
O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) se elegeu vereador de Porto Alegre em 2020 dentro de um contexto que ficou marcado pela ascensão da chamada Bancada Negra na Câmara Municipal. Dois anos mais tarde, elegeu-se deputado estadual como o parlamentar mais votado em Porto Alegre, com mais de 50 mil votos na Capital. Nesta eleição municipal, Matheus se engajou fortemente no apoio a candidaturas para a vereança, ajudando a eleger, em Porto Alegre, Grazi Oliveira e Atena Roveda, pelo PSOL, para os seus primeiros mandatos na Câmara. Nesta quarta-feira (30), ele recebeu a reportagem do Sul21 em seu gabinete na Assembleia Legislativa para uma conversa sobre os resultados finais da disputa municipal.
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Para o deputado, a derrota do campo progressista de Porto Alegre, reunido em torno da candidatura de Maria do Rosário (PT), passa por dificuldades enfrentadas antes e durante a campanha, o que inclui erros de estratégia, mas também passa por uma estrutura montada pelo agora prefeito reeleito Sebastião Melo (MDB).
“Não acho que o Melo representa um projeto de mobilização, eu não acho que exista um amplo engajamento na campanha dele. Eu penso que teve um movimento que foi aquela força da inércia, que, na Física, é quando um corpo está resistindo à mudança. Então, prevaleceu em Porto Alegre um conservadorismo. A gestão do Melo tinha um índice de popularidade importante até as enchentes, depois passou a ser amplamente questionada e nós não conseguimos posicionar uma alternativa de mudança diante disso”, diz. “É óbvio que, olhando para a Prefeitura, nós tivemos uma derrota, que expressa as dificuldades da esquerda e também os problemas que a cidade como todo acumula. Eu acho que a continuidade do projeto do Melo é ruim pra cidade em todas aspectos. Nós não conseguimos demonstrar isso”.
Matheus Gomes destaca que o prefeito Melo foi muito bem sucedido, em seu primeiro mandato, em utilizar a máquina pública não apenas a seu favor, mas contra a oposição. “O Melo funciona de que maneira nas comunidades? Ele não atende aos pedidos que a oposição apresenta para mexer numa boca de lobo, melhorar um sistema de iluminação numa rua, coisas básicas e importantíssimas na vida das pessoas. Ele pega os nossos pedidos, vai lá e passa para os vereadores que são da base dele, para dizer dentro das comunidades, na boca miúda: ‘ó, esses vereadores aqui de oposição, eles não trabalham’. Mas, na verdade, ele usa a máquina contra nós. Então, como a gente contrapõe isso? Tendo presença, fazendo uma disputa que é no concreto para melhoria das condições de vida das pessoas e, ao mesmo tempo, também discutindo uma posição política e ideológica de projeto que seja diferente da maneira como eles operam. Um tema que é muito importante na cidade de Porto Alegre e pouco discutido pela esquerda, a forma como as emendas parlamentares estão criando redutos eleitorais da direita e da extrema-direita. Nós deixamos de ser a cidade do Orçamento Participativo para ter hoje emendas parlamentares que são três, quatro vezes maiores do que o que é executado pelo OP”, diz.
Confira a seguir a íntegra da conversa com Matheus Gomes.

Sul21 — Qual é o saldo que a esquerda tira dessa disputa municipal?
