo, não tinha mais nada. Já tinha vendido Banerj, Light, tudo. Só tinha a Cedae. O Garotinho, não querendo dar a Cedae, vislumbrou que, em 1997, quando foi criada a Lei do Petróleo, o RJ começou a receber muitos royalties. Era uma coisa que a gente não contava antes e passou a ser algo bem significativo. Ele transformou os recebíveis em um ativo, gerou em títulos e deu isso como abatimento dos 20% para não ter que privatizar a Cedae. Esses títulos vão acabar agora em 2020, se eu não me engano.
Sul21 – Aí os royalties vão passar a entrar integralmente nas contas do estado?
MM: É, mas isso é um pedaço pequeno, porque o problema maior é outro. Ao mesmo tempo, a Emenda Constitucional nº 20 de 1998 determina que todos os estados, todos municípios têm que ter um fundo de previdência. Antes, não existia contribuição do servidor nem a patronal, o servidor se aposentava e continuava na folha como se fosse da ativa, não existia um fundo que pagaria a sua previdência. Essa obrigatoriedade criada pela emenda nº 20 são os regimes próprios dos servidores (RPPS). E os estados, quando criaram o fundo, tiveram que fazer o quê? Como existia um monte de pessoas que nunca contribuíram, você tinha dois grupos: um grupo que passa a contribuir a partir de hoje e outro grupo que está entrando sem ter contribuído, sem o seu lastro. Então você cria fundos deficitários, mas não porque eles não são sustentáveis. Pelos cálculos atuariais, eles são sustentáveis, mas, dentro do marco que eles foram criados, eram deficitários. Aí o Ministério da Previdência diz: ‘Isso não vai funcionar’. Para funcionar, você tem que fazer um plano de amortização para zerar esse déficit do passado e depois os recursos que vão entrar vão manter os gastos do futuro. Só que nenhum governador fez isso. No caso do RJ, nós passamos anos sem dar contribuições pro Rioprevidência e, a partir de 2013, o governador determinou que os royalties iam financiar o Rioprevidência.
Assim, logo que foi feita a renegociação da dívida, a situação estava batendo no teto. O Rio de Janeiro era o pior estado do Brasil. Passamos oito anos sem poder fazer empréstimos. Isso tudo foi levando para bons indicadores. A gente não acumulou dívida, só fomos pagando. Com a entrada do Joaquim Levy [o ex-ministro foi secretário da Fazenda do Rio entre 2007 e 2010], ele fez uma política muito rigorosa. A gente pode ter críticas, mas ajustou as contas do estado. A partir de 2010, o Rio de Janeiro volta a se endividar astronomicamente, abre mão de receita sem nenhuma contrapartida, sem nenhum tipo de controle, e ao mesmo tempo criou despesas continuadas que geram um impacto grande, como foram as UPAs [Unidades de Pronto Atendimento] e as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]. Por conta dos grandes eventos — Olimpíadas, Copa, Jornada Mundial da Juventude, etc. -, realizou-se aqui muitas obras importantes, caras. Você foi tendo uma gestão das contas públicas muito ruim, muito precária, temerária, eu diria.
Sul21 – Essa é uma situação que diferencia um pouco daqui, porque não tivemos grandes obras públicas pagas pelo Estado. Aqui o governo fala muito do peso da folha dos servidores e da previdência.
