
Tiago Holzmann da Silva (*)
Curiosamente, no Brasil, as leis que “não pegam” são exatamente aquelas que buscam garantir direitos aos mais pobres e promover alguma justiça social. Aliás, é muito difícil explicar como que uma lei pode “não pegar”, visto que as leis servem exatamente para organizar os direitos e obrigações e são pactos impositivos a todas as instituições e pessoas.
Ainda há artigos inteiros de nossa Constituição Federal que não foram regulamentados e simplesmente não são aplicados. O interesse de grupos poderosos e seus patrocinados nos legislativos e nos executivos impedem que a justa distribuição das riquezas e a qualidade de vida para toda a população sejam promovidas a partir do que preconiza nossa lei maior.
E mesmo alguns artigos regulamentados como, por exemplo, os que deram origem ao Estatuto da Cidade também são “letra morta”. Nenhum dos instrumentos previstos pela Lei Federal 10.257/2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, tem seu uso consolidado e plenamente aceito e alguns nunca foram aplicados. Aplicar a lei como uma ferramenta de distribuição de renda e justiça social soa como piada na maioria dos ambientes empresariais, governamentais e judiciais.
Infelizmente, após décadas de lutas desde a sua gênese, a Lei que institui a Assistência Técnica para Habitação e Interesse Social também é uma lei que “não pegou”. A Lei 11.888/2008 foi criada para regulamentar o artigo 6º da Constituição Federal e dar garantia de acesso à moradia, previsto como direito social de todos os cidadãos brasileiros, assim como educação, saúde, e outros.
A Lei da ATHIS é uma lei que interessa muito aos Arquitetos e Urbanistas porque é a principal ferramenta de acesso da população de baixa renda aos serviços valiosos e urgentes destes profissionais. A qualidade de vida da população está diretamente relacionada e vinculada às condições da moradia, da casa ao bairro e à cidade. A Lei da ATHIS foi concebida, gestada, proposta e aprovada por nós, arquitetos e urbanistas, para garantir o acesso universal das famílias aos profissionais que tem formação, atribuição e competência para resolver os problemas espaciais e construir ambientes mais seguros, saudáveis e bonitos.
Passados 15 anos de sua sanção, o que temos hoje é um conjunto de boas experiências com resultados promissores da aplicação da Lei. Entretanto, nenhuma consolidação de política pública contínua e operacional, com programas e recursos permanentes.
No Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul – CAU/RS, desde 2018, definimos alguns objetivos para atender a determinação nacional de aportar recursos (2%) do próprio CAU (ou seja, dos arquitetos) no sentido de colaborar com a implantação da lei. Criamos comissão, realizamos planejamento, reunimos dados, apoiamos iniciativas de divulgação mas, principalmente, focamos no fomento. Mesmo cientes de que não é papel institucional do Conselho resolver o problema da moradia, nosso objetivo sempre foi demonstrar que a lei é viável, aplicável e operacional, e nosso mote foi “romper a inércia”.
Claramente, o que ainda assistimos é um comportamento inercial das instituições responsáveis por fazer cumprir a lei, notadamente os municípios. Escondem-se, raramente com razão, atrás do argumento de que não há recursos, que não sabem como fazer, que não possuem técnicos, e todas as escusas que conhecemos bem, e são recorrentes também para a garantia de outros direitos.
Pois o CAU/RS foi à luta, primeiro criou o programa “Casa Saudável” que propõe a incorporação do Arquiteto e Urbanista nas equipes do SUS para “curar a casa que deixa a família doente” e aplicar os remédios que os profissionais tradicionais da saúde não tem: iluminar e ventilar bem, dar estanqueidade em telhados e paredes, providenciar pisos, resolver instalações de água e esgoto, evitar acidentes com instalações elétricas e gás, dar plena acessibilidade para a casa, etc. Estas ações, muito simples para nós arquitetos, poderiam já haver salvo muitas vidas e economizados recursos astronômicos em saúde nos 15 anos de existência da lei.
Pois, nesse momento, após bem sucedidas experiências que “romperam a inércia” e provaram que essa iniciativa é viável e factível, econômica e operacionalmente, estamos buscando junto ao Ministério da Saúde a sensibilidade e oportunidade para ajudar a construir essa alternativa, essa nova frente de atendimento à saúde de nossa população, em escala nacional e universal, como várias outras ações do SUS. Um arquiteto, uma arquiteta, em cada equipe de saúde, curando a casa que deixa a família doente.
No início da pandemia, o “fique em casa, lave as mãos” nos indignou, visto que ficar em uma casa sem segurança, sem habitabilidade e sem água potável e esgoto não nos parecia uma recomendação aceitável para grande parte de nossa população. Nesse momento, nasceu o “Nenhuma Casa Sem Banheiro” – NCSB – para buscar uma solução para as famílias pobres de periferia que nem sequer tem uma instalação sanitária básica decente em suas moradias. No Rio Grande do Sul, o IBGE identificava cerca de 11 mil residências sem banheiro, dado absolutamente inferior à realidade, visto que o Governo do Estado em poucas semanas ampliou esse número para cerca de 33 mil só na Região Metropolitana de Porto Alegre.
O NCSB rapidamente obteve adesão entusiasmada de mais de uma dezena de instituições públicas e entidades profissionais e a chancela da ONU Habitat. Estabelecemos parcerias diretas com alguns municípios e com o Governo do Estado, que agora já realiza diversas ações por sua iniciativa. Nos parece que, nesse caso, conseguimos “romper a inércia”. Estamos vigilantes para que o atendimento à população siga sendo qualificado e não prescinda da presença fundamental do profissional Arquiteto e Urbanista que tem a sensibilidade social e capacidade técnica para apresentar a melhor e mais adequada solução.
Neste mês de agosto de 2024 o CAU/RS está publicando e divulgando um livro sobre esta experiência, realizado em parceria com o Sul21, contando estas histórias relatadas.
Além das nossas iniciativas exitosas e viáveis, temos dezenas de outras boas experiências em todo o Brasil. Mas seguem sendo “episódios” sem a necessária continuidade. O que estamos apontando agora é a urgência de uma nova fase. Precisamos radicalizar e iniciar uma cobrança agressiva e sem tréguas no sentido do pleno atendimento da lei para garantir o acesso universal ao direito social constitucional à moradia. “Pegar quem não cumpre a lei”… pode ser um novo mote.
Entendemos que é fundamental estabelecer de forma consistente a parceria com os movimentos sociais para que o CAU e as entidades profissionais reforcem sua atuação diretamente junto aos executivos municipais para cobrar, judicialmente se necessário, o atendimento da lei. Em paralelo devemos oferecer nossas boas práticas e parcerias aos municípios e seguir trabalhando para garantir recursos orçamentários permanentes e suficientes em todas as esferas.
Nossas ações já “romperam a inércia” e já provamos que as iniciativas são absolutamente viáveis. Nossa atuação direta pode salvar muitas vidas e economizar recursos públicos desperdiçados em combater consequências.
“Curar a casa que deixa as famílias doentes” com “arquitetos e arquitetas no SUS” e “Nenhuma Casa Sem Banheiro” são urgências sanitárias e de saúde pública.
(*) Ex-presidente do CAU/RS
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