
Danichi Hausen Mizoguchi (*)
“Eu canto esse Brasil como quem faz uma prece
Para que ele resista
apesar da mão do progresso vazio
Que insiste em dizimá-lo”
(Maria Bethânia, em Amor, festa e devoção)
“E não nos interessa a trip cristã
De Dylan Zimerman
Ele ainda diria mais
Mas a canção tem que acabar, e eu respondi
O Deus que você sente é o deus dos santos
A superfície iridescente
Da bola oca
Meus deuses são cabeças de bebês sem touca”
(Caetano Veloso, Ele me deu um beijo na boca)
No começo de agosto do ano passado, com quatro apresentações no Rio de Janeiro, estreou a aguardada temporada nacional de Caetano Veloso e Maria Bethânia. O espetáculo já rodou por diversas capitais: Belo Horizonte, Curitiba, Belém, Recife, Brasília, Fortaleza, Salvador e São Paulo. Como era de se esperar, os fãs que abarrotavam os estádios e arenas deslumbraram-se com a grandiloquência do palco, da banda e dos telões e com a cumplicidade afetiva e musical dos irmãos nas mais de quarenta canções apresentadas ao longo de aproximadamente duas horas de show.
Provavelmente será também assim na noite de encerramento da turnê, que, em função do adiamento decorrente da enchente de maio do ano passado, findará em Porto Alegre, na Arena do Grêmio, no próximo sábado. Afinal, trata-se de uma digna celebração do encontro entre as reluzentes paralelas recôncavas. Há, porém, um momento de relativo desconforto na relação entre o palco e a plateia: é quando Caetano canta Deus cuida de mim – hino gospel recorrentemente tocado nos cultos das periferias do Brasil. Se não há a ira radical, como houve contra a guitarra elétrica de Alegria, alegria em 1967, ou vaias, como houve contra a versão de Um tapinha não dói em 2001, não se pode dizer que a música, um dos maiores sucessos no repertório de Kléber Lucas, vencedor do Grammy de melhor álbum de música cristã em língua portuguesa, não cause estranhamento.
Não que haja exatamente ineditismo na relação entre a música popular e a religião. Para ficar apenas em pouquíssimos exemplos célebres, poderia se citar o cultuado Tim Maia Racional, a recomendação de Gilberto Gil de que andar com fé não costuma falhar ou a defesa de um método caso se queira falar com Deus. Porém, no atual contexto brasileiro, binário e bélico, a polêmica se instaurou com força – e talvez seja à luz da trajetória artística quase sexagenária de Caetano e Bethânia que deve ser atravessada.
A sintonia afetiva entre Caetano e Bethânia é, desde sempre, evidente. Foi ele, por exemplo, quem, aos quatro anos de idade, homenageando a valsa de Capiba que à época fazia sucesso na voz de Nelson Gonçalves, escolheu o nome da caçula dos Viana Telles Velloso. Todavia, mesmo com toda óbvia sintonia, foram poucas as vezes em que compartilharam o palco. Em 1964, na companhia de alguns amigos como Tom Zé, Gal Costa e Gilberto Gil, apresentaram dois espetáculos no recém-inaugurado teatro Vila Velha: Nós, por exemplo e Nova bossa velha, velha bossa nova – apresentando pela primeira vez publicamente aquilo que, mais à frente, Caetano chamaria de sua participação na linha evolutiva da música popular brasileira. De lá pra cá, os irmãos santamarenses estiveram juntos em turnê em 1976, com Os doces bárbaros, quando dividiram o palco com Gal Costa e Gilberto Gil, e em 1978, quando fizeram seu primeiro show e gravaram seu único disco em duo. Por isso, 46 anos depois, na segunda e provavelmente última turnê conjunta, talvez fosse preciso perguntar: como apresentar essa relação peculiar? Em outras palavras, que show é esse que chega a Porto Alegre?