MM: Mas aí que eu quero chegar. A pergunta que eu quero colocar: um fundo de pensão do servidor é sustentável ou não? Se tiver professora que se aposenta mais cedo, policial que morre, enfim, todos os eventos que a gente possa considerar, ele é sustentável? É. Quem fala isso não sou eu, são os relatórios atuariais, calculados anualmente pelos atuários de todos os fundos. O problema é que você criou os fundos com déficit e nunca zerou o déficit. Como você falou, qual é o plano para daqui a três anos? Nenhum. A gente está tentando resolver um problema do governo de hoje. Daqui a três anos, como ele não sabe mais se vai estar no governo, não há um planejamento sobre isso. Da mesma forma, os estados não fizeram o aporte que tinham que fazer para zerar o déficit passado, fazer com que os fundos tivessem o seu caixa e se mantivessem pagando os seus aposentados e pensionistas sem que o estado tivesse que fazer aportes anuais. Você não construiu esse plano de amortização que tinha que ser construído para zerar o déficit do passado, que não tinha nada a ver com a sustentabilidade de um fundo, isso foi gerando uma bola de nave. E, ao longo do tempo, com o aumento da terceirização, você piora a situação. Por quê? Menos gente entra. Por exemplo, nos municípios, se você pegar dados até do Ministério da Previdência, não há déficits como nos estados, porque a relação entre ativos e inativos é maior. Mas nos estados hoje você mal tem dois servidores ativos para cada inativo, enquanto o ideal seria uns quatro para um.
“Ah, se todos os fundos são deficitários e estão levando a gente para essa situação, então a culpa é do servidor, então a previdência do servidor é insustentável, ela tem privilégios”. Não tem privilégio. Se você pegar todos os benefícios, todas as regras que um servidor público tem que cumprir, são as mesmas que o trabalhador que está no INSS. E, pelo contrário, a gente ainda tem que se aposentar com idade mínima.
Sul21 – No RJ já foi aprovada, como aqui, a medida de que a aposentadoria do servidor estadual será no máximo igual ao teto da Previdência privada?
MM: Sim, é uma previdência complementar, igual tem no governo federal.
O que aconteceu no estado do Rio de Janeiro? Como os royalties vieram crescendo num momento de aumento do preço do barril do petróleo, de produção, os royalties pagavam esse déficit. Tava errado, tinham que ser colocadas outras receitas. Só que, a conta estava fechando, então a gente vai levando. E as receitas que tinham que entrar para o fundo, eles começaram a criar parecer disso, parecer daquilo, e não colocar no fundo. Quando chegou em 2014, o fundo começou a ter problemas, porque teve a queda do barril do petróleo, etc, etc. O que o estado fez? No lugar de fazer o aporte que ele vinha deixando de fazer nos últimos tempos, recolocar as contribuições que não tinham sido colocadas, ele vendeu os royalties futuros. Numa operação extremamente complexa, ele na verdade fez uma securitização dos royalties no mercado financeiro internacional a uma taxa de juros elevadíssima, que ninguém no mercado financeiro internacional consegue, e o estado do Rio de Janeiro vem perdendo muitos recursos por causa dessa operação. Então, é uma operação desastrosa. Se nós já estávamos tendo perda de receita, passamos a perder tudo praticamente. Por isso que quando as pessoas falam: ‘Ah, o problema do Rio é porque caiu o barril do petróleo’. Não é aí. Isso é uma parte. A gente teve uma queda de R$ 4, R$ 5 bilhões anos? Sim. É uma queda expressiva? É. Mas o déficit é de R$ 20 bilhões. Então o problema não pode ser só o royalty, porque teria que ser um valor próximo. E o pouco que a gente recebe de royalties, na verdade, a gente não recebe, porque foi adiantado numa operação super desastrosa e não entra. Nós estamos no pior dos mundos, eles adiantaram cinco folhas em 2013 e 2014 para destruir 24 em 2016 e 2017.
O que acontece agora? Aquela operação inicial do governo Garotinho de entregar parte dos royalties para a União é um valor baixo, mas deixa de entrar – em torno de R$ 1 bi ano -, mais essa operação desastrosa, elas acabam vencendo quando a gente tiver que voltar a pagar a dívida. Então, acho que uma coisa vai meio que compensar a outra.
Sul21 – Aqui um dos argumentos definitivos utilizados pelo governo para convencer a população e a imprensa era de que não haveria outra alternativa a não ser aderir ao RRF. Isso foi apresentado dessa forma também no Rio?
