Opinião
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14 de agosto de 2024
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10:34

Litoral Norte: um território em disputa (por Eduardo Luís Ruppenthal)

Foto: Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí/Facebook/Reprodução
Foto: Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí/Facebook/Reprodução

Eduardo Luís Ruppenthal (*)

O Litoral Norte do Rio Grande do Sul virou um território em disputa, de um lado, o avanço do capital expresso principalmente na especulação imobiliária, que atua desenfreadamente, de ocupação e exploração máxima, como se não houvesse limites, uma aceleração do fim do mundo, como se estivessem em algum “mundo paralelo” ou “bolha”, ignorante à gravidade socioambiental do atual contexto planetário. Do outro lado, a resistência de quem vive a sua existência junto ao território, onde os bens comuns como a terra, o ar e a água são fundamentais, como os povos originários, que estão aqui há milhares de anos, as comunidades tradicionais que há séculos ocupam essa terra, como os quilombolas, os pescadores artesanais e demais nativos como os agricultores e pecuaristas familiares, os artesãos, os ribeirinhos e os marisqueiros. E comunidades de trabalhadores que constroem a sua vida, com relação com os diversos ambientes litorâneos, desde o Planalto com o predomínio florestal da Mata Atlântica, à Planície Costeira, com a presença marcante dos ecossistemas aquáticos: lagoas, rios e mar.

O projeto de desenvolvimento proposto pela especulação imobiliária, capitaneado pelos condomínios horizontais fechados, os “feudos modernos”, e pela verticalização dos espigões de concreto nas beiras das praias, coloca em risco os modos de vida dessas populações, assim como trazem inúmeras consequências sociais, econômicas e ambientais, pois o número de ocupações por moradia só crescem em todo Litoral. Por isso, essa demanda da especulação imobiliária não é para resolver o problema das milhares de famílias que não tem casa, mas para especular e garantir o lucro milionário e até bilionário de poucos. O avanço sem limites da especulação imobiliária no Litoral Norte representa a insustentabilidade ambiental e social, já que há aumento da exclusão e segregação social e racial, visível e representadas pelos muros e que na prática reforça a desigualdade social.

Na rodovia Estrada do Mar, entre Capão da Canoa e Atlântida Sul/Osório, um “mar” de condomínios fechados sem limites, não há mais áreas e espaços vazios entre eles, provocam profundas alterações na paisagem, destruição das dunas e dos banhados que são Áreas de Preservação Permanente (APP), localizados de costas para o mar, murados para a biodiversidade, já que não há mais passagens para a fauna e flora, interrompendo o fluxo gênico e os corredores ecológicos, colocando em ameaça, dezenas de espécies de animais e plantas, criando barreiras intransponíveis, destruição dos habitats, além da introdução de espécies exóticas, já que toda a jardinagem é feita com espécies de fora, exógenas do local.

O projeto do emissário da AEGEA/Corsan, empresa privada, que está em construção e que vai despejar esgoto de Xangri-lá e Capão, “meca da especulação imobiliária no Litoral” no rio Tramandaí precisa ser analisada neste contexto, inclusive foi comemorada pelos gestores públicos, que são representantes dos interesses privados das construtoras, como o último entrave para que não haja mais limites para a especulação imobiliária na região. O emissário será o segundo que coloca o esgoto tratado no rio principal da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí, já que o condomínio fechado de Atlântida Sul já despeja no curso d ‘água.

Segundo os dados alardeados em relação ao emissário de Xangri-lá, haveria uma eficiência de até 95% de tratamento do esgoto, isso acontece quando o sistema não está sobrecarregado, ao contrário do que acontece no veraneio, quando essa eficiência diminui muito. Além disso, o esgoto não é tratado na sua totalidade, assim como inúmeros contaminantes como metais pesados, agrotóxicos, medicamentos, não são tratados em uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), que são lançados na água, que se bioacumulam nas cadeias alimentares e sua concentração aumenta nos níveis tróficos superiores como os animais carnívoros de topo de cadeia, estes recebem as maiores quantidades ao longo do tempo, como no caso do ser humano no consumo dos peixes. Importante ressaltar que há elementos semelhantes em relação aos impactos socioambientais que paralisou a ETE de Osório em relação ao destino do esgoto tratado na Lagoa dos Barros em Osório e Santo Antônio da Patrulha.

Essa contaminação também compromete os ecossistemas associados ao rio, como os banhados e várzeas do entorno, como toda a biodiversidade, animais e plantas, presente até a foz do rio Tramandaí, atingindo os territórios dos municípios abaixo como Tramandaí, Imbé, Cidreira, já que há um complexo lagunar que interliga as lagoas da região. E toda a sociobiodiversidade expressa nas comunidades tradicionais como os pescadores artesanais, quilombolas e indígenas, que vivem do território e tem o rio e a Bacia Hidrográfica como essência de sua existência, de sobrevivência e de seus modos de vida.

O projeto reproduz e é um exemplo clássico de Racismo Ambiental. No “Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil”, realizado pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), revela que empreendimentos de alto impacto e de riscos ambientais sempre são feitos em periferias, municípios rurais pobres, comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais. Se os danos são causados pelo topo da pirâmide numa escala global, de forma ainda mais grave, as empresas altamente poluidoras fazem processos incorretos de licenciamento e suas medidas de reparo e segurança tardam a serem apresentadas. A ativista negra Stephanie Ribeiro, na coluna no Portal Geledés, fala da discriminação racial no direcionamento deliberado de instalações de resíduos tóxicos e perigosos próximas de comunidades indígenas ou periféricas em todos os estados do país, como se a lei não fosse igual para todos.

Se não há problemas em relação ao esgoto tratado, que seja usado na irrigação dos jardins dos condomínios fechados ou se não há nada relacionado com os contaminantes do esgoto tratado, que se utilize nos canais de água privados, já que são usados como paisagismo e navegação interna, ao mesmo tempo pouparia milhões de litros de água potável limpa. Quem são os responsáveis pelo problema, os mais ricos que são os causadores, sejam responsáveis (e paguem) pela solução, mas não jogar o problema para as comunidades mais vulneráveis, para o rio Tramandaí e toda a sua bacia hidrográfica.

Estas e outras questões que não foram discutidas antes, de forma pública e transparente, serão tema da audiência pública organizada pelo Movimento em Defesa do Litoral Norte junto com a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, que acontece hoje, no dia 14 de agosto, quarta-feira,  às 18h, na Câmara Municipal de Imbé. Importante a mobilização e a presença de todos, é fundamental a defesa de toda a sociobiodiversidade e da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí.

(*) Professor da rede pública estadual, biólogo, especialista em Meio Ambiente e Biodiversidade (UERGS) e mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR-UFRGS). Membro do Coletivo Alicerce. 

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