
Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)
Povo, território e governo: estes são os elementos de uma certa, e tradicional definição de Estado. Malgrado tratem-se, estes, de aspectos formais, insuficientes para retratar o Estado como fenômeno político e jurídico particular, parece conveniente invocá-los hoje, em nosso país, diante da premeditada confusão disseminada pela extrema direita a propósito de recentes decisões do Supremo Tribunal Federal – alvo preferencial de seus ataques, mercê de sua firme atuação na defesa da democracia nos últimos anos.
Assim, cabe lembrar que o primeiro ponto alude ao conjunto da população específica que compõe uma determinada formação estatal. Já o segundo abrange tanto a porção do espaço terrestre por ela ocupada, quanto a coluna de atmosfera que lhe é superior; e da mesma forma, em se tratando de território dotado de costa marítima, a extensão do oceano que a banha, conforme definido pela legislação e tratados internacionais. E por fim, o termo governo abarca o conjunto de instituições políticas mediante as quais é exercida ali, com exclusividade, a administração dos assuntos gerais, em nome do povo.
Malgrado se reconheça a divergência entre as diferentes concepções filosóficas a respeito do tema, pode-se destacar algumas características que emprestam conteúdo material ao conceito de Estado, sobre as quais vige relativo consenso. Assim, em primeiríssimo lugar, o monopólio do uso legítimo da força – ou da violência, como prefere Max Weber – o que constitui a marca essencial e distintiva das configurações estatais. Qualquer que seja seu tipo – monarquia absoluta ou constitucional; república liberal, socialdemocrata ou socialista – a violência privada só é nelas admitida em determinadas circunstâncias muito excepcionais, como a legítima defesa ou o desforço imediato.
Portanto, em praticamente todas as demais situações da vida social, somente às agências e agentes públicos é dado empregar meios coercitivos para impor e reproduzir a ordem instituída – na forma prevista nas leis, a começar pela Constituição, regra básica de disciplina da vida social na maior parte dos países ocidentais contemporâneos. E reside precisamente aí – na lei – outro aspecto fundamental a emprestar materialidade à idéia abstrata de Estado.
Deve-se lembrar, a propósito, que na teoria política inspiradora das grandes revoluções liberal-burguesas da era moderna – as quais deram forma às instituições estatais dos séculos XIX e XX – a soberania popular avulta como o postulado angular, segundo o qual o detentor primeiro, legítimo e exclusivo do poder é o povo. Como decorrência, o Estado passa a ser concebido, não mais como fruto de desígnios divinos ou do direito natural – mas, isto sim, como obra de engenharia política, construída coletivamente pelos cidadãos e cidadãs, livres e iguais.
Mas, se de um lado a cidadania constitui a fonte primária do poder soberano, é na lei que esta soberania é “depositada” – a expressão é clássica, entre os grandes teóricos do liberalismo político – na medida em que dela emanam as condições de exercício dos direitos e deveres na esfera pública. Este é, pois, o engenhoso truque conceitual do liberalismo político: conceber a lei como “depósito” da soberania popular – o que confere legitimidade, concretude e eficácia ao poder dos órgãos estatais.
Interessa lembrar, como decorrência deste exercício legítimo e monopólico do poder, com exclusividade dentro dos limites físicos do Estado, já referidos acima, o que se costuma chamar “soberania nacional” – que outra coisa não é senão o reconhecimento e legitimação de seu poder soberano no concerto das demais nações soberanas.
Como dito na abertura deste artigo, tais considerações, embora destituídas de qualquer pretensão de originalidade, revelam-se oportunas, e até mesmo necessárias nos tempos atuais, diante das permanentes invectivas promovidas pela ultradireita, à toda hora e por qualquer pretexto, contra a Suprema Corte – e, em especial, ao Ministro Alexandre de Moraes, responsável pela condução dos inquéritos e processos ali abertos para apurar as ações criminosas de seus integrantes.
Efetivamente, a aplicação das consequências lógico-jurídicas destes conceitos fundamentais, incorporados ao nosso ordenamento normativo, a começar pela Constituição Federal, não deixa margem de dúvida quanto à absoluta correção de todas as decisões proferidas pelo referido magistrado nos recentes episódios relativos à rede virtual “X” e seu proprietário, o inefável Ellon Musk – e consistentes, em suma, na sua reiterada desobediência a expressos comandos judiciais.
Cabe recordar que o imbróglio teve início com a ordem dirigida à mencionada big tech pelo Ministro, num dos inquéritos por ele relatados, no sentido de retirar postagens feitas por um Senador de República (?!), contendo fotografias da filha de delegado de polícia federal nele atuante, acompanhadas de insinuações de ameaças à sua vida e integridade. Ordem, não é preciso dizer, estritamente legal, e de resto imprescindível para resguardar aqueles superiores bens jurídicos, titulados ademais por uma criança; e que, mesmo assim, não foi cumprida pela “X” – novo nome emprestado pelo supranominado magnata ao adquirir o antigo “Twitter”, rede virtual muito popular, especialmente no Brasil.