MM: Sim, mas existe toda essa contestação de que tem ser analisadas as renúncias fiscais e tem que ser feita uma melhor gestão. Por exemplo, a UPP foi muito importante no estado por um tempo. Mas vinha sendo colocada desde o início que seria uma política “só para inglês ver”, porque, primeiro, você não conseguiria colocar UPP no estado inteiro. Então, você colocou UPP nas comunidades de maior visibilidade, na zona sul, e as comunidades do subúrbio, da baixada e do interior, que não tinham essa visibilidade, acabaram recebendo a criminalidade que saia de um lugar por outro. Então, ao mesmo tempo que não solucionou o problema de segurança do estado, hoje a folha de pagamento é composta em 37% por militares, o que é uma parte bem pesada.
Sul21 – Foram apresentadas outras alternativas para sair da crise que não fosse o RRF? Como foi esse debate aí?
MM: Existem poucas pessoas que conseguem fazer esse debate, porque ele não é fácil, é um debate técnico, que requer estudo, dedicação. O estado colocou: “é assim e pronto”. Vem sendo colocado na pauta várias discussões. Por exemplo, o pagamento de royalties vem sendo feito baseado em um cálculo que a gente perde. A Petrobras vem fazendo operações para pagar menos a gente, é como se ela fizesse uma sonegação fiscal. Joga pro exterior, recompra, compra, mas na verdade o petróleo nem saiu do lugar. Por conta disso, a gente vem perdendo muitos recursos que deveriam ser discutidos com a ANP [Agência Nacional do Petróleo]. Deveria também ser feita uma discussão sobre as renúncias fiscais e isso vem sendo defendido por alguns parlamentares, mas não foi ouvido pelo governo.
Sul21 – Uma das contrapartidas que a União exige no acordo do RRF é que os estados abram mão de questionar o montante da dívida na Justiça. Isso está no acordo com o Rio?
MM: Sim.

Sul21 – E não foi feita nenhuma discussão sobre isso?
MM: Não.
Sul21 – Mas a princípio o RJ se comprometeu a abrir mão de questionar o montante da dívida na Justiça?
MM: A princípio sim.
Sul21 – Também se fala de possíveis acordos de contas com os valores devidos pela Lei Kandir. O governo fluminense tentou algum acordo nesse sentido?
MM: Não. É como eu estou te falando, quem tenta são alguns parlamentares. O estado não se movimenta para isso. Até a questão da fórmula de cálculo dos royalties que tinha que ser revista, quem lutou por isso foi um parlamentar da Alerj [Assembleia Legislativa do RJ] porque o governador pouco se mexia para mudar. Isso foi uma discussão intensa com a ANP, fizeram muitas audiências públicas, mas o estado estava dando pouca importância e era algo que poderíamos reaver alguns bilhões.
Sul21 – Foram impostas mais medidas de ajuste em relação aos servidores depois que o acordo foi firmado?
MM: Houve cortes salariais de cortes comissionados, perderam cerca de 20%, mas basicamente foi isso.
Sul21 – Para fechar, como a senhora avalia que será o impacto do RRF para o Rio de Janeiro?
MM: No caso de RJ, era extremamente necessário porque era como se a gente não tivesse saída. Isso vai ajudar, mas não vai resolver. O salário do servidor não vai ficar em dia, o 13º não vai entrar tão cedo, nós estamos realmente numa situação muito complicada. Mas, se a gente não fizer um estudo mais intenso de toda a nossa matriz produtiva, de toda a nossa capacidade de arrecadação, de todos os gastos o que foram criados, a situação do estado não se resolve tão cedo.
E eu também acho que um tema que as pessoas deveriam estar mais atentas é o regime próprio de previdência, porque o que os governadores vêm fazendo é jogar a população contra os servidores. O fato é que, se o fundo de aposentadorias hoje não é suficiente, é porque o próprio governador fez para que ele não fosse. E isso está chegando numa situação que vai se transformar em uma coisa nacional. E não é por que os fundos não são sustentáveis, é que todos os governadores agiram para que não fosse. É um problema, porque, para quem está fora, se tem um déficit, tem que acabar com o pouco de estado que ainda existe.