Matheus Gomes: A gente teve uma derrota na disputa da Prefeitura e isso é grave para a cidade de Porto Alegre como um todo. Não acho que o Melo representa um projeto de mobilização, eu não acho que exista um amplo engajamento na campanha dele. Eu penso que teve um movimento que foi aquela força da inércia, que, na Física, é quando um corpo está resistindo à mudança. Então, prevaleceu em Porto Alegre um conservadorismo. A gestão do Melo tinha um índice de popularidade importante até as enchentes, depois passou a ser amplamente questionada e nós não conseguimos posicionar uma alternativa de mudança diante disso. Eu acredito que Porto Alegre, nessas eleições, poderia ter optado por uma alternativa de mudança e esse sentimento não prevaleceu no decorrer das eleições. Então, eu vejo mais isso na reeleição do Melo, do que, bom, um aval à continuidade de um projeto que está indo muito bem, que tem amplo apoio. Não me parece que é exatamente isso, tanto que há esse debate a ser feito sobre o crescimento das abstenções, dos votos brancos, nulos, que somados são mais representativos do que a votação que ele obteve. Isso não era um fenômeno normal na cidade de Porto Alegre se a gente observa a sequência histórica de eleições. Está muito conectado com a última década e a crise de representatividade, todo esse movimento de questionamento à estrutura da democracia liberal do nosso País, que, em Porto Alegre, por alguns anos, foi uma democracia participativa em desenvolvimento, em contraposição ao sistema, depois deixou de ser e hoje cada vez menos nós conseguimos identificar uma empolgação da população em participar do processo eleitoral. Então, é óbvio que, olhando para a Prefeitura, nós tivemos uma derrota, que expressa as dificuldades da esquerda e também os problemas que a cidade como um todo acumula. Eu acho que a continuidade do projeto do Melo é ruim pra cidade em todas aspectos. Nós não conseguimos demonstrar isso.
Sul21 — Quais foram as dificuldades de demonstrar essa opinião que a oposição tinha de que a continuidade do governo era ruim, das falhas do governo Melo. O prefeito conseguiu aplicar uma imagem na campanha que é quase de um personagem, o Melo do chapéu de palha, depois pegou para si a ideia do chinelão. Só que as falhas e fracassos do governo dele acabaram não aparecendo tanto na campanha, excetuando a enchente, que foi uma pauta marcante. O Melo tinha como projetos principais revitalizar o Centro e o 4º Distrito, que ficaram embaixo d’água, e foram projetos que fracassaram. Por que foi tão difícil desconstruir o governo Melo nessa campanha?
Matheus Gomes: Eu creio que, para a população em geral, quando a gente conversa com as pessoas nas ruas do Centro ou nas periferias, poucos são aqueles que dizem que a vida melhorou e que a cidade de Porto Alegre é um lugar melhor para viver do que há quatro anos. São poucas essas pessoas. Então, a grande questão do Melo é como ele conseguiu aglutinar em torno dele o potencial de mobilização da extrema-direita. Isso é algo para a gente refletir. Em momento algum, ao longo de 2024, a extrema-direita questionou a candidatura do Melo. Não surgiu nenhum possível candidato, nenhuma alternativa pela extrema-direita, esse foi um fenômeno que ocorreu em várias cidades. São Paulo é o maior exemplo. Então, o Melo aglutinou todo o potencial de mobilização da extrema-direita, todas as frentes de articulação empresarial. Toda a burguesia estava com ele, construção civil, setor de serviços, comércio, os monopólios da comunicação blindando ele. E, por outro lado também, os principais influenciadores digitais de Porto Alegre, que disseminam fake news numa lógica da extrema-direita, também blindavam o Melo. E ele usou a máquina pública para se inserir nas periferias, cooptou muitas lideranças. Construiu um sistema de presença nos bairros para fazer disputa política, não foi para trazer melhoria. Olha lá para bairros que o Melo ganhou, a situação da urbanização lá no Mário Quintana está tão ruim quanto estava quatro anos atrás, mas tinha gente lá disputando política, construindo narrativa. Então, o Melo montou esse sistema muito bem articulado em diferentes camadas da sociedade. Pra mim, esse foi o grande diferencial, não foi algo construído nas eleições, foi uma ideia projetada ao longo do governo. Então, aí o erro da esquerda também em não conseguir, já há alguns anos, montar uma estrutura que conseguisse enfrentar tudo isso. Na minha opinião, a esquerda precisava ter tido já, primeiro na esfera partidária, mais diálogo, mais construção de estratégia comum. Na esfera dos movimentos comunitários, a mesma coisa. Olhando para toda a estrutura de movimento social mais tradicional, do ambientalismo, movimento sindical, de estudantes, deveríamos ter feito o mesmo. Faltou uma inteligência comum para a esquerda ao longo dos últimos anos na cidade de Porto Alegre. Mais diálogo, mais humildade de reconhecer que as análises que a gente estava fazendo eram insuficientes, então era melhor que a gente estivesse mais conectado para pensar as nossas estratégias pra cidade. Porque, se a gente realmente tivesse feito isso, nós poderíamos ter tido um movimento que enfrentasse mais. E óbvio que, assim, há uma limitação da conjuntura a nível nacional. Foram poucas as cidades em que a gente viu mobilização real por parte da esquerda ou de um campo progressista de maneira mais ampliada para enfrentar a direita e a extrema-direita. Agora, em Porto Alegre, eu acho que nós tínhamos caldo para fazer isso. Eu lembro que, lá no início do ano, na votação do Conselho do Plano Diretor, milhares de pessoas se mobilizarem, isso é algo que não acontece em praticamente nenhuma capital do Brasil. Então, pega isso, pega a articulação comunitária que nós vimos nas periferias durante as enchentes, com muita gente identificada com o nosso projeto, fazendo uma oposição ao Melo. Junta o que existe de movimento de juventude, da cultura, espalhados em diferentes segmentos. Nós deveríamos ter aglutinado tudo isso.
