Opinião
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26 de novembro de 2024
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09:10

“Surto – um fauno em suspenso: o corpo que não quer calar” (Coluna da APPOA)

Foto: Naira Pinz
Foto: Naira Pinz

Ângela Becker e Chaveli Kinn (*)

Nos dias 4 e 5 de novembro pudemos assistir no CHC da Santa Casa um espetáculo intenso, dramático e corajoso! Sensível, poético, mas também forte e agressivo como as invenções coreográficas de Nijinsky! Deus da dança, como era chamado, Nijinsky, bailarino e coreógrafo que revolucionou a dança do seu tempo foi dramaticamente dançado e representado por Consuelo Vallandro, com direção de Maria Waleska Van Helden. 

Através do conteúdo dos seus 4 cadernos de diários, Nijinsky compartilhou com o mundo seus sofrimentos, contradições e delírios. Ficou mundialmente conhecido por sua técnica brilhante e revolucionária de ballet e também por sua loucura.

A obra de Waleska coloca em questão a história de vida e as produções desses artistas que perderam a razão. “O que é “perder a razão””? É não poder ser levado a sério? As razões do sofrimento psíquico estão sempre imbricadas no sofrimento social que circula dentro do seu tempo. Lacan diria que não há eu sem o Outro, isto é, não há sofrimento individual que não esteja relacionado com o contexto histórico que se vive, com as questões que circulam, de forma consciente ou não. Como todo artista imbuído das questões do seu tempo, Nijinsky não poderia ficar indiferente diante das violências das guerras, das desigualdades sociais e da exposição da miséria humana. Seu corpo desde cedo aprendeu a se expressar pela dança e pelas técnicas circenses que seus pais praticavam. E foi através desta escrita dançante que ele expressou ao mundo suas contestações. 

 Em 1912-13 nas coreografias “Aprés-midi d’un faune” e “A Sagração da Primavera” ousou movimentos e posturas que quebravam a harmonia e a leveza do ballet clássico. Levou ao palco a expressão do agressivo, do erótico, do emocional. Encontrou nas músicas de Claude Debussy e em Stravinsky as dissonâncias que davam vigor à sua coreografia rebelde e inovadora. Toda suavidade e simetria sustentada pelo ballet clássico foi rompida, o que provocou reações de fascínio e de horror nas plateias.

A coreografia dirigida por Waleska e interpretada por Consuelo traz a intensidade dramática deste artista que se entregou de corpo e alma às suas criações. Assim pudemos sentir como plateia os excessos que Nijinsky levava ao palco através dos gritos da atriz expressando frases de seus diários, como: “As pessoas não me sentem!”, “Eu tenho medo de gente!” ou “Águias não deixam pássaros menores viverem!”.

Também pudemos sofrer junto com ele ao ser calado e aprisionado num manicômio, lugar onde seu corpo não podia mais se expressar, não podia mais dançar. Assim, nos seus últimos trinta anos de vida passou a escrever e querer preservar seus escritos com sua caligrafia. Expressão corporal que lhe restituiu a voz: sua mão ainda poderia dançar. Então, sujeito de suas ideias, na insistência de seus dizeres,  fez seu corpo deslizar através das letras.   

Nijinsky foi não só um bailarino, encantador e subversivo, mas também um homem, um menino. Um bobo da corte, um animal, um palhaço, uma divindade? Um gênio incompreendido, um enlouquecido, depois excluído, que restou aprisionado. Um sujeito do seu tempo, demandante de maior liberdade para expressões que estavam à frente do seu tempo.

Foi no palco que o público pode assistir à encenação das genialidades e dramas vividos por Vaslav Nijinsky. Foi com o corpo que buscou o olhar e o reconhecimento das questões que exigiam expressão, seja profissionalmente, seja no âmbito de sua vida particular, envolvido em romances homoafetivos, manipulado em suas relações de trabalho, e depois apaixonando-se por sua esposa. Quando encontra somente desaprovação, desprezo e exclusão, sucumbe. Resta em surto.

O espetáculo dirigido por Waleska traz um belíssimo misto de expressões artísticas que passam pela representação teatral, circense, musical e dança. Ainda ganha destaque especial uma curiosa substituição de materiais usados como recursos na encenação. Nijinsky (interpretado por Consuelo Vallandro) envolto por longos tecidos, dança, desliza e se embala, realiza acrobacias e movimentos perfeitamente calculados e executados, de forma tão precisa que hipnotiza os espectadores. Acompanhamos uma sequência de movimentos que, ao final, resultarão na possibilidade de ele flanar, voar sem ter asas, seguro e envolvente sob nosso olhar atento. O corpo entregue, solto, suspenso, em claro deleite e fruição.

Algumas cenas depois, acompanhamos duvidosos a instalação de uma espessa, única e longa corrente de aço. A aproximação do bailarino e o início da execução da mesma sequência de movimentos, antes realizados com os tecidos, nos põem incrédulos e tensos, pois se fica diante da potência e da coragem, do risco e do absurdo impressos ao mesmo tempo, na mesma cena. E eis que nesta cena, Consuelo transmite ao espectador a revolução de Nijinsky no seu dançar, que insiste em deslizar e se embalar, apesar das correntes.  Destacam-se o som e a imagem do atrito das correntes umas nas outras, e em seu corpo. Cena inesperada, provocativa, que nos desacomoda e convida a alguns questionamentos. 

Pudemos pensar que o espetáculo problematiza e convida a refletir sobre as diferentes formas de constituição e expressões subjetivas. Convida a pensar no que é a loucura e como se faz frente, como se expressa, como o corpo fala com a dança, como se vive apesar do que aprisiona, molda, submete e aliena?  De que formas e até que ponto é possível resistir aos discursos e às realidades que enclausuram?  Quais formas de padecimento são engendradas por interpretações e texturas frias, ásperas, duras, e limitantes quando incidem sobre os sujeitos e seus corpos, com suas formas singulares de expressão e existência? O que restará de nossa subjetividade se nossos corpos são emudecidos em discursos padronizados? 

“SURTO – UM FAUNO EM SUSPENSO” é um convite à dança, pois a retira de um lugar idealizado e impessoal e anuncia a possibilidade de dançarmos cada um a seu modo, como expressão de cada sujeito com suas questões, com sua história.

Como um convite feito por Consuelo Vallandro, junto com Nijinsky: Bailemos todos, cada um ao seu modo, o quanto pudermos, apesar do que insiste e ressoa como aprisionamento.

(*) Ângela Becker é psicanalista, membro da APPOA. Mestre em Psicologia Social e Institucional, doutora em Psicanálise e Dança pela Université Paris XIII. Coordenadora do Seminário Corpo (em)Cena oferecido pela APPOA. (angelalbecker@gmail.com)

Chaveli Kinn é psicanalista, membro da APPOA. Especialista em Atendimento Clínico pela UFRGS e  Clínica dos Transtornos do Desenvolvimento na Infância e na Adolescência pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre. Frequentadora do Seminário Corpo (en)Cena. (chavelid@gmail.com)

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