Meio Ambiente
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21 de maio de 2025
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09:32

Indígenas se recusam a ouvir projeto de aterro sanitário em Viamão: ‘Era meio que um golpe’

Encontro ocorreu na aldeia Cantagalo,  na zona rural de Viamão, dentro do distrito de Itapuã. Foto: Arquivo Pessoal
Encontro ocorreu na aldeia Cantagalo, na zona rural de Viamão, dentro do distrito de Itapuã. Foto: Arquivo Pessoal

A consulta pública à comunidade indígena Mbya Guarani do Cantagalo (Tekoá Jataity) e Cantagalo 2 (Tekoá Kaguymiri) para tratar da possível instalação de um aterro sanitário na denominada Fazenda Montes Verdes, na zona rural de Viamão, terminou nesta terça-feira (20) antes mesmo de começar propriamente. A reunião havia sido marcada por representantes do empreendimento após o Ministério Público Federal (MPF) ajuizar uma ação civil pública, com pedido de liminar, para assegurar o direito à consulta prévia, livre e informada das comunidades indígenas potencialmente afetadas pelo aterro sanitário.

O MPF fundamentou a ação na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A norma assegura aos povos indígenas o direito de serem consultados previamente sobre medidas administrativas ou legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente. No entanto, de acordo com a ação, apesar da proximidade e dos potenciais impactos diretos do empreendimento, até o momento ainda não havia sido feita qualquer consulta às comunidades indígenas.

Porém, nesta terça-feira (19), quando os representantes do empreendimento quiseram apresentar o projeto do aterro sanitário, o cacique Claudio da Silva, falando em nome das comunidades, se recusou a ouvir alegando que o projeto e o plano de trabalho já estão prontos e que os indígenas jamais foram consultados na sua elaboração.

“Está tudo errado desde o início, não teve consulta e agora eles querem fazer, mas já está tudo pronto. Era meio que um golpe”, afirmou o jovem cacique de 28 anos. “Já está tudo atropelado, já está no final e agora que querem fazer consulta?”, questionou.

Juntas, as duas aldeias indígenas reúnem cerca de 40 famílias, totalizando em torno de 200 pessoas.

Desde o ano passado, ambientalistas vêm protestando contra a construção do lixão metropolitano. A área proposta para o aterro sanitário está situada sobre sedimentos instáveis, o que aumenta o risco de vazamentos que poderiam contaminar tanto a água superficial, quanto a subterrânea. Se isso acontecesse, a contaminação das águas que abastecem a região metropolitana afetaria também comunidades locais e ecossistemas importantes, como a Área de Preservação Ambiental (APA) do Banhado Grande e o Banhado dos Pachecos.

Na ação, o MPF solicitou, com urgência, a suspensão imediata do processo de licenciamento que tramita na Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Além disso, pede que a Funai e o município de Viamão não realizem atos relacionados ao empreendimento sem a devida consulta aos guaranis. Por fim, pede que a Empresa Brasileira de Meio Ambiente (EBMA) seja proibida de realizar qualquer procedimento para a instalação do aterro até que a consulta seja realizada.

Segundo o MPF, as comunidades indígenas Mbya Guarani do Cantagalo manifestaram sua discordância com a instalação do aterro sanitário, temendo que o empreendimento possa afetar seu modo de vida, sua relação espiritual com o território, a fauna, a flora e os recursos hídricos da região. O MPF também destaca preocupação com o aumento do fluxo de veículos, especialmente caminhões e o consequente incremento da circulação de juruá (não indígenas) na região.

Com idas e vindas, a primeira tentativa de criar o aterro sanitário foi pleiteada por uma empresa ligada ao Grupo Vital Queiroz Galvão. A área para fazer o empreendimento na Fazenda Monte Verde foi arrendada do proprietário Arlindo Bianchini. O projeto, na ocasião, não foi adiante.

O advogado José Renato de Oliveira Barcellos, especialista em Direito Ambiental, recorda que o licenciamento prévio foi indeferido porque a empresa não apresentou os estudos no prazo indicado pela Fepam. Na ocasião, os responsáveis pelo negócio tentaram alegar dificuldades em função da pandemia do novo coronavírus.

A empresa então recorreu da decisão e a Fepam, após realizar uma vistoria na área em outubro, está analisando o recurso. Enquanto isso, o órgão ambiental emitiu a licença única, com validade até julho de 2028, beneficiando 12 endereços do empresário, incluindo a Fazenda Montes Verdes. A licença autoriza a colocação de resíduos em solo agrícola, tais como lodo da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), cinza de caldeira e resíduo de varredura.

Segundo a Fepam, esses resíduos “servem para dar ao solo os nutrientes que são necessários, sem a utilização de fertilizantes e adubo”, ação geralmente feita em área de pastagem ou plantação para preparação do solo. O processo, explica o órgão ambiental, é feito com o acompanhamento de engenheiro agrônomo e conta com a anuência do município de Viamão.

A notícia da licença única colocou novamente em alerta o movimento contrário ao aterro sanitário. Entre seus integrantes, há a suspeita de que a atual licença possa ser o “primeiro passo” para a concretização do aterro.

Barcellos destaca a existência de oito fontes d’água na área escolhida para criar o aterro, um enorme lençol freático considerado uma das melhores fontes d’água do Rio Grande do Sul. Por isso, alega que a área é sensível ambientalmente e corre risco de contaminação com a eventual criação do aterro sanitário.

“Essa contaminação coloca em risco não só as comunidades que vivem no entorno da região, como também ameaça três comunidades indígenas que vivem nas imediações, além de afetar várias unidades de conservação”, afirma. O advogado explica que os corpos hídricos se conectam com a APA do Banhado Grande, incluindo a nascente do rio Gravataí, um das mais importantes do RS, com conexão com o Guaíba e, por sua vez, com a Lagoa dos Patos e o oceano Atlântico. “Todo esse sistema hídrico está ameaçado por esse empreendimento.”


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