Sul21 — E como se constrói isso?
Matheus Gomes: Na minha opinião, era justamente a esquerda se propondo a construir um movimento, e não aparecer apenas como uma projeção eleitoral, um o movimento de unidade eleitoral. Nós deveríamos ter um movimento de unidade político-social. Vocês me ouviram falando isso em alguns momentos ao longo dos últimos anos. Eu quero defender essa ideia, quero botar ela para discutir. Nós precisamos pensar o que dá para fazer diferente.

Sul21 — Mas isso são mais reuniões, mais assembleias, são plataformas inovadoras, uma forma de maior inserção digital, como é que tu acha que isso se operacionaliza na prática? Porque também tem a questão de que muita gente não quer participar desses movimentos ou talvez não saiba como participar?
Matheus Gomes: Todos esses elementos que tu falou, na minha opinião, são úteis para nós. Eu não quero retomar aqui experiências que ocorreram no passado e reproduzi-las de forma automática no presente, coisas que deram certo nessa perspectiva de mobilizar e aglutinar o nosso campo. Lá atrás, um orçamento participativo, eu vivi experiências de assembleias. Não acho que é isso o que nós temos que fazer, nós temos que dialogar a partir da nossa realidade. Então, por exemplo, durante as enchentes, eu acho que faltou uma coordenação comum entre todas as iniciativas que o nosso campo estava organizando. Num determinado momento, eu acho que nós deveríamos ter feito uma exigência pública ao prefeito Sebastião Melo que, se o prefeito não tem condição, naquele colapso do poder público em meio as enchentes, de olhar para todos os territórios, onde nós estamos presentes queremos atuar para articular junto a saída para aquela situação. Na minha opinião, era o que dava para fazer num sentido de unidade. Não era unidade política, era unidade para fazer ajuda humanitária e ponto. Mantendo as nossas diferenças, mantendo tudo o que a gente estava fazendo naquele contexto. Nós não conseguimos articular as nossas iniciativas de presença comunitária, que foram muitas. Acho que, de maneira pontual, nós estivemos presente em praticamente todos os territórios afetados da cidade de Porto Alegre. Quando que isso apareceu como um corpo, como um movimento que se encontrou para trabalhar uma visão comum sobre o que dava para ter sido feito diferente ao longo das enchentes? Nenhum momento. A fragmentação foi total. Isso poderia ter acontecido através de instrumentos digitais. Muitos de nós se envolveram nos resgates ou no auxílio aos resgates, através de pedidos que chegavam e encaminhavam. Bom, nós poderíamos ter tido uma plataforma digital que demonstrasse todo esse trabalho e comunicasse essas pessoas do que nós estamos fazendo ali. Da mesma forma, as redes de cozinha solidária, as redes de distribuição de água, de recolhimento de doações e distribuição de doações, de auxílio nas mais diversas maneiras, de construção de abrigos e tal. Nós tínhamos que ter construído uma conexão ali, porque essa seria uma força social que poderia contrapor a presença que o Estado, e aí eu falo do Melo, construiu através da máquina. Foi um elemento importante para ele nos territórios afetados. Então, é desse tipo de coisa que eu estou falando. É da gente que está, tanto na articulação social de base e na estrutura política, que é o meu caso, ter uma visão de que, em determinado momento, a força do inimigo é tão grande que não basta a gente estar preocupado apenas com o que nós estamos fazendo aqui a partir do nosso grupo, nós precisamos criar rede de conexão entre um todo. Senão, a nossa resistência é muito bonita, ela é heroica, reconhecida por quem está no nosso entorno, mas não consegue se sobrepor na hora da disputa política geral.