Talvez fosse possível imaginar, por exemplo, que o setlist acompanhasse um recorrido da trajetória comum, encadeando, de modo cronológico e linear, momentos marcantes e decisivos da história iniciada em 1946. Mas lá não estão nem a valsa de Capiba que originou o nome da filha mais nova de Dona Canô e seu Zeca, nem Nós, por exemplo, a canção que, em Doces bárbaros, homenageava a inauguração pública do grupo, nem Carcará, nem É de manhã, seus primeiros sucessos desde que se mudaram para o centro econômico do País. Não estão também a Maria Bethânia de Caetano, música em que, na passagem mais depressiva do exílio londrino, ele pedia que a irmã lhe escrevesse uma carta com boas notícias, nem Mora na filosofia, samba de Monsueto gravado por ambos em momentos distintos, nem Janelas abertas nº 2, cantada em conjunto pelos dois em um programa de televisão quando, ainda no exílio, Caetano pôde vir ao Brasil por poucos dias para participar das bodas de esmeralda dos pais, nem qualquer faixa de Drama, álbum de Bethânia produzido pelo irmão assim que voltou ao Brasil, em 1972. Não constam do repertório Purificar o Subaé, música com a qual, no começo da década de 1980, se colocaram juntos na tarefa ecológica de limpeza das águas do Recôncavo baiano, porque, tal qual em Alberto Caeiro, o rio da aldeia é mais belo do que todos os rios, nem Noite de cristal, canção clamada por ela no último disco de estúdio dele como um antiviral para a epidemia política que assolava o País, nem clássicos como Fera ferida, nem a imensa maioria das mais de 30 canções que ele escreveu para gravações originais dela. Do disco extraído do show de 1978, repetem-se apenas O leãozinho e Tudo de novo, esta última composta especialmente para a ocasião, que lá abria e aqui encerra o espetáculo, antes do bis com Odara. Não é possível, portanto, dizer que se trata de um recorrido – qualquer que seja.
O show começa com Alegria, alegria. E talvez este seja o começo porque é também a inauguração de uma posição singular que se repete no show – e que talvez seja seu traço. Foi com esta canção, especialmente em sua apresentação no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, com toda a celeuma e todas as vaias célebres da ocasião, que aquilo que certa vez Caetano chamou de verdade tropical se tornou público. De lá para cá, cantar o Brasil, para ele, é realizar o trabalho de traduzir o Brasil – o que, por princípio, não se faz pelo caminho retilíneo da doxa. Bethânia, por sua vez, descama sem pudores, quase que desde sempre, a camada mais emotiva desta mesma verdade tropical. Se ela é abelha rainha do cancioneiro nacional, é, principalmente, pela densidade intensa com que adentra nas baladas de amor – em sua quase totalidade, canções brasileiras. No ponto de encontro entre as perspectivas recôncavas, traduzir o Brasil é também aprofundar o Brasil: lê-lo, apaixonar-se por ele, cavoucá-lo, dizê-lo tal qual é, com seus paradoxos complexos, duros e belos, inventá-lo, acreditar nele. Para os irmãos, portanto, traduzir o Brasil é cantar uma espécie estranhíssima de crença no Brasil – é fazer valer uma espécie de confiança ativa em seu destino.
Talvez seja por isso que o show, dando conta ainda mais uma vez desta tarefa sempre infinita, seja quase um fractal do País. Na matemática, o fractal é um objeto dividido em partes semelhante ao objeto original: é quando o todo se repete nas partes. Neste caso, o show é a parte que se assemelha ao todo-Brasil. Há menções a Gal Costa e Gilberto Gil, há sambas de roda do recôncavo, há homenagens à negritude, aos povos originários, ao candomblé, à Bahia baiana, ao Rio baiano, à Mangueira, ao axé music. Há meta-homenagens à Tropicália e aos Doces bárbaros. Há Torquato, há Raul, há Gonzaguinha, há Chico (não sem Cauby), há Peninha, há Roberto. Há canções românticas – inclusive o quase brega de Caetano, ali onde Caetano é mais bethânio, com versões de Sozinho, Você não me ensinou a te esquecer e Você é linda. Há, estreando quase ao fim da turnê, a inédita Um baiana, canção que confronta a violência e a guerra através da imagem concreta e micropolítica da multidão que acompanha o Baiana system pelas ruas de Salvador: clamor por clareiras de paz. Há, enfim, tudo aquilo que precisa e merece estar numa celebração deste porte: a intermediação celebrada da multiplicidade de brasis.
