
À primeira vista, a pintura As Mulatas, de Emiliano Di Cavalcanti, parece intocada no Palácio do Planalto, para onde foi devolvida na última quarta-feira (8). Um olhar técnico de especialista, no entanto, revela as marcas de quando a obra foi alvo de um ataque anti-democrático dois anos antes. Trata-se de uma escolha da equipe de restauro da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que decidiu manter no quadro os sinais de que ele foi vandalizado com rasgos, para preservar a memória do que aconteceu naquele dia.
A obra de Di Cavalcanti é a de maior valor econômico entre as vinte que foram restauradas pela equipe gaúcha. “Temos a imagem da obra sendo violentada a punhaladas. A pessoa derruba O Flautista, que fica em quatro pedaços; ataca a pintura e depois derruba um vaso cerâmico que fica em 180 fragmentos”, relembra a pesquisadora do Departamento de Museologia, Conservação e Restauro da UFPel, Andréa Bachettini. “Foi uma montagem de quebra cabeça e a restauração do vaso ficou mimética, mas para a pintura optamos por mostrar as cicatrizes do quadro por trás. Quem olhar o verso vai saber onde estão os rasgos”.

Por mais que aquele 8 de janeiro dificilmente seja esquecido, as obras voltaram ao Palácio do Planalto como se de lá nunca tivessem saído após um trabalho minucioso que levou meses. A equipe da UFPel montou um laboratório em Brasília, fez a pesquisa histórica das peças e um relatório individualizado de cada uma delas, preparou um manual de conservação e restauro e ainda levou um projeto de educação patrimonial às escolas.
A professora Andréa conta que docentes e alunos da UFPel se mobilizaram para ajudar na restauração das obras já no dia dos ataques. “Assistimos tudo pelas mídias sociais e percebemos que estavam destruindo tudo. Ficamos muito impactados com o que estava acontecendo. Naquele dia, redigimos um documento e encaminhamos para a reitora, que na segunda-feira colocou o curso de Conservação e Restauro a serviço das instituições atingidas”, diz.
Naquele momento, o trabalho da UFPel não se fez necessário porque já havia equipes trabalhando nas obras atingidas. O pedido para que os gaúchos se somassem aos esforços de restauro veio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) alguns meses depois.
“Nós aceitamos e, em três semanas, montamos um projeto muito completo com cinco metas – todas foram cumpridas”, orgulha-se Andréa. “Eles poderiam ter contratado uma empresa, mas a Universidade tem toda uma expertise por trás. Além do ensino, trabalha com extensão, pesquisa, e na UFPel temos um polo de patrimônio cultural e memória. Acho que foi uma decisão muito acertada”.
No total, 54 profissionais se envolveram no processo, entre professores da UFPel e da Universidade de Brasília (UnB), técnicos, alunos de graduação das duas universidades, alunos de pós-graduação e egressos da UFPel. Foram quase 2 mil horas de trabalho e um investimento de R$ 2 milhões para que as 20 obras fossem restauradas.
“Definimos que uma técnica, a Keli Scolari, ficaria tempo integral por 10 meses em Brasília junto de três egressos. Os demais professores se revezavam e iam a Brasília com grupos de três alunos”, relata Andréa. “Tivemos o problema das enchentes no Rio Grande do Sul, nosso aeroporto fechou, as passagens foram canceladas. Precisamos fazer uma reestruturação do cronograma, mas mesmo assim conseguimos cumprir o prazo inicial”.

Além do icônico quadro de Di Cavalcanti, a restauração de outras duas obras marcou a professora Andréa e sua equipe. O Flautista, uma escultura em metal do brasileiro Bruno Giorgi, tem 2,10 metros de ferro e bronze. “É impressionante a brutalidade que a obra sofreu”, comenta a docente da UFPel.
Já a escultura Vênus Apocalíptica Fragmentando-se, da artista argentina Marta Minujín, foi lançada do terceiro andar do Palácio do Planalto e encontrada no jardim “É um busto em bronze com cerca de 80 centímetros de altura por 60 de diâmetro. Foi lançada para quebrar os vidros, ficando com fraturas e ranhuras”, afirma Andréa.
A obra Bird, de guache sobre papel, é do artista inglês Martin Bradley. A pintura foi arrancada de sua moldura e amassada. Andréa lembra que a obra estava sem título e sem autoria no dossiê do Iphan. Através da assinatura presente na pintura, a equipe se aprofundou na pesquisa histórica e descobriu que foi doada por Assis Chateaubriand a Juscelino Kubitschek para a montagem de uma pinacoteca no Palácio da Alvorada.
“Ter a oportunidade de restaurar essas obras foi gratificante, profissionalmente, mas também como cidadãos. Devolvemos para a população brasileira essas obras de novo na sua integridade física. E que elas nunca mais passem por isso”, pontua Andréa.
Sobre a função da Universidade de fazer a manutenção da democracia, a docente lembra que o ambiente acadêmico é formador de cidadãos. “A própria universidade elege seu reitor, seu diretor de unidade. Essa experiência democrática é vivida no dia a dia. Isso é muito importante ser passado também para a população. Restaurando essas obras, a universidade contribui para a preservação do patrimônio que é nacional brasileiro. Ainda estamos aqui, sobrevivemos ao atentado, e vamos seguir em frente. Reconstituindo esses pequenos fragmentos do que aconteceu, mostramos que a universidade pública está viva”.
Relação das obras restauradas:
– Idria (Majolica Italiana) – vaso cerâmico;
– Galhos e Sombras – escultura em madeira de Frans Krajcberg (artista polonês, naturalizado brasileiro);
– O Flautista – escultura em metal de Bruno Giorgi (artista brasileiro);
– Vênus Apocalíptica Fragmentando-se – escultura em metal de Marta Minujín (artista argentina);
– “Bird” – Guache sobre papel, de Martin Bradley (artista inglês);
– Músico 01 (Pentíptico 1) – conjunto de cinco telas de Glênio Bianchetti (artista brasileiro);
– Músico 02 (Pentíptico 2) – conjunto de cinco telas de Glênio Bianchetti (artista brasileiro);
– Músico 03 (Pentíptico 3) – conjunto de cinco telas de Glênio Bianchetti (artista brasileiro);
– Músico 04 (Pentíptico 4) – conjunto de cinco telas de Glênio Bianchetti (artista brasileiro);
– Músico 05 (Pentíptico 5) – conjunto de cinco telas de Glênio Bianchetti (artista brasileiro);
– Retrato de Duque de Caxias (atribuído) – Oswaldo Teixeira (artista brasileiro);
– Cena de Café – Clóvis Graciano (artista brasileiro);
– Borboletas e Pássaros (atribuído) – Grauben do Monte Lima (artista brasileira);
– Rosas e Brancos Suspensos – José Paulo Moreira da Fonseca (artista brasileiro);
– Casarios – Dario Mecatti (artista brasileiro);
– Paisagem do Rio – Armando Viana (artista brasileiro);
– “Cotswold Town” (pintura abstrata) – John Piper (artista inglês);
– Pintura “Sem título” – Dario Mecatti (artista brasileiro);
– Matriz e grade no 1º plano – Ivan Marquetti (artista brasileiro).
– Mulatas à mesa (atribuído) – Emiliano Di Cavalcanti (artista brasileiro).