Sul21 — A gente fala muito de renovação da esquerda, das dificuldades, isso se falava do PT, mas também acho que já afeta o PSOL, o PCdoB. Mas Porto Alegre, de alguma forma, tem sido um exemplo de renovação, ao menos na Câmara de Vereadores, de 2020 para cá. Tivemos a Bancada Negra e a bancada eleita agora é bastante renovada, inclusive com “surpresas” que não estavam entre as candidaturas mais cotadas. O esforço que se fez nesse período eleitoral deu muito certo. Qual tu acha que é a grande dificuldade que se tem ou que se pode ter a partir de agora para pensar que essa renovação também chegue na disputa majoritária?
Matheus Gomes: Esse é o ponto positivo da esquerda nas eleições de 2024. A gente conseguiu ter uma ótima votação para o legislativo municipal. Elegemos 12 vereadores diretamente identificados com a candidatura que se opôs ao Melo no segundo turno. Isso numa perspectiva de renovação em vários aspectos, juventude, trabalhadoras trans, mulheres negras, pessoas que representam pautas que estão em voga para o conjunto da sociedade, não acho que é só para determinados nichos, é para o conjunto. Então, isso mostra a vitalidade. Nós somos uma força real na cidade e, exatamente por isso, devemos nos pensar enquanto alternativa de poder. Não podemos ficar restritos. Eu não acho que é uma devassa geral o que aconteceu com a esquerda na cidade de Porto Alegre, bem pelo contrário. Nós temos vocação para disputar o poder, agora não conseguimos criar uma força política que fosse ainda majoritária para o conjunto da sociedade. Esse é nosso grande desafio para os próximos quatro anos. E aí, bom, essa articulação é extremamente importante. Eu espero que esses mandatos não pensem apenas na perspectiva da atuação parlamentar. Hoje, na nossa sociedade, pela forma de difusão da informação, por todo o peso do digital, todas as transformações que a gente viu e também pela crise das próprias instituições da democracia representativa, nós precisamos que os mandatos tenham uma conexão permanente com as comunidades e com os setores sociais que eles representam. Que sejam mandatos com muita preocupação com a organização das pessoas, seja através das redes sociais ou por território, local de trabalho ou ambiente de representação, como é o caso, por exemplo, da nossa bancada do arco-íris agora, que é uma grande conquista, ter uma representação da comunidade LGBTQIA+. As LGBTs estão por todos os lugares da sociedade, é uma maneira da gente estar penetrando, construindo uma força política extremamente importante. Eu espero que os mandatos trabalhem nessa perspectiva, o que, na minha opinião, é o que está faltando. Inclusive, a única forma que nós vamos conseguir contrapor a um governo que vai continuar mexendo com a rede que eu já falei aqui anteriormente que foi constituída nos últimos quatro anos e nós vamos ter muita dificuldade.
O Melo funciona de que maneira nas comunidades? Ele não atende aos pedidos que a oposição apresenta para mexer numa boca de lobo, melhorar um sistema de iluminação numa rua, coisas básicas e importantíssimas na vida das pessoas. Ele pega os nossos pedidos, vai lá e passa para os vereadores que são da base dele para dizer dentro das comunidades, na boca miúda: ‘ó, esses vereadores aqui de oposição, eles não trabalham’. Mas, na verdade, ele usa a máquina contra nós. Então, como a gente contrapõe isso? Tendo presença, fazendo uma disputa que é no concreto para melhoria das condições de vida das pessoas e, ao mesmo tempo, também discutindo uma posição política e ideológica de projeto que seja diferente da maneira como eles operam. Um tema que é muito importante na cidade de Porto Alegre e pouco discutido pela esquerda, a forma como as emendas parlamentares estão criando redutos eleitorais da direita e da extrema-direita. Nós deixamos de ser a cidade do Orçamento Participativo para ter hoje emendas parlamentares que são três, quatro vezes maiores do que o que é executado pelo OP.