Como não poderia deixar de ser, seguiram-se novas determinações do Relator naquele sentido, inclusive com a imposição de pesadas multas em caso de desatendimento; o multimilionário preferiu, fiel ao seu estilo arrogante – e para gáudio dos neofascistas, que o erigiram como seu novo “mito” – seguir desafiando a autoridade do Supremo, descumprindo suas ordens e, em tentativa canhestra de fugir às responsabilidades daí decorrentes, retirar do território nacional o pessoal responsável pelo funcionamento local da rede.
Em consequência, para restabelecer a dignidade da Justiça – violentada com o descumprimento ostensivo de suas decisões – bem como preservar a manutenção da ordem jurídica ameaçada, o Ministro Alexandre de Moraes, com amplo apoio de seus colegas de Tribunal, determinou a interdição das atividades do “X” em todo o país. Além disso, diante da omissão da empresa no pagamento das sanções financeiras aplicadas, determinou seu recolhimento mediante o bloqueio e saque de contas de outra firma do mesmo grupo – aplicando o consagrado princípio jurídico do disregard, ou da “desconsideração da pessoa jurídica”, hoje acolhido no artigo 50 do Código Civil Brasileiro, entre outros diplomas legais.
Conforme deflui dessa síntese, todos os passos adotados pelo Ministro Relator – repita-se, chancelados pela unanimidade dos membros do Colegiado Supremo – obedeceram rigorosamente os dispositivos constitucionais e legais que garantem e efetivam o exercício do poder soberano em nosso país, em especial, o funcionamento de seu sistema de justiça no cumprimento da função jurisdicional, uma das principais expressões do monopólio estatal do uso legítimo da força.
Em demonstração inequívoca de que suas ações foram praticadas premeditadamente no sentido de constranger nossa democracia – em articulação com os movimentos encetados pela ultradireita, de dentro e de fora do Brasil – o dono do “X” voltou atrás e indicou uma representante legal, que se dispôs expressamente a cumprir as decisões desrespeitadas e, no momento em que este artigo é escrito, a Suprema Corte está avaliando a efetividade desta retratação, como condição para a permissão de sua reativação no território nacional.
Curiosamente, a intromissão ativa de uma das grandes redes sociais virtuais do Ocidente nos lamentáveis ataques da extrema direita ao regime democrático brasileiro, renova e atualiza, nos tempos do capitalismo financeiro globalizado, o comportamento das antigas companhias bananeiras dos EUA – verdadeiras agentes privadas da chamada “doutrina de Monroe” na América Central, no início do século XX. De fato, da mesma forma como agiam as “fruit companies” de então, que faziam e desfaziam governos abertamente, para ali estabelecer e explorar suas “plantations” – em extensões de territórios onde exerciam domínio direto, sem intermediários – as “big techs” contemporâneas buscam impor-se aos Estados como poderes supranacionais, desrespeitando sua soberania. E, tal qual fazem os neofascistas, invocam a liberdade e a democracia para, na verdade, restringi-las, quando não até mesmo suprimi-las.
Interessa também referir outro gravame infligido recentemente ao poder soberano do Estado brasileiro, de natureza diversa, mas não menos perniciosa – mais um legado perverso do (des) governo bolsonarista. Trata-se da subtração, praticada por meio de emenda constitucional, de tradicional prerrogativa do Chefe de Estado, a ele conferida pelo povo soberano – e consistente na condução da política econômica do país. Com efeito, a lamentável “autonomia” concedida – por pressão do mercado financeiro internacional, com amplo apoio da pressurosa mídia hegemônica – ao Banco Central do Brasil, priva o Presidente da República de um instrumento fundamental para a implementação de seu programa de ação, aprovado pelo eleitorado. A teimosa insistência do atual dirigente máximo daquela entidade – felizmente em final de mandato – em manter e, até mesmo, aumentar a taxa de juros básica, em um quadro econômico de crescimento, não apenas da produção e do consumo, mas também, e sobretudo do emprego, bem o ilustra.
Convém salientar, para melhor destacar a completa inconveniência desta medida, que a mesma na verdade torna a autoridade monetária independente em relação ao poder político legítimo – mas inteiramente submissa aos interesses subalternos e particularistas dos agiotas e rentistas, internos e externos. Caberia invocar, a propósito, as três faculdades essenciais concedidas ao governo, como legítimos pilares do monopólio estatal: (i) elaboração e aplicação das leis; (ii) emprego das forças públicas (exército e polícia); e (iii) cunhar sua própria moeda – esta última, injustificavelmente limitada pela lastimável e irresponsável autonomia concedida àquela autarquia.
Ao encerrar estas despretensiosas considerações, releva trazer a pertinente lição de Poulantzas, no sentido de que o Estado consiste na condensação das relações sociais de dominação. Tendo-se isto em mente, torna-se mais fácil desvelar a verdadeira natureza do atual conflito – que vai mais além do Brasil – entre o interesse dos Estados ditos “soberanos”, de um lado; e de outro, as instâncias supranacionais e supra estatais detentoras do poder financeiro globalizado, que lhes impõem suas perversas políticas econômicas neoliberais, principal causa da emergência do neofascismo nos países ocidentais.
(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).
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