
Depois da enchente, o impasse. Com suas casas destruídas ou sem condições de habitação após a enchente de maio, centenas de moradores do bairro Arquipélago, região das ilhas de Porto Alegre, estão enfrentando dificuldades para retomarem suas vidas. O pano de fundo é o programa Compra Assistida, criado pelo governo federal para ajudar a população que ficou sem casa após o desastre climático que atingiu praticamente todo o Rio Grande do Sul, mas que depende de laudos contratados pela prefeitura.
O programa prevê a compra do imóvel que tenha sido 100% destruído, nos casos em que a faixa de renda é de até R$ 4.400. Numa faixa de renda mais elevada, de até R$ 8 mil, o programa prevê um subsídio para o proprietário adquirir outra moradia. A dificuldade está nas regras do programa, conforme ficou evidenciada na audiência pública realizada no último sábado (17), na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). A audiência ocorreu no âmbito da ação civil pública ajuizada em 2008 pelo Ministério Público Estadual para implementação da Unidade de Conservação do Delta do Jacuí.
Há uma sucessão de erros e dificuldades que têm dificultado o avanço do programa e o socorro às famílias atingidas. Representando o governo federal, o vereador licenciado Engenheiro Comassetto afirmou na audiência que o dinheiro existe e está disponível, mas que a responsabilidade pela elaboração dos laudos técnicos e do plano de reassentamento é da Prefeitura.
Por sua vez, o governo do prefeito Sebastião Melo (MDB) reconheceu uma série de equívocos cometidos pelos profissionais contratados para elaborar os laudos: há casas que não foram visitadas, erros de metodologia, ausência de contato com os moradores, falta de fotos, endereços e nomes do dono do imóvel, entre outros. Os laudos terão que ser refeitos e, enquanto isso, o tempo passa e a angústia dos atingidos aumenta.
Além da elaboração incorreta dos laudos, a audiência pública revelou outro impasse: as regras definidas pelo governo federal para decidir quem pode ser beneficiado pelo programa Compra Assistida. Um dos entraves é que a regra determina que a casa tenha sido destruída ou não tenha mais condições de moradia, no caso do laudo individual. Já no laudo coletivo, podem ser contemplados todos aqueles que moram numa determinada área considerada de risco. É quando então entram em cena as particularidades dos moradores das ilhas.

Numa lista inicial, a Prefeitura mapeou 972 famílias que desejam sair das ilhas e serem contempladas pelo Compra Assistida. Porém, muitas perderam tudo, mas suas casas não foram completamente destruídas ou ainda têm condições de moradia e, portanto, elas não se enquadram nos critérios do programa. E há ainda aquelas famílias que estão nas áreas consideradas de risco, todavia, não querem deixar as ilhas. Isso ocorre principalmente com famílias de pescadores que têm toda sua vida, trabalho e sustento ligados às águas.
A juíza Patrícia Antunes Laydner disse que os momentos de tensão na audiência já eram esperados, pois as pessoas estão vivendo uma situação muito crítica. Ela ponderou que o assunto é sensível e tem sido debatido há algum tempo. “É um tema que envolve muitas dificuldades porque a situação das ilhas não é homogênea. Então é difícil porque todos os projetos de reassentamento e de moradia que vieram depois da enchente, são projetos que têm um certo tratamento homogêneo para uma situação que não é homogênea. A situação das ilhas é bem específica”, afirmou.
Ela destaca que a situação é ainda mais complexa porque, além da característica particular da habitação das ilhas, a região ainda envolve o Parque Estadual Delta do Jacuí e a Área de Preservação Ambiental Delta do Jacuí. “Conciliar a proteção ao meio ambiente, a proteção das pessoas e os anseios daqueles que não querem mais ficar lá, com as regras das políticas habitacionais que existem, é bem complicado”, reconheceu.
Atualmente ocupando o cargo de diretor do Ministério da Reconstrução para o tema da habitação, Engenheiro Comassetto, avaliou a audiência como proveitosa, apesar das dificuldades reveladas. “A audiência explicitou as divergências que existem no método de elaborar os trabalhos. O governo federal já construiu todas as ferramentas para que as pessoas que perderam suas casas ou que estão em área de risco, tenham o direito de receber uma nova casa, para quem ganha até R$ 4.400, ou para quem ganha até R 8 mil, ter o subsídio para poder adquirir (uma nova casa).”
Ele adiantou que uma nova portaria ministerial será publicada em breve para atender quem vive em área que pode ser reconstruída. Como exemplo, Comassetto citou pessoas que moram no Sarandi, Humaitá e Farrapos, bairros que alagaram porque o sistema de proteção da Capital falhou. “Os diques não funcionaram, o sistema estava mal cuidado e então alagou. Esses poderão reconstruir no mesmo local, no seu terreno”, explicou.
Sobre as críticas da população feitas ao governo federal durante a audiência, o vereador licenciado disse que a Prefeitura apresentou 267 planos de trabalho de um total de 105 mil famílias. “É inconcebível isso. Nós temos, talvez, cinco ou seis mil famílias (nas ilhas). E os planos têm que ser perfeitos, tem que identificar e organizar.”