Sul21 — Só para a gente deixar claro para quem não conhece, emendas parlamentares impositivas em Porto Alegre são uma novidade. Elas não existiam até a gestão passada (foram criadas em 2019).
Matheus Gomes: Exatamente, e elas estão fazendo justamente essa domesticação da política através de pessoas que têm poder, que têm relações e conseguem executar as emendas e fazer delas um instrumento de controle, não um instrumento de emancipação política, de participação da sociedade. É um mecanismo de controle. Eu acho extremamente preocupante isso. Nós precisamos parar e discutir com as pessoas o efeito que isso está tendo. Então, penso que os mandatos precisam estar trabalhando nessa perspectiva, porque aí a renovação ela se fortalece com as lideranças que estão lá, mas também se fortalecem numa ideia de força social que vai para o embate daqui a quatro anos para lutar por um projeto. É isso que a gente precisa almejar.
Sul21 — Existe no senso comum, ou numa bolha, uma ideia de que o Melo, depois das enchentes, seria um candidato facilmente derrotado. Por tudo que tu explicou aqui pra nós, ele tinha uma estrutura muito forte, muito pesada e difícil de enfrentar. Como tu acha que era possível ter derrotado Melo, não digo com outro candidato, mas com outra outro olhar para a campanha? Ou essa estrutura, de fato, era um adversário muito difícil, levando em conta também o personagem que ele construiu na campanha ter sido um “sucesso” de marketing?
Matheus Gomes: Eu nunca achei que o Melo seria um candidato fácil de derrotar. Se a gente fizer uma análise de 2022 para cá, porque o Melo foi eleito em 20, vivemos no primeiro ciclo. Bom, já temos uma primeira questão para debater. Em 2022, o Lula fez mais de 470 mil votos em Porto Alegre, é uma votação superior a que o Melo teve agora nessas eleições. Fazendo um comparativo, nós tivemos dificuldade de nos conectarmos com esse eleitorado do Lula, que pega a esquerda, mas é bem mais amplo do que a esquerda. Tem muita gente que fez uma análise mecânica: ‘Lula ganhou em Porto Alegre, a esquerda vai ganhar’. E aí começou uma armação política errada que não nos posicionou para a guerra que seria uma eleição municipal com toda essa estrutura que o Melo tem a sua disposição, e também fez com que a gente construísse uma chapa mais restrita ao campo da esquerda, achando que o eleitorado do Lula era só a esquerda. Nós deveríamos ter feito um movimento mais amplo, na minha opinião. Ter buscado desde o princípio a Juliana Brizola, por exemplo, para estar a partir do primeiro turno já conectada nesse projeto. Porque o Melo realmente representa o perigo do bolsonarismo. Eu não acho que o Melo é uma figura de centro. O centro aqui em Porto Alegre é o bolsonarismo ampliado. É dessa maneira que as coisas funcionam. Para ele, é interessante se posicionar nessa forma na atual conjuntura, porque ele consegue fazer o que aconteceu nessa eleição, penetrar numa parte do eleitorado lulista, penetrar numa parte do eleitorado mais de centro e tal. Agora, na prática, as políticas que ele desenvolveu foram ditadas nos últimos quatro anos pela extrema-direita. Então, essa demonstração deveria ter ocorrido para nós de forma mais enfática na maneira como a nossa candidatura construiu o embate, mas também na estratégia que nós deveríamos ter construído. E aqui eu não acho que é algo que é comum agora nas análises, ‘Ah, mas então tu está me dizendo que nós deveríamos ter buscado mais o centro’. Não é uma questão de moderação do discurso ou uma radicalização do discurso, é saber o que dizer, como penetrar nos bairros, como entrar nas comunidades, como trabalhar com os setores que construíram uma posição ativa, mas que não estavam necessariamente vinculados aos partidos agora, que eram críticos à gestão do Melo. E, a partir daí, a gente realmente dar corpo a um movimento de oposição. Isso é um primeiro tema.