Caetano, especialmente, nunca interpretou a ascensão neopentecostal exclusivamente por um viés negativo, mas, sim, como um fenômeno popular repleto de ambiguidades e complexidades. Nos anos 1990, quando assistia a programas evangélicos na televisão, já imaginava que a onda iria crescer e ganhar importância nos rumos do País – o que não quer dizer que “respeite qualquer mau-caráter que pregue alguma forma de fundamentalismo ou que use a religiosidade para dominar mesquinhamente as pessoas e para agredir outros grupos”, como, para usar os termos de um outro compositor baiano, fariam um pastor João e sua igreja invisível. Em 2017, Caetano classificou como “preconceito pseudochique” o repúdio de uma parcela da população contra a crença e os fiéis, e complementou: “Não está vendo o Brasil quem despreza os pentecostais e neopentecostais, que são maioria entre os pobres e pretos, sobretudo entre pretas pobres, e produzem o gênero musical mais buscado depois do chamado sertanejo”. Não há, portanto, adesão ao charlatanismo, anuência ao capitalismo predatório ou concordância com a sede de poder de alguns pastores e igrejas, mas interesse atento por um fenômeno contemporâneo entranhada e complexamente brasileiro. Em sua última participação no programa Roda Viva, em 2021, disse que considera um enriquecimento da vida ter acompanhado essa transformação da mente brasileira – vivida por ele inclusive familiarmente, já que seus dois filhos mais novos, Tom e Zeca, foram ou são evangélicos.
De acordo com o último censo, o País já conta com mais de 70 milhões de pessoas que se identificam como evangélicas – aproximadamente 22% da população total. Em 1980, este percentual era de apenas 6%. É claro que há uma adesão enorme dos fiéis, não só neopentecostais, a movimentos e pauta conservadores. Impossível esquecer, por exemplo, da expressão “terrivelmente evangélico”, utilizada por Jair Bolsonaro quando da nomeação de André Mendonça como ministro do Supremo Tribunal Federal, ou das presenças de Silas Malafaia, Marco Feliciano e Magno Malta como pilares do bolsonarismo.
Se a maioria do eleitorado evangélico no Brasil tende para a direita, Kléber Lucas foi um dos poucos pastores a se posicionar publicamente a favor de Lula no último sufrágio nacional. Quando ele e Caetano gravaram Deus cuida de mim, estávamos às vésperas da eleição de 2022 – uma das mais disputadas e decisivas de nossa história. Esteticamente, a gravação talvez tenha funcionado como um equivalente da Carta Pública ao Povo Evangélico escrita por Lula na reta final da campanha – com efeitos que, mesmo que não estatisticamente auferidos, talvez tenham contribuído, mesmo que minimamente, para o resultado final do pleito decidido por uma diferença inferior a 2%.
Nas últimas páginas de Verdade tropical, Caetano escreve que muitas vezes ouviu de amigos que entrava em muitas canoas furadas. Por exemplo, ao tratar elogiosamente as novelas, o pagode, a música de carnaval da Bahia ou o sertanejo. Foi assim também quando ele gravou o louvor de Kléber Lucas. Porém, desde sempre, é como inimigo do bom gosto – ou melhor, da cisão entre o bom e o mau gosto – que ele e Bethânia forjam sua posição de artistas. Para os irmãos santamarenses, a sociedade brasileira não se define por suas contradições, mas, antes e primordialmente, para usar uma expressão do senegalês Felwine Sarr, por suas venturosas e estranhas sínteses. E, assim, como, afinal, imaginar o Brasil atual sem o fenômeno popular evangélico – como fazer o trabalho de traduzi-lo sem guardar ao menos uma fatia para este fervor? É quase como, depois de Baiana System, Sepultura, Chico Science ou Joelma, imaginá-lo sem a guitarra elétrica, como queria o nacionalismo de esquerda em 1967, ou, depois de Claudinho e Buchecha, Furacão 2000, MC Kevin o Chris ou Mr. Catra, sem o funk favelado e lascivo, como queria o bom gosto universitário em 2001. Empiricamente impossível, obviamente.
Na letra de Meu coco, Caetano nos define como “Católicos de axé e neopentecostais, nação grande demais para que alguém engula” – definição um tanto diferente “da América católica que sempre precisará de ridículos tiranos” de Podres poderes. Fato é que, diante da necessidade de se fazer uma atualização cartográfica da imagem do País, para além do bem e do mal, a força neopentecostal não pode ficar de fora – virar a cara, torcer o nariz, fingir que não viu não são mais opções possíveis. Ao fim e ao cabo, a saída não é simples, como, afinal, nunca foi. Diante do cenário difícil que ainda é o nosso, entre Alegria, alegria e Odara, Caetano e Bethânia nos mostram que é fundamental saber amar, sofrer e dançar, mas além disso, como diz a canção de Iza também cantada no show, é preciso ser forte, ser foda, não fugir da luta nem perder o foco: é preciso ter “fé para enfrentar esses filhos da puta” – mesmo que seja uma irremovível fé no Brasil.
(*) Escritor e professor da Universidade Federal Fluminense.
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