Com relação aos critérios estipulados pelo programa Compra Assistida e a crítica de que ele deixa de fora muitas famílias atingidas pela enchente, Comassetto disse que tem havido “interpretações diversas para situações diversas”. Ele explicou que o laudo individual se refere à casa que foi destruída e o laudo coletivo envolve todos os moradores de uma área definida como de risco, conforme a mancha de inundação, e que precisa ser desabitada.
“Se a área é de risco, a casa pode até estar de pé (e a família será contemplada), mas quem tem que determinar isso é o poder público municipal. A Defesa Civil entregou os mapas, mas o responsável pelo planejamento do território do município, pelo Estatuto das Cidades, é o município, é ele quem tem que dizer onde é área de risco e onde não é. E esse papel o município não fez ainda e ele tem que fazer, até para dizer para as famílias: ‘nessa mancha tem que sair todos, não pode ficar porque não vai ter sistema de proteção e vai alagar de novo’. É um momento difícil, forte, mas precisamos tratar isso de frente, não dá pra querer agradar ‘gregos e troianos’ e não agradar ninguém.”
Ao final do encontro, a juíza Patrícia Laydner Laudos disse estar nítida a situação de haver um programa e uma verba do governo federal que, se for aplicado 100% como está previsto, não irá contemplar todas as situações das ilhas.

“Pra mim, ficou muito claro que o projeto que existe hoje não é adaptado para a situação que temos nas ilhas, porque para ingressar no programa é preciso estar numa situação ‘x ou y’ que não é necessariamente a situação das famílias. Tem pessoas que a residência não foi 100% destruída, mas elas não têm condições de ficar ali e o local em que algumas delas estão ainda é dentro da área do parque”, ponderou. “E tem pessoas que querem ficar ali, então se adotar a mancha (de inundação e área de risco) e dizer que todo mundo que está nessa área tem que sair para entrar no programa, não vou conseguir contemplar a situação da população tradicional que quer ficar. Esse é o grande drama. O mais fácil, juridicamente, seria tirar todo mundo, mas seria uma decisão que não iria ser cumprida porque estamos falando de uma população tradicional que vive da pesca. A decisão até poderia ser cumprida, mas a qual custo para a vida dessas pessoas? Esse é o drama que está envolvido no processo”, explicou.
Diante do impasse entre prefeitura e governo federal, Comassetto propôs uma reunião mediada pela Justiça para resolver o problema. A reunião ocorreu nesta segunda-feira (19), na sede do Ministério da Reconstrução em Porto Alegre. Sobre o encontro, a juíza comentou que é uma tentativa de resolver determinadas dificuldades e debater a sugestão do promotor Cláudio Ari Mello, que propôs a criação de um planejamento específico para as ilhas de Porto Alegre. “Não sei se isso vai ser possível, mas é o compromisso que o Judiciário, junto com o Ministério Público e a Defensoria, assumimos de intermediar as dificuldades entre as diferentes esferas de poder.”