O segundo é que, eu creio que a disputa política deveria ter começado já durante as enchentes. Foi essa postura que eu tentei adotar. Enquanto estava lá organizando uma rede de auxílio aos resgates, de ajuda humanitária, também fazia disputa política. Não acho que o momento da disputa política, ouvi isso de alguns dirigentes partidários, de diferentes campos do ambiente progressista, era depois. Eu acho que isso estava totalmente errado. Não porque eu não gostaria que fosse assim, eu até gostaria, mas a extrema-direita estava disputando desde o primeiro momento e blindando o Melo numa rede de mentiras, que nós tivemos mais dificuldade de desconstruir depois. Então, nós já deveríamos ter feito um trabalho combinado ali, auxílio humanitário intenso, como boa parte da esquerda fez, mais conectado com uma visão unificada de que aquilo era um movimento de resistência à falência do Estado, para dialogar inclusive com o sentimento da população de Porto Alegre que estava ali dizendo que estava pela sua própria conta. E, ao mesmo tempo, disputa a política para construir uma narrativa sobre de quem era a responsabilidade. Em 20 de maio, nós apresentamos documentos que mostravam como o Melo tinha sido avisado sobre a questão das enchentes e não fez nada. Depois, teve outro grande tema que foi a Fraport e a irresponsabilidade do Melo ali em toda aquela região, o que gerou um dano bilionário para a cidade de Porto Alegre, para o Estado do Rio Grande do Sul e para o Brasil. Outras denúncias apareceram ao longo desse período, nós precisávamos ter feito isso de maneira mais intensa. Não dava para ter união e reconstrução com o governo do Sebastião Melo, porque ele não estava disposto a isso, não está. Ele, o tempo inteiro, assim como o Eduardo Leite, eles fizeram a disputa política contra as ações do governo federal, contra a esquerda e o campo progressista. Então, nós nos retiramos, em algum momento, de determinados embates, enquanto os outros não se retiraram. E aí, é óbvio que quem faz isso acaba recuando, às vezes sem perceber, e infelizmente foi o que aconteceu conosco.
Sul21 — Vou te fazer uma pergunta que eu não sei se não é no tom certo, mas acredito que tu vai entender onde eu quero chegar. A esquerda muitas vezes tenta ter uma postura de alguma forma altiva. O exemplo que tu deu agora: ‘não é o momento de fazer a disputa política’. E a gente sabe que a extrema-direita, que conduziu o Melo à reeleição, não está nem aí para nenhum valor ético da disputa política. Eles fazem o jogo mais rasteiro, trouxeram o Marçal para cá para Porto Alegre…
Matheus Gomes: O Nego Di era um dos maiores defensores do Melo.

Sul21 — Tu não acha que falta, olhando para as próximas eleições também, jogar mais esse jogo e tentar manter apenas essa posição mais altiva? Se é para fazer o jogo sujo, tentar disputar com essa galera no campo deles também?
Matheus Gomes: Nos falta um entendimento comum sobre o que é a estratégia da extrema-direita, como ela opera. Porque, a partir daí, eu não quero jogar o jogo deles. Eu quero que a gente desloque a força da opinião para o nosso lado. Eu não vou fazer o jogo sujo deles e nem entrar numa ética que não condiz com os meus valores, mas preciso ter uma linha correta, um entendimento real do inimigo, para melhor combater ele. Para mim, essa é a grande questão que, durante as enchentes, nós não conseguimos fazer na cidade de Porto Alegre, porque, desde o primeiro dia, eles fizeram disputa política em todos os níveis, com muita intensidade, com dinheiro entrando, porque o Marçal vem para cá e traz junto com ele outros influenciadores de peso a nível nacional, isso envolve dinheiro. Cada like, cada visualização naquele período, é rendimento financeiro. Isso é um jogo muito pesado, que, enfim, a gente nesse caso concreto não conseguiu combater. E aí, óbvio, o digital é todo um tema. Eu acho que é fundamental a gente discutir, como uma pauta que nós vamos levar para a massa, para milhões de pessoas, vamos debater ela incessantemente, a regulamentação das redes sociais. O que aconteceu com o Twitter, o X, em meio às eleições, é um exemplo, é algo que a gente precisa parar para discutir. Porque, muitas vezes, a gente cria ilusões de que vai chegar a um alcance ou vai fazer algo semelhante ao que o extrema-direita faz, mas não vamos porque eles são os detentores do algoritmo. Eles realmente jogam um jogo que, do ponto de vista, é empresarial, e aí falo na escala dos bilhões, a escala multinacional, os favorece e nunca vai estar a nosso favor. Então, nós precisamos parar com essa ilusão e trazer para as pessoas a necessidade de regulamentar as redes sociais, o que hoje é um debate que já está penetrando em diferentes e esferas da nossa vida, do ponto de vista da saúde mental, educação, todo o tema das bets agora, por exemplo. E, voltando para a questão das enchentes, com correlação direta nas eleições de Porto Alegre, fez muita diferença. As pessoas estavam pedindo para ser resgatadas com a água quase batendo no teto do segundo andar das suas casas e operando um celular no telhado. Era dessa maneira que as coisas estavam acontecendo. Muitas vezes estavam ali numa situação de não saber se iam sobreviver ou não e vendo a opinião de um influenciador digital e aquilo ali mexendo profundamente com o seu emocional, com seu psicológico. O que que pensam essas pessoas hoje? Como elas se comportaram ao longo do processo eleitoral na interpretação da política? Tudo isso pega. Então, não tinha como ter um puritanismo durante o período das enchentes de achar que ‘não, agora nós vamos ficar quietos e não vamos dar opinião sobre nada’, porque a opinião já estava sendo construída ali, em todo o momento. Eu acho que essa dinâmica, da maneira como a extrema-direita age, nos obriga a agir de maneira mais global, a sempre dá ter em conta a totalidade dos fenômenos que estão envolvidos para montar a nossa estratégia. Eu, Matheus, não vou fazer tudo ao mesmo tempo, mas eu preciso estar articulado com pessoas que vão dividir tarefa comigo e construir uma visão comum, porque é dessa maneira que eles fazem. Operando com muito dinheiro, operando com uma estrutura que a gente hoje não tem condição de contrapor, se não estivermos articulados, inclusive com os nossos métodos tradicionais. Eu fiz muita panfletagem na rua, encontrava muito pouco a extrema-direita fazendo panfletagem. Mas, ao longo das eleições, estive muito nas ruas fazendo porta a porta nos bairros, métodos que são os que a esquerda utiliza há mais de 40 anos. Eu acho que combinar as coisas é o que nós precisamos fazer e estar articulado aí de maneira global.
Sul21 — Nós vimos muito durante a enchente a ideia do ‘povo pelo povo’. Eu não sei se isso ajudou de alguma forma o governo Melo, mas certamente influenciou na abstenção e não ajudou o campo progressista, porque há essa ideia de que a esquerda defende mais estado. Como se desarma isso para os próximos dois, quatro anos?
Matheus Gomes: Com tudo que eu aprendi nos 11 anos que se passaram desde junho de 2013, que foi um momento importante na vida política do País no qual eu estive muita inserido, eu jamais usaria e nunca reproduzi essa frase ‘o povo pelo povo’ em Porto Alegre. Acho que ela contribuiu, sim, para o prefeito Sebastião Melo, porque uma parte desses já estavam diretamente identificados com a extrema-direita, então era o eleitorado dele, e outra parte foram os que ficaram apáticos no debate político após as enchentes, por conta dessa compreensão. Acabaram, a partir daí, criando um clima que dificultou a mobilização social em Porto Alegre. A esquerda não venceria sem mobilização social. Os desinteressados na eleição, de acordo com a maioria das pesquisas de opinião, formavam uma boa parte do público do Sebastião Melo. Quem tinha pouco ou nenhum interesse nas eleições, ali o Melo ganhava disparado. Era mais parelho entre quem estava muito interessado, acompanhava os projetos, discutia e via que o Melo não era tudo isso que ele estava mostrando na TV. Então, eu acho que essa discussão contribuiu, sim, para ele.
É uma meia verdade (‘o povo pelo povo’), porque, sim, houve um colapso da estrutura do estado durante as enchentes, em todas as esferas, municipal, estadual e federal, existiu esse colapso e a população teve que reagir. Agora, o estado agiu, cumpriu m papel importante, por exemplo, em termos de resgate, quase 100 mil pessoas no Rio Grande do Sul foram resgatadas a partir da operação do estado. Agora, as comunidades se auto-organizaram e, nessa perspectiva, fizeram o que o estado deveria ter feito. Só que qual é a saída para isso? Eu discuti em todos os bairros em que eu estava inserido ajudando, quando nós já estávamos chegando ali há dois meses de atuação e a galera se olhava falava ‘eu não aguentou mais’, o que eu falava com as pessoas? A partir de agora, o nosso movimento precisa mudar, nós fizemos algo incrível até aqui, só que nós precisamos cobrar do estado, porque o estado pode estar ausente, pode estar muito distante de nós, mas ele existe, nós estamos pagando imposto, nós estamos nutrindo uma máquina que precisa dar resposta. Então, aqui a luta precisa ser direcionada. Nós passamos no Rubem Berta, que acolheu muitas pessoas na Zona Norte e ficou quase dois meses sem água, por todo esse período distribuindo água para as pessoas diariamente, água, comida, itens de sobrevivência básica, ali e nas regiões afetadas da Zona Norte. O nosso ativismo, que não era apenas um voluntariado, era de uma militância consciente que atua permanentemente no bairro se esgotou. Então, a luta política tinha que se voltar ao estado e, se necessário for, ir contra o estado, mas não se eximir de fazer essa disputa. Eu acho que, infelizmente, a gente teve aí um problema de como se relacionar. Mais uma vez, o melhor era estar dentro desde o início, do que tentar mimetizar isso numa discussão eleitoral. Se olhar o Melo, o Melo fugiu desse debate. Em momento algum, ele foi lá e se apropriou dessa visão, ele foi mostrar o que ele tinha feito. Então, vê só, nessa perspectiva, que louco que é, ele era o estado e ganhou a narrativa. Então, nós não deveríamos necessariamente nos apoiar nisso, nós deveríamos, mais uma vez, botar a responsabilidade dele, a crítica, mostrar como ele é ineficiente, como ele está usando o estado num método aí que é da velha política, que é do setor tradicional, que não vai trazer nada de novo para nós. Acho que esse foi um problema.
Sul21 — Quais tu acha que são os principais aprendizados que se tira para 2028?
Matheus Gomes: Olha, nós precisamos construir uma rede entre a esquerda partidária, os movimentos comunitários que estão presentes nas periferias, toda a estrutura de movimento social que esteja permanentemente conectada na cidade de Porto Alegre. Eu acho que a gente precisa ser humilde o suficiente para entender que as análises que a gente produz são insuficientes. O que eu estou dizendo para vocês aqui é uma opinião que eu construo coletivamente, mas eu quero que ela esteja em conexão com outras opiniões para que a gente crie sínteses, que a gente possa chegar num grau de acordo superior para poder disputar o poder. A nossa geração toda nunca governou, a gente está aprendendo com os mais velhos que tiveram experiências importantes, mas que correspondem a uma cidade que não tem mais nada a ver com a cidade atual. Porto Alegre, infelizmente, são poucas as conquistas do período em que a Frente Popular governou a cidade que ainda estão presentes. A maioria delas estão totalmente fora do imaginário popular. Então, a nossa renovação ela é de discurso, programa, forma de atuação, formação de lideranças, ela é uma renovação geral. Eu não quero abandonar o que foram as experiências do passado, mas elas precisam aparecer para as pessoas através de sínteses, de projeto de futuro, de olhar para frente. Então, a nossa tarefa é muito grande, eu acho que ela está num grau extremamente complexo aqui na cidade de Porto Alegre. Mas eu acredito que a gente tem um grau de inserção na sociedade que nos permite continuar posicionado enquanto alternativa de poder. Mas, para vencer, nós temos que trabalhar numa perspectiva de reconstrução. Talvez união e reconstrução não vale para a sociedade como um todo, porque é impossível fazer isso com a extrema-direita, com a direita que está estruturada em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, mas, para a esquerda, esse slogan precisa valer. Eu trabalharia ele muito mais como uma discussão nossa do que algo que a gente coloca hoje para o conjunto da sociedade, porque, senão, a gente não vai conseguir se reposicionar. Penso mais ou menos